segunda-feira, 5 de março de 2018

*Almir Pazzianotto Pinto: A intervenção, do ponto de vista constitucional

- O Estado de S.Paulo

Enviar o Exército às ruas dará argumentos a quem prega a volta do regime de exceção

Intervenção do governo federal nos Estados é matéria de relevante interesse constitucional. Exceção feita à Carta imperial de 1824, jurada por dom Pedro I, as Constituições republicanas, democráticas ou autoritárias, cuidaram do assunto. O primeiro imperador não o fez porque competia a ele, e apenas a ele, nomear e remover, sem oposição, os presidentes das províncias (artigo 165).

A primeira Constituição republicana, promulgada em 1891, adotou o modelo federativo, constituído pela união perpétua e indissolúvel das antigas províncias, com o nome de Estados Unidos do Brasil. Para lhes preservar a autonomia, deliberou o Congresso Constituinte que o governo federal não poderia “intervir em negócios peculiares aos Estados”, salvo “para restabelecer a ordem e a tranquilidade, mediante requisição dos respectivos governos” (artigo 6.º, § 3,º).

Triunfante a Revolução de 1930, Getúlio Vargas assumiu a chefia do governo provisório munido de poderes para nomear “um interventor para cada Estado”, prerrogativa confirmada pela Carta autoritária de 10 de novembro de 1937, e da qual não abriria mão durante 15 anos à frente do Poder. Derrubada a ditadura, em 29 de outubro de 1945, a Assembleia Constituinte, eleita “para organizar um regime democrático”, tomou como modelo o artigo 12 da Constituição de 1934 e prescreveu, no artigo 7.º da Constituição de 1946: “O Governo Federal não intervirá nos Estados, salvo para: I) manter a integridade nacional; II) repelir invasão estrangeira ou de um Estado em outro; III) por termo a guerra civil”.

Promulgada pelo presidente Castelo Branco durante o regime militar (1964-1965), a Constituição de 1967 fortaleceu o Poder Executivo e enfraqueceu o Legislativo e o Judiciário. Para o enfrentamento de movimentos radicais de esquerda, também conhecidos como subversivos, a Lei Superior concedeu à União o direito de intervenção nos Estados para “pôr termo à perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção ou à corrupção no poder público estadual” (artigo 10, III). Tomado o texto constitucional ao pé da letra, greves, passeatas e comícios poderiam servir de pretexto à intervenção federal.

O Decreto n.º 9.288, de 16/2, assinado pelo presidente Michel Temer, peca pela inconsistência. Fundamenta-se no inciso III do artigo 34 da Constituição federal em vigor. Diz o dispositivo: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (...) III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.

Trata-se de hipótese não prevista nas Constituições anteriores, cujo defeito decorre da ambiguidade das expressões. Afinal, qual o significado de “grave comprometimento”? A ordem pública, na antiga Cidade Maravilhosa, encontra-se a tal ponto descontrolada que se mostrou obrigatório submetê-la à intervenção de general investido de poderes excepcionais?

Os problemas do Rio de Janeiro têm raízes na caótica situação social, com repercussões na segurança pública. Segundo a Constituição trata-se de assunto da assunto de alçada policial, não militar (artigo 144). Trago à colação as palavras do interventor, general de Exército Walter Sousa Braga Netto, ao jornal O Estado de S. Paulo: “A situação é grave, mas não está fora de controle”. Ou a análise objetiva do seu superior hierárquico, general Eduardo Villas Boas, comandante-geral do Exército: “Desafios enfrentados pelo Rio ultrapassam o escopo da segurança, alcançando aspectos financeiros, psicossociais, de gestão e comportamentais” (12/2, página A12).

Reportagens não revelam a cidade com as instituições em colapso. Vemos soldados munidos de armas de guerra e veículos blindados tendo ao lado estudantes a caminho da escola, mães com crianças no colo, donas de casa de volta das compras, ônibus e metrô lotados, o comércio à espera de compradores, milhares de pessoas na praia. Os serviços públicos funcionam e o futebol atrai torcedores para os estádios. Nada se assemelha a uma insurreição generalizada.

A História do Rio de Janeiro, a partir do momento em que deixou de ser a capital da República, é marcada por crescentes problemas sociais, refletidos na expansão da pobreza e da criminalidade, nos confrontos entre facções do crime organizado em disputa por pontos de tráfico e pelo controle das penitenciárias. A violência ganhou corpo no governo Moreira Franco (1987-1990) e se aprofundou a partir do segundo governo Leonel Brizola (1991-1994). Basta assistir aos filmes Rio Zona Norte (1957), Rio Babilônia (1982), Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 (2016) e ler o livro Um País Chamado Favela (Renato Meirelles & Celso Athayde, Editora Gente, 2014) para perceber que a população é vítima da decomposição crônica da economia e de governos incapazes ou corruptos, ou corruptos e incapazes.

Nesse sentido escrevem Meirelles e Athayde: “A decadência política do Rio de Janeiro preparou o declínio econômico, empurrando para as adjacências da zona sul da cidade os aglomerados de trabalhadores pobres e suas famílias. Os morros foram invadidos. As favelas proliferaram” (página 9).

São mais de 6 milhões de habitantes, dos quais cerca de 2 milhões de favelados, distribuídos em aproximadamente 900 comunidades. A quantidade estimada de assaltantes, traficantes, milicianos talvez não ultrapasse mil.

Só o Palácio do Planalto julga necessária a intervenção das Forças Armadas, a pretexto de “grave comprometimento da ordem pública”, onde o que temos são famílias pobres, mas trabalhadoras, vítimas da corrupção, da violência, da péssima distribuição de renda, da alta taxa de desemprego, da falência dos serviços de saúde e de educação.

Enviar o Exército às ruas compromete a imagem do Estado Democrático de Direito e dará argumentos a quem prega a volta do regime de exceção.
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*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

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