Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
• Em “O impeachment de Fernando Collor”, o sociólogo Brasilio Sallum Jr. Faz a anatomia do momento que levou a derrubada do primeiro presidente eleito pelo voto direto em 30 anos
São Paulo - O que derruba um presidente - corrupção, voluntarismo, crise econômica, perda de sustentação política ou erosão do apoio social? "O Impeachment de Fernando Collor - Sociologia de Uma Crise" (Editora 34, 2015, 421 pags.) tem uma tese, a de que as relações entre o Executivo e o Legislativo se trincaram num momento de superação do que Brasilio Sallum Jr. chamou de Estado varguista. Mas o autor vai além do subtítulo. Numa minuciosa reconstituição dos fatos, o chefe do Departamento de Sociologia da USP conduz o leitor à conclusão resumida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na orelha do livro: os dias de Collor só entraram em contagem regressiva no momento em que os partidos perceberam o que ganhariam com sua derrubada.
Sallum oferece evidências tanto a quem busca semelhanças com a crise que hoje cerca a presidente Dilma Rousseff quanto a quem se ocupa em distingui-la da de Collor. O livro, no entanto, não se presta a compará-las. É a anatomia, sem a dramaticidade de relatos jornalísticos, dos acontecimentos que levaram à queda do primeiro presidente eleito pelo voto direto em 30 anos. "Sallum ressalta algo que pode parecer banal, mas é essencial na vida política: o momento", diz FHC, protagonista daquele de 23 anos atrás e do atual.
A eleição de Collor se propunha a ser o marco divisório daquela que o autor chama de "crise de hegemonia" da transição: o impulso da democratização política trazido pela Constituinte de 1988 que cede à liberalização econômica.
A economia brasileira vivia um momento muito mais dramático que o de hoje. Collor tomou posse em março de 1990 sob inflação mensal de 82%. Para estabilizar a moeda, nomeou a economista da equipe de Dilson Funaro, Zélia Cardoso de Mello, mas declarava a quem quisesse ouvir que a Fazenda era ele.
O Plano Collor foi o primeiro carimbo do seu voluntarismo. Desde a posse, anunciara que não estava disposto a conter a inflação, mas a "liquidá-la". O núcleo do plano, o confisco de 80% dos ativos financeiros, foi acrescido de um ajuste fiscal que elevou tarifas, cortou subsídios, demitiu funcionários, extinguiu órgãos públicos e deu início a privatizações. O calhamaço das medidas provisórias foi entregue ao Congresso depois de cinematográfica caminhada do presidente e seus 12 ministros pela praça dos Três Poderes.
O cesarismo foi aceito pela maioria. Seis em cada dez brasileiros aprovaram as medidas. O plano teve a chancela do Supremo, contra o voto do relator da ação de inconstitucionalidade, Paulo Brossard: "A apropriação indébita de bens é furto".
O apoio não duraria. Ainda que desidratado ao longo de sua tramitação no Congresso, o plano levaria o país a perder 4% de sua riqueza no primeiro ano do governo Collor.
A primeira derrota veio do bloco sindical. Começava ali o precoce desmonte da única barricada de Collor no movimento social, o sindicalismo de resultados. A erosão desse apoio deixaria lições ao líder petista Luiz Inácio Lula da Silva, que, 15 anos depois, recorreria aos seus exércitos sindicais contra o mensalão. O temor do contágio sindical também inspiraria sua queda de braço, nos bastidores do governo Dilma, pela adoção das medidas de proteção ao emprego.
A resistência se espraiaria por um conjunto de entidades reunidas pelo Movimento pela Ética na Política. A adesão das igrejas foi capitaneada pelos bispos católicos, num ativismo muito distante da cruzada moral que hoje une o pentecostalismo sob o beneplácito de Eduardo Cunha. À época, o atual presidente da Câmara, havia sido recompensado com a Telerj pelo trabalho de montagem do PRN.
O fracasso das primeiras medidas levaria à decretação do Plano Collor II em 1991, mas, a essa altura, o presidencialismo plebiscitário já tinha perdido parte de seu apelo. Um Congresso renovado, além de 27 governadores, havia tomado posse reivindicando uma fatia da legitimidade que parecia exclusiva do presidente. O descasamento dos mandatos teria fim a partir das eleições seguintes, mas ameaça voltar na reforma ora em curso no Congresso.
