segunda-feira, 5 de março de 2018

Tônia Carrero (1922-2018)

Ícone da beleza, atriz quebrou barreiras e reinventou sua imagem ao longo de mais de 60 anos de carreira. Com talento, inteligência e elegância, marcou os palcos encenando Shakespeare, Sartre e Plínio Marcos

Em 1967, atriz fez campanha pela liberação de peça censurada pela ditadura militar

Patricia Espinoza | O Globo

Antes mesmo de estrear como atriz, em 1947, a beleza de Tônia Carrero já era uma espécie de lenda na cidade. Frequentadora das reuniões de intelectuais e artistas na casa de Aníbal Machado, nos anos 1940, encantou de Carlos Drummond de Andrade a Rubem Braga. Ao longo de mais de 60 anos de carreira, no entanto, a atriz, nascida no Rio em 1922, não se contentou com os louros de mulher bela. Diva no teatro, no cinema e na televisão, aliou elegância, inteligência e talento. E ainda reinventou sua imagem no final dos anos 1960, com escolhas ousadas nos palcos.

— Ela era uma deusa, uma mulher linda — avalia a jornalista e escritora Tânia Carvalho, que escreveu com a atriz a biografia “Tônia Carrero — Movida pela paixão”. — Foi difícil vencer esse estigma, mas ela soube usar isso ao seu favor. Não ficou fazendo sempre as mesmas coisas numa carreira padrão. Ela preferiu quebrar barreiras, não ficar no óbvio.

Nascida Maria Antonieta Portocarrero, adotou o nome artístico por sugestão de sua professora de canto. Filha de pai militar e mãe dona de casa, cursou teatro em Paris, na década de 1940, com o respeitado Jean Louis Barrault, instigada pelo seu primeiro marido, o artista plástico Carlos Arthur Thiré. Antes de partir para a França, fez um pequeno papel no filme “Querida Susana” (1947), de Alberto Pieralisi.

“Extremamente jovem, bonita e inteligente”. Assim o “Correio da Manhã” definiu, em 1949, a carioca que despontava como atriz no cinema e estava prestes a estrear no teatro com “Um deus dormiu lá em casa”, de Guilherme Figueiredo. Ela iniciava nos palcos como protagonista da peça, que ainda contava com seu marido na cenografia e figurino. Em sua coluna no jornal O GLOBO, o crítico Gustavo Doria foi só elogios à atuação. “Prodígio”, “talento magnífico” e “revelação estarrecedora” foram alguns dos adjetivos. “Dir-se ia não uma estreante, mas uma atriz de longo tirocínio, que alia à belíssima figura um talento dos maiores”, exultou o jornalista.

Contratada pela Vera Cruz, uma série de filmes mudam sua vida. Em sua maioria comédias ligeiras, os trabalhos fazem de Tônia uma musa, uma artista de beleza inquestionável, enquanto seu talento interpretativo pouco a pouco se modela, até a chegada do sucesso “Tico-Tico no seu fubá” (1952), dirigido pelo italiano Adolfo Celi, que se torna o seu segundo marido. Juntos, viajam a Cannes onde o longa compete e Tônia causa furor. Dividida entre convites internacionais e o apelo do marido, opta pelo retorno ao país e assume o teatro como seu destino.

Foi no palco, portanto, que ela amadureceu e se firmou como uma atriz multifacetada. Com Adolfo Celi e o seu grande amigo Paulo Autran fundou a Companhia Tônia-Celi-Autran (CTCA), que estreou numa antológica montagem para “Otelo”, de Shakespeare. Focada no trabalho do ator, cuja função devia “transcender o aspecto técnico para se tornar um instrumento de emoções”, dizia Celi, a companhia coloca em prática seus princípios: a interpretação isenta de estrelismo e a importância preponderante do texto como fonte de pesquisa e busca de linguagem. Autores como Carlo Goldoni, Jean-Paul Sartre e Georges Neveux são encenados, até que o fim da companhia e do casamento lançam a atriz numa nova fase, ainda mais obcecada e fascinada pelo teatro.

Entre o fim dos anos 1960 e durante a década de 70, Tônia supera toda possível desconfiança em relação às suas habilidades cênicas e enfileira uma série de grandes atuações, muitas delas premiadas, com textos e diretores consagrados. Em 1967, a atriz deu uma virada de 180 graus na carreira ao encarnar a prostituta Neusa Suely em “Navalha na carne”, de Plínio Marcos. Se engajou publicamente para liberar a peça, que havia sido censurada pela ditadura. Em “Movida pela paixão”, Tônia lembrou que, naquele ano, em pleno governo Costa e Silva, foi até o gabinete do ministro da Justiça Gama e Silva, e defendeu um teatro com “liberdade de pensamento e sem censura”. O ministro acabou liberando o texto, mas disse que Tônia iria “se arrepender” quando o público a ouvisse dizer as “palavras de baixo calão” da prostituta de Plínio Marcos. Longe de se arrepender, a atriz ainda levou os prêmios Molière e da Associação de Críticos Cariocas pelo papel.

