- O Globo
A discussão ora em pauta sobre a modernização da legislação trabalhista, a ser votada nesta semana no Senado, tem implicações morais que dizem respeito à própria autonomia dos cidadãos. Apresenta-se aqui uma verdadeira mudança de paradigma, centrada no trabalhador enquanto capaz de tomar suas próprias decisões, não necessitando da tutela do Estado.
Historicamente, esta legislação remonta, de um lado, ao positivismo e, de outro, à legislação corporativa, de cunho fascista. Na perspectiva positivista, clara em Augusto Comte e em seus discípulos franceses e brasileiros, tratavase de incorporar o “proletariado” à rede de proteção social, de tal modo que pudesse, por exemplo, ter garantias de salário e, principalmente, de educação.
Na perspectiva corporativa, tratava-se, por sua vez, da mesma ideia de incorporação, sempre e quando obedecesse à própria tutela do Estado a organizar estas relações em seu interesse político. O presidente Getulio Vargas, não esqueçamos, foi formado na tradição positivista gaúcha, que foi mais forte do que em outros estados da União.
Naquele então, estávamos diante de uma situação de exclusão do “proletariado”, que clamava por uma proteção inexistente. O preço a pagar era sua subordinação às orientações dos governantes que guiavam a sua conduta. Muito diferente é a situação atual, com os trabalhadores usufruindo constitucionalmente de direitos e com ampla capacidade de mobilização através de seus sindicatos.
O mundo mudou, e a legislação trabalhista não acompanhou esta mudança no país. O resultado de tal descompasso apresenta-se na extrema judicialização de qualquer conflito, com uma Justiça do Trabalho abarrotada de demandas e, ideologicamente, atrelada a um mundo que não mais existe. Aliás, diz-se de esquerda, o que não faz muito sentido, salvo na acepção de um positivismo ou fascismo de esquerda!
Tome-se um dos pontos centrais da atual proposta de modernização, o de que a convenção coletiva passaria a ter força de lei. Observe-se, inicialmente, que não há nenhuma subtração de direitos em questão, apesar das declarações vazias dos representantes deste passado corporativo e tutelar. Por exemplo, parcelar férias por decisão autônoma de empregadores e empregados não anula o direito de usufruir de férias, cuja duração não sofre nenhuma alteração.
O mesmo vale para as jornadas de trabalho segundo as especificidades de cada setor. O que é válido para um trabalhador da indústria automobilista não vale para os setores de enfermagem e vigilância. Caberia aos trabalhadores de cada setor, junto com os seus empregadores, decidirem o que convém mais para eles.
Uma vez que o acordo coletivo tenha força de lei, ocorre uma verdadeira restituição de direitos do ponto de vista da sociedade e dos trabalhadores em particular. O direito que está sendo conquistado é o de liberdade de escolha, direito central em qualquer Estado livre. Se os trabalhadores são tutelados, através de uma Justiça Trabalhista onipotente que legisla através de súmulas, eles são considerados como submissos, não livres, incapazes de tomarem uma decisão por si mesmos. Não são tidos por cidadãos, mas por súditos.
A autonomia dos indivíduos e de suas organizações, dentre as quais os sindicatos, é central em todo Estado pautado pelos princípios da liberdade. Deve a sociedade apropriar-se de sua liberdade de escolha, reduzindo a margem de arbítrio das intervenções legislativas impostas desde cima. Insista-se aqui que os trabalhadores e a sociedade em geral estão apropriando-se de direitos que lhe foram usurpados. Não há perda de direitos, porém conquista.
A linguagem de perda é produto de uma forma de organização estatal e legislativa guiada pela tutela dos indivíduos. Neste sentido, a perda de direitos deve ser entendida enquanto perda de um “direito estatal”, que tomou o lugar da liberdade de escolha. Ou seja, estaríamos diante de uma oposição entre tutela e autonomia. A linguagem de perda serve apenas aos que percebem a sua esfera de arbítrio como sendo reduzida.
Ademais, ela baseia-se igualmente em uma concepção ideológica segundo a qual se o capital ganha o trabalhador perde e o seu inverso. Seria um jogo do ganha-perde e não do ganha-ganha, que hoje preside as relações de sociedades capitalistas democráticas. Uma empresa só vai bem se os seus ganhos são compartilhados com todos.
Temos hoje o caso de conflitos trabalhistas cujas decisões de juízes inviabilizam pequenas e médias empresas, jogando outros trabalhadores ao desemprego e reduzindo, desta maneira, o pagamento de tributos que possuem destinações sociais. Os exemplos seriam inúmeros. A atual legislação atiça conflitos em vez de regulá-los e, mesmo, evitá-los.
O governo Temer tomou a ousada decisão de levar a cabo esta necessária modernização da legislação trabalhista, enfrentando preconceitos e interesses corporativos há muito arraigados. Note-se que ela foi implementada por seu ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que conduziu, preliminarmente, toda uma negociação com as centrais sindicais e as confederações patronais. Apostou e foi bem-sucedido no diálogo e na persuasão.
Observe-se que os pontos atualmente mais conflitivos foram os que não constaram daquela negociação, a saber, o do trabalho intermitente e o da extinção da contribuição sindical. Neste sentido, as centrais sindicais e as confederações patronais têm razão no protesto, uma vez que se ativeram ao que tinha sido negociado e foram pegas de surpresa com a mudança.
O bom senso sinalizaria para negociações sobre estes pontos, que poderiam, por exemplo, contemplar uma extinção progressiva da contribuição sindical em três anos, atendendo às partes envolvidas, ou outra solução levando em conta as especificidades dos setores urbano e rural.
Valeria o novo espírito de diálogo, e não o da imposição.
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*Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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