Para reconquistar a confiança do empresariado o presidente substituiu Zélia pelo embaixador nos EUA e ex-diretor do Unibanco Marcílio Marques Moreira. O novo ministro exigiria novos esforços fiscais para recompor relações com credores internacionais, aumentando as tensões federativas. Mas, a despeito de Collor depender de sua âncora mais do que Dilma depende do ministro Joaquim Levy, Marques Moreira não seria capaz de blindar Collor junto ao PIB até o fim.
Três meses antes do impeachment, Jorge Gerdau seria porta-voz de uma comitiva de empresários que hipotecaria apoio a Collor: "O senhor pode contar conosco [...] Seu programa de modernização tem todo nosso apoio". No apagar das luzes, a agenda liberalizante do governo ainda seria capaz de aprovar a regulamentação da concessão de serviços públicos.
O avanço do cerco sobre o presidente, no entanto, lhe tiraria o colchão empresarial. Ao transmitir seu cargo na Fiesp, Mario Amato divulgaria nota que pedia "absoluta necessidade de exemplar punição dos responsáveis e o restabelecimento da moralidade da administração pública". Àquela altura, sob o impulso da corrupção, a rua já estava contaminada pelo impeachment.
Sucessivas denúncias iniciadas pela entrevista do seu irmão, Pedro Collor, chegariam ao ápice com o testemunho do motorista Eriberto França e exporiam a condição do tesoureiro da campanha presidencial, Paulo César Farias, como operador dos negócios do presidente da República.
A exposição pessoal de Collor chegou ao limite com a descoberta de que retirara recursos de suas contas bancárias às vésperas do confisco, uma corrosão moral da qual a presidente hoje parece blindada. "O que elas [as denúncias] punham em questão já não era o desempenho de Fernando Collor de Mello na Presidência; era se ele dispunha, ou não, dos requisitos morais implícitos naquela investidura", escreveu Sallum.
Acuado, Collor redobrou as demonstrações de vigor físico. Também passeava de bicicleta, mas preferia as corridas matinais. O derradeiro canal foi a agressividade. O ódio que hoje se volta contra o PT e Dilma, era, em 1992, a estampa do presidente.
A mesma imprensa que ajudara a projetar o salvador da pátria passou a fazer campanha por sua saída, em editoriais com ponto de exclamação e na divulgação dos horários e locais de atos pró-impeachment. Humoristas como Jô Soares, que hoje são acusados de defender Dilma, transformaram seus programas de televisão em palco para a devastadora crônica de um governo que se desmanchava.
Com o circo armado na rua, os partidos de esquerda, capitaneados pelo PT, viram crescer as adesões à coalizão que viabilizou, institucionalmente, o desfecho daquela crise. A Comissão Parlamentar de Inquérito, montada para acuar o presidente, transformou-se no purgatório do impeachment. As lideranças dos principais partidos, em entendimentos com o vice, Itamar Franco, o Judiciário e os militares, começaram a dirimir as incertezas geradas por aquele momento, montando as bases do que seria a coalizão do novo governo.
Com o impeachment, o PT, liderado no Congresso pelo então deputado José Dirceu, por um lado, deixaria clara a opção do partido pelas saídas institucionais, isolando as alas mais radicais, e, por outro, vetaria a participação de seus integrantes no futuro governo para se manter como galvanizador da oposição.
O PMDB mantinha suas divisões. O partido tinha mais prefeitos e parlamentares que hoje, mas não ocupava os três cargos na linha sucessória da República. O senador Orestes Quércia foi entusiasta de primeira hora do impeachment, levando até mesmo o governador Luiz Antônio Fleury Filho a oferecer almoço a manifestantes no Palácio dos Bandeirantes. Com sua candidatura à Presidência já na praça, conseguiu evitar que o partido aderisse oficialmente ao governo Itamar.
Quem ocupou esse espaço foi o PSDB, partido ainda incipiente, com um único governador (Ciro Gomes), que viu na coalizão formada em torno de Itamar a chance de reforçar seu capital político. Graças a essa adesão, costurada nos bastidores do impeachment, os tucanos capitaneariam o plano de estabilização que, dois anos depois, lhe daria as chaves do Palácio do Planalto.
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