quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Elio Gaspari - Anatomia de um apagão

O Globo

Estádio do Mineirão, 8 de julho de 2014. Aos 24 minutos do primeiro tempo, Toni Kroos marcou o terceiro gol da Alemanha. Eremildo, o idiota, gritou da arquibancada para que o Brasil atacasse. Depois do desastre, o técnico Felipão teve a humildade de reconhecer que sua equipe sofreu um “apagão”.

Na segunda-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou, com uma gravidade que só os ares de Brasília concedem, que sairão do ar cerca de 500 sites de apostas que funcionam no Brasil sem o devido credenciamento.

Em 2014, todos os jogadores alemães estavam credenciados. Em 2024, os sites ilegais funcionam porque o governo viveu por mais de um ano num esplêndido apagão. Quando Haddad diz que a Anatel tirará os sites do ar, algum desavisado pode achar que a agência já poderia ter feito isso. Quem os deixou no ar foi o Ministério da Fazenda porque, em dezembro de 2023, deu-lhes o prazo de até 1º de outubro de 2024 para que regularizassem seus papéis. Prenunciava-se o apagão. (Alemanha 1 a 0.)

A única novidade do anúncio de Haddad foi a antecipação do bloqueio. Pois a Fazenda havia estabelecido o limite de 1º de janeiro de 2025. (Alemanha 2 a 0.)

A burocracia tem suas astúcias. Criou um Sistema de Gestão de Apostas e deu-lhe uma sigla: Sigap. Em junho passado, o Ministério da Fazenda anunciava que o Sigap era “resultado de trabalho conjunto da Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) e da Subsecretaria de Gestão, Tecnologia da Informação e Orçamento (SGTO)”.

Tudo bem, mas quem mostrou “as portas do inferno”, nas palavras da doutora Gleisi Hoffmann, foi o Banco Central. (Alemanha 3 a 0.)

Os prazos longos para que os sites de apostas regularizassem seus papéis não foram resultado de um apagão. O time estava armado assim porque, com dez meses de prazo antes de requerer a outorga de uma licença, as empresas poderiam medir o potencial do mercado ou a temperatura do reino de Asmodeu. A sábia ekipekonomika esperava arrecadar até R$ 3,4 bilhões, pois cada licença custaria R$ 30 milhões. Havia cerca de 150 empresas na fila. (Alemanha 4 a 0.)

Arrecadado o dinheiro das outorgas, o governo conseguiria algumas dezenas de bilhões taxando os prêmios.

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse sobre os efeitos das apostas:

— É uma pandemia, guardada a questão da gravidade. Isso precisa ser trabalhado na Saúde.

Precisava, mas até hoje não foi. (Alemanha 5 a 0.)

A pandemia de apostas guarda várias diferenças com a de Covid-19. Uma veio de fora, enquanto a outra foi armada em Pindorama. Uma custou bilhões ao governo de Jair Bolsonaro, a outra levaria bilhões para as arcas dos governos de Lula e de seus sucessores. Uma não precisou de publicidade para se propagar, a outra teve campo livre, graças ao silêncio do Sigap.

A partida de 2014 no Mineirão terminou depois de 90 minutos de jogo. A das apostas continuará e não tem data para terminar. A turma das apostas tem craques para entrar em campo.

O Congresso pode legalizar o jogo do bicho, os bingos e os cassinos. Cada um deles dará ao governo o que ele quer: arrecadação.

Olhando apenas para o primeiro tempo dessa partida, pode-se antever o que vem pela frente.

 

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