- Valor Econômico
Supremo real está distante do projetado por Luís Barroso
O ministro Luís Barroso publicou longo artigo para defender o Supremo Tribunal Federal. Em "Nós, o Supremo", publicado na Ilustríssima do domingo retrasado, respondeu cada uma das críticas endereçadas por Conrado Hübner semanas antes. Basicamente, com o tato que lhe é característico, o ministro acatou todas as objeções, afirmando que serão resolvidas a seu devido tempo.
Entre as linhas, estava escrito 'serão resolvidas sob minha liderança, quando minhas posições se impuserem a dos demais'. Ao final da semana, contudo, deixando a civilidade, o ministro voltou a trocar 'sopapos verbais' com seu colega de Corte, o ministro Gilmar Mendes. A distância entre o Supremo imaginado por Barroso e o realmente existente é abissal.
Em seu artigo, Barroso defende que Cortes Supremas modernas cumprem três papéis: o contramajoritário, o representativo e o iluminista. O primeiro é o tradicional e os dois outros seriam 'modernos'. O STF vem sendo criticado porque os exerce, diz o ministro. E como os exerce bem, haveria motivos para comemoração e não críticas.
Independente da sua composição e dos problemas organizacionais que comprometem a atuação do STF real, mesmo que todos esses problemas fossem resolvidos, é para lá de discutível que seja recomendável dotar o STF com os poderes vislumbrados por Barroso.
Por papel representativo, Barroso entende a capacidade de atender "demandas sociais que não foram satisfeitas pelo Legislativo". Cita como exemplos do exercício desse papel a proibição do nepotismo, o fim do financiamento empresarial das campanhas e a imposição da fidelidade partidária. Nesses casos, diz o ministro, o Supremo não fez senão "acudir inequívocas reinvindicações da sociedade, não acolhidas em razão de um déficit de representatividade."
O ministro, portanto, reivindica para si e para seus pares a capacidade de identificar 'demandas sociais inequívocas'. As medidas citadas até podem ser classificadas como corretas e acertadas por inúmeros atores. Mas daí a convertê-las em 'demandas inequívocas' vai uma distância enorme.
O papel que confere ao Supremo, como se vê, é enorme, quando não ilimitado. Com base em qual critério pode o Supremo (ou qualquer mortal) identificar quais são as verdadeiras demandas da sociedade? Sinto informar o ministro que este critério ainda não foi encontrado e que esta é a matéria por excelência da política. Discordamos e acreditamos em coisas distintas.
Falar em déficit de representatividade é recorrer a um eufemismo. Os intérpretes da lei, tempos atrás, falavam em sociedade hipossuficiente para reivindicar protagonismo. Em uma palavra, sai 'nós, o povo' e entra 'nós, o supremo'. Para justificar a substituição, os juristas recorrem ao terceiro papel destacado por Barroso, o iluminista.
Segundo o ministro, essa função deveria ser exercida com "parcimônia e autocontenção" em "conjunturas em que é preciso empurrar a história." Grandiloquente, o ministro não economiza na pompa: "Em alguns momentos cruciais do processo civilizatório, a razão humanista precisa impor-se sobre o senso comum majoritário."
Espantoso que um constitucionalista deixe de notar a contradição: pode alguma instituição que acredita representar 'a razão humanista' se 'autoconter'?
O Supremo real está a quilômetros de distância do projetado por Barroso. Mas a construção teórica e retórica pede consideração, pois se baseia em diagnósticos correntes e disseminados sobre a natureza do conflito social e politico que divide a sociedade brasileira. Na visão de Barroso, tudo se resume a um conflito entre iluministas e obscurantistas, ou para usar uma linguagem mais antiga, entre o moderno e o atraso. Nessa visão, o lado que representa o progresso está, por definição, sempre certo, pois conhece as verdadeiras demandas da sociedade e tudo que faz é empurrar a história devida. A oposição é o passado, representa que amparados (ou explorando) o tradicional déficit de representação querem preservar o atraso. Não por acaso, ao se referir aos críticos do Supremo, o ministro Barroso evoca resistências oligárquicas.
Infelizmente, o mundo não é tão simples. Concretamente, as intervenções recentes do Supremo sobre a ordem política desmentem tal visão maniqueísta do mundo.
Tome-se como exemplo a verticalização das coligações eleitorais, imposta para vencer o localismo e dar lugar à nacionalização e ao fortalecimento dos partidos. O resultado foi o inverso. Para os partidos menores, o melhor foi se retirar da eleição presidencial e concentrar forças nas disputas locais.
A derrubada da cláusula de barreira foi justificada a partir da necessidade de defender as minorias contra a força avassaladora da maioria. As minorias (pequenos partidos) agradeceram a proteção e a passaram adiante, vendendo o direito recebido (tempo de rádio e TV) às maiorias (grandes partidos).
O maior exemplo iluminista citado por Barroso, a proibição de que empresas contribuam para campanhas, coloca as mesmas dificuldades. Atores reveem sua estratégia e encontram meios alternativos para fazer valer suas pretensões. Achar que uma penada resolve o problema da influência do dinheiro na política é manifestar ingenuidade colossal. Na realidade, revela completo desconhecimento da realidade que se quer reformar. Mal comparando, a reforma equivale a retirar da sala o sofá em que o adultério era cometido.
Conflitos políticos não se resumem ao confronto entre o racional e o irracional, o iluminismo e o obscurantismo, o moderno e o atrasado. Membros da sociedade divergem sobre o que acham certo e errado e, por isso mesmo, devem desconfiar dos que se acreditam intérpretes autorizados da razão e da história, quanto mais daqueles que se sentam em uma instituição que se intitula suprema. Mesmo se representasse o senso comum, o nós que deve prevalecer é o que emana da maioria. Assim funcionam as democracias.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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