— Eu me lembro da Tônia na linha de frente na passeata (dos Cem Mil) de 1968, nas escadarias do Teatro Municipal, gritando contra a censura, contra a ditadura, ao lado de guerreiras como Leila Diniz — conta Renata Sorrah, que contracenou com ela em três novelas. — Neste momento tão difícil que vivemos, esses exemplos de mulheres fortes lutando pelo país são muito importantes.

Tônia confessou que ficou anos esperando que a convidassem para fazer novelas. Sua estreia na TV foi em “Sangue do meu sangue”, dirigida por Sergio Britto. Fez sucessos como “Pigmaleão 70” e “Sassaricando”, mas seu papel mais lembrado é o de Stella Fraga Simpson em "Água viva" (1980), de Gilberto Braga. Seu último trabalho na TV foi a novela “Senhora do Destino” (2004) e, no cinema, o longa “Chega de saudade” (2007), de Laís Bodansky.

— Ela lutou para provar que, além de linda, tinha muito talento — diz a atriz Eva Wilma, que contracenou com Tônia em “Sassaricando”. — Deixou isso claro com “Navalha na carne”.
Tônia Carrero morreu no sábado à noite, aos 95 anos, de parada cardíaca, no Rio. Estava internada na Clínica São Vicente, na Gávea, para a realização de um procedimento cirúrgico (o hospital não deu detalhes), mas não resistiu. “Adespedida dela tinha que ser no teatro, neste teatro", defendeu a atriz Luísa Thiré, neta de Tônia Carrero, durante o velório da avó, no Teatro Municipal, na tarde ontem. Tônia Carrero morreu na noite de sábado, aos 95 anos, vítima de uma parada cardíaca. Na despedida final, a principal casa de espetáculos da cidade recebeu familiares, amigos e fãs da atriz que em mais de 60 anos de carreira se tornou um dos principais nomes do país no teatro, no cinema e na televisão.

— O teatro era a vida dela, ela começou numa época em que fazer teatro era feio, era errado — disse Luísa. — Ela sempre fez muita questão de que fôssemos unidos. Conseguiu. E viveu seus 95 anos muito bem vividos

Entre os presentes no velório também estavam o único filho de Tônia, Cecil Thiré, além de famosos como Jacqueline Laurence, Stella Freitas e Sylvia Bandeira.

— Ela conseguiu fazer da vida exatamente o que quis fazer. E com isso deixou um rastro enorme. Ela tinha uma força incrível. Sempre teve o dom de unir as pessoas, e continua tendo. Hoje não é um dia de tristeza, mas de saudade — disse o neto Carlos Thiré.

Acompanhada dos filhos, Paulo e Beth Goulart, Nicette Bruno lembrou da época em que as duas trabalharam juntas, no início da carreira, na TV Excelsior.

— Ela estava ali começando em televisão também. Eu tive a oportunidade de participar de todos os inícios desse grande ciclo de profissão dela. Eu gostava muito dela, tínhamos uma amizade, não convivíamos muito, mas tínhamos um carinho muito especial uma com a outra. Ela ia assistir às minhas peças, foi na inauguração do meu teatro, foi ao meu casamento... O Brasil está chorando hoje, né? — contou a atriz. — É uma linda história. Essa fica. Para quem participou efetivamente no trabalho e para aqueles que tiveram a felicidade de, num momento qualquer de suas vidas, assistirem a uma apresentação da Tônia e tiveram a oportunidade de presenciar aquela beleza extraordinária que só ela possuía.

O ator Edwin Luisi lembrou que Tônia Carrero era conhecida pela beleza, mas fez questão de elogiar ainda a forma carinhosa como ela tratava os colegas: "A Tônia abria a casa dela para todos nós. Ela era um escândalo não só de beleza, mas também de generosidade." Ney Latorraca também falou sobre como Tônia gostava de ajudar os colegas.

— A Tônia, desde o começo, sempre me deu muita força na carreira. Era uma mulher linda, moderna, pra frente. Uma bela mulher e bela pessoa também. Saudades — resumiu.

A cremação do corpo de Tônia Carrero, como era seu desejo, ocorrerá hoje, ao meio-dia, no Memorial do Carmo.

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