- O Estado de S. Paulo
Em face do que representa para a economia brasileira, o Plano Real merece comemorações nos dois dias que marcam os aniversários do que trouxe de bom. A primeira, do lançamento do plano, em 1.º de março de 1994, quando nasceu a Unidade Real de Valor (URV), de vida curta e morte anunciada. A segunda, do surgimento do real como papel-moeda, em 1.º de julho do mesmo ano, quando a URV expirou.
Em torno do último dia 1.º vieram vários artigos e depoimentos sobre o real neste aniversário, abordando vários de seus aspectos. Entre estes, a muito menor taxa de inflação que veio com ele e seu impacto muito favorável sobre os rendimentos dos mais pobres, os que mais sofriam o efeito corrosivo da fortíssima inflação sobre o seu dinheiro. E as dificuldades diante da necessidade de um controle mais firme da inflação, em particular a indisciplina que marca as contas públicas federais.
Vou tocar em outros dois aspectos. Começarei por mostrar como o padrão monetário brasileiro se degenerou por décadas antes do real. Em seguida argumentarei que o extenso período de elevadíssima inflação e de luta pela estabilização do valor da moeda moldou uma geração de economistas e um conjunto de políticas econômicas muito focados nessa estabilização, negligenciando um igualmente indispensável empenho no desenvolvimento econômico do País.
Quanto ao primeiro tema, foram oito (!) os padrões monetários que a partir de 1.º de novembro de 1942 marcaram a fase posterior ao mil-réis: cruzeiro, cruzeiro novo, novamente o cruzeiro, cruzado, cruzado novo, outra vez o cruzeiro, cruzeiro real e real. E por quatro (!) vezes um novo padrão foi introduzido cortando-se três zeros do anterior, começando com 1.000 réis = Cr$ 1. Na época do cruzeiro novo, entre 1967 e 1970, não houve nem emissão de novas notas, usando-se as mesmas do padrão anterior depois de carimbadas com o corte de três zeros.
O cruzado novo veio em 1989 com o corte de três zeros, mas já no ano seguinte surgiu outro cruzeiro, sem esse corte e que durou até 1993. Entre esses dois anos, porém, a inflação foi tanta que surgiu uma nota de Cr$ 500.000 (!) com a efígie de Mário de Andrade. Este, entre outras obras, escreveu Macunaíma, o "herói sem caráter". Mais para vilão, o nosso padrão monetário também não tinha caráter.
O primeiro cruzeiro começou em 1942, estampado com vultos históricos como Cabral, Duque de Caxias, Pedro I e outros. Getúlio Vargas, então ditador, ditou que também deveria ser mostrado. Mais à frente vieram expoentes da pintura, música e literatura. E na nota de valor imediatamente inferior (Cr$ 100.000) à que "homenageou" Mário de Andrade, um ninho de beija-flores. As duas últimas notas antes do real tiveram figuras folclóricas, uma baiana na nota de CR$ 50.000 e um gaúcho noutra de um décimo desse valor, ou CR$ 5.000, o que virou motivo de piadas e mostra a falta de cuidados em escolhas como essa.
É ver para crer. Essas notas e todas as demais desde o primeiro cruzeiro estão no portal do Banco Central (www.bcb.gov.br/?PADMONET). O que ali se vê é trágico e serve para assustar e prevenir quanto a um retorno ao passado pré-real. Este conseguiu reverter a história quando chegou. Já dura mais que todos os padrões que vieram após o cruzeiro de 1942, que chegou perto de 25 anos. Com mais cinco o real vai ultrapassá-lo.
Passando ao outro tema, quando comecei a estudar Economia, em meados dos anos 1960, no Brasil o tema de maior interesse da área era o desenvolvimento econômico. Dados de contas nacionais passaram a evidenciar, com o produto interno bruto (PIB) por habitante, as enormes diferenças entre países ricos e pobres. Após a 2.ª Guerra Mundial e até a década de 1970, o do Brasil cresceu bastante, mas sobreveio forte inflação que prejudicou o País. Em meados dos anos 1980, ela escapou do controle. E se tornou a preocupação central de economistas acadêmicos e de gestores da política econômica.
Com isso ganhou realce a disciplina Macroeconomia, cujos livros focam mais no propósito de estabilizar a economia. Em geral oriundos dos EUA, esses manuais costumam deixar o crescimento econômico numa posição secundária, recebendo apenas a atenção de uns poucos capítulos ao final.
Nos EUA isso é compreensível, porque já é um país desenvolvido. Aqui não se pode aceitar que as questões ligadas ao desenvolvimento econômico sejam também postas em segundo plano, pois ele é tão primordial quanto a estabilização. Saindo do economês, um avião tem muitos mecanismos para estabilização do seu voo, mas sem motores não voará. No Brasil é escassa a atenção dada aos motores da economia, em particular o investimento na expansão da sua capacidade produtiva.
Outro fator a moldar esse quadro é a grande influência exercida pelo mercado financeiro, cujas instituições hoje dispõem de grandes departamentos econômicos e economistas bem treinados, a fornecer enorme quantidade de informações que tomam grande espaço na mídia. Mas a preocupação central dessas instituições é gerir seus ativos, como ao ficarem de olho nas taxas de juros e para saberem se o governo vai pagar direitinho sua dívida com o mesmo mercado. O desenvolvimento econômico e outras questões de horizonte mais longo ficam, se tanto, na margem do alcance de seus radares.
Mais especificamente, o debate sobre a política macroeconômica é muito centrado no curto prazo e no chamado tripé, formado pelas políticas de metas da inflação, de contas públicas bem administradas, em particular seus déficits e dívidas, para não causar turbulências financeiras, e de taxa de câmbio flutuante, para atenuar desequilíbrios do setor externo. Uma luneta com zoom precisa apoiar-se nesse tripé para acomodar a visão de um País economicamente maior e também mais desenvolvido noutras dimensões e num futuro que não seja tão longínquo como que hoje se contempla.
*Economista (UFMG, USP e HARVARD)
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