Há quem imagine que já se possa falar na existência de uma "questão grega", que passaria a figurar como paradigma no combate ao capitalismo financista. A vitória alcançada no referendo pelo primeiro-ministro Alexis Tsipras, líder do Syriza, que recusou as condições impostas pela União Europeia (UE) para a renovação dos empréstimos ao país helênico, parece ser o grande marco desse paradigma. A estratégia de Tsipras tinha como objetivo mínimo a manutenção do governo de ultraesquerda e, como programa máximo, abrir uma contestação incisiva à dinâmica vigente na UE, objetivando a sua "reforma democrática". O primeiro objetivo foi alcançado e o governo sobreviveu. O segundo não é uma proposta apenas de Tsipras, mas sem dúvida toca no desafio mais profundo da UE.
A vitória do Syriza no referendo pôs em xeque o projeto europeu, uma vez que se poderiam estabelecer elementos disruptivos preocupantes, dentro e fora da Europa. Todos os atores envolvidos, mais a observação ativa dos EUA, levaram isso em conta quando se sentaram à mesa para negociar os termos do acordo proposto por Tsipras, depois de aprovado no Parlamento grego. O resultado das negociações foi um programa de austeridade que muitos consideram draconiano, mas que o líder do governo grego foi forçado a aceitar, mantendo a disposição de defendê-lo perante seus concidadãos. Afora as promessas de redução e alongamento da dívida, Tsipras ressaltou a importância da manutenção da soberania grega ante o controle dos processos de privatização e enfatizou o prazo de três anos bem como o montante de recursos que a Grécia irá receber para voltar a ter alguma estabilidade e retomar do crescimento. Aprovadas as primeiras medidas, o Parlamento grego deu um claro sinal aos credores da UE de que deverá seguir aprovando os demais itens do resgate, e o risco de uma ruptura da Grécia com a zona do euro estaria afastado, pelo menos dentro das condições acordadas até o momento.
O cenário ainda é intrincado e o governo grego segue navegando em águas tempestuosas. Está claro que o referendo serviu muito mais aos propósitos políticos do Syriza de se legitimar externamente do que às opções que constavam na confusa cédula eleitoral. Contudo, o referendo gerou ilusões e, como se viu, produziu pouca sustentação política e credibilidade ao governo grego diante de uma Alemanha que passou a radicalizar mais ainda suas posições em relação ao país helênico, defendendo inclusive sua exclusão temporária da UE. No contexto das tratativas, Merkel buscava transformar a derrota tática numa vitória estratégica, endurecendo os termos e as condições do acordo. Em nenhum momento reconheceu que evitar o referendo, antecipando um acordo mais razoável, como propôs o primeiro-ministro Matteo Renzi, seria a coisa mais acertada a fazer.
No pós-referendo, as divisões do Syriza já eram esperadas, visto sua composição ideológica. A recusa de apoio a Tsipras por alguns parlamentares do Syriza resultou na perda da maioria no Parlamento. Registre-se que houve renúncia de ministros adstritos ao partido e que a maioria do CC do Syriza se colocou contra a aprovação dos termos do ajuste. Explicável, portanto, que nesse contexto tivesse ressurgido o fantasma da traição, uma noção que esteve presente no repertório dos piores momentos da história da esquerda mundial. Uma fórmula reconhecidamente débil e instrumental.
Apesar de condutas muitas vezes paradoxais, Tsipras caminhou, em meio à turbulência, em direção a uma postura de "esquerda de governo", superando a fase de construção retórica e simbólica de seu partido-movimento. Uma atitude saudada, inclusive, pelo Podemos, desde a Espanha. Guardadas as diferenciações de época e de circunstância, se Tsipras conseguir se manter no governo por mais algum tempo (já se fala em eleições antecipadas em setembro), terá realizado uma operação à François Mitterrand, que, depois de ter vencido em aliança com os comunistas, rompeu essa aliança para superar a crise inicial do seu governo. Uma opção que nunca esteve disponível a Salvador Allende, no Chile, uma década antes.
É relevante pensar por que se estabeleceu uma idolatria da vitória do "não" no referendo grego. Mesmo diante de uma situação dramática e quase sem saídas para a Grécia, essa idolatria acabou produzindo uma sensação ilusória de assalto aos céus, alçando o país a um lugar paradigmático e simbólico. Alguns, como Alain Badiou, anteciparam a necessidade de criar "brigadas internacionais", como aquelas que se formaram na guerra civil espanhola, para apoiar o governo grego! Numa versão não tão pedestre, no interior da vertente intelectual que vê de maneira catastrófica a situação da esquerda europeia, cultivou-se a ideia de que um "país atrasado" (para os padrões europeus), com economia combalida e ferido de morte por décadas de parasitismo em relação ao Estado e aos recursos da UE, seria capaz de redirecionar, mesmo em estado quase terminal, a estratégia da esquerda mundial ao sinalizar o rumo para o enfrentamento ao capitalismo financeiro. Nessa fabulação extemporânea da teoria das "vantagens do atraso", o desastre grego foi tomado como uma vantagem para se estabelecer uma via plebiscitária de superação do capitalismo. São argumentos fundados num mimetismo ideológico flagrantemente anacrônico. A "questão grega" acabou reduzida, assim, à falácia da democracia direta, que pensa a democracia contemporânea a partir de puros atos plebiscitários.
A "questão grega" nada mais é do que uma releitura da "revolução", conduzida por uma esquerda ancilosada ou por aquela que vê tal emblema como um "drama da multidão em atos". Isso, somado à cultura nacionalista e corporativa da direita, apenas fará com que a desejada "reforma democrática" da União Europeia seja deslocada para as calendas gregas.
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*Alberto Aggio é professor titular de História da Unesp
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