- Valor Econômico
Candidatura avulsa favoreceria estrelas de TV e endinheirados
"Eu nunca submeti minhas opiniões ao credo de um partido, na religião, na filosofia, na política, ou em qualquer outra coisa em que eu fosse capaz de pensar por mim mesmo. Esse vício é a degradação mais completa de um agente moral e livre. Se eu só pudesse ir ao paraíso juntando-me a um partido, eu não iria lá de forma alguma." Esse é Thomas Jefferson, em tradução livre. Sabe-se lá se Jefferson teve seu acesso ao paraíso franqueado, mas se sabe que, quando tratou de chegar à Presidência, não hesitou em organizar o primeiro partido político da era moderna.
Partidos políticos não são bem vistos. É natural que seja assim. Jefferson sintetiza bem as razões desse descrédito generalizado. Integrar um partido corresponderia à perda da independência e da autonomia, sacrificando o juízo próprio.
Partidos, além disso, dividem a sociedade. Por definição, são partes que querem governar a todos. Difícil conciliar as duas pontas desta proposição, a de serem partes e a de pretenderem representar o interesse geral. Por isto mesmo, não é difícil acusar partidários de se servirem do governo para promover seus interesses particulares, de serem os veículos de que se servem os ambiciosos para chegar ao poder.
No mundo ideal do governo representativo, não há lugar para partidos. A política seria um reino frequentado apenas pelos indivíduos dotados de autonomia moral, intelectual e econômica. Os verdadeiramente independentes estariam acima dos interesses que dividem a sociedade e, porque dotados dessa superioridade, seriam capazes de agir como magistrados, governando sem tomar partido nas controvérsias que colocam os demais em confronto quando se trata de discutir religião, filosofia e, sobretudo, distribuir bens materiais. Homens com essas qualidades não se candidatariam; seriam convocados a servir ao interesse público.
Neste modelo, somente os que tivessem garantida a sobrevivência - os que não precisariam trabalhar para viver- deveriam se dedicar à política. Este é o caso de Jefferson, cuja independência para agir como um 'agente moral livre' estaria garantida pela sua fazenda e pelo trabalho de seus escravos.
Ecos deste mundo idealizado embasam as demandas recentes em prol das candidaturas avulsas. Notícia recente no "JOTA" deu conta da realização de uma Convenção Nacional para Candidaturas Apartidárias, cujo objetivo seria 'concretizar o maior número de pedidos de registro de candidatos independentes'. O movimento recebeu o apoio da União Nacional dos Juízes Federais (Unajuf), cujo presidente, Eduardo Cubas, declarou que é preciso começar a reforma política pelo "reconhecimento das candidaturas avulsas".
Os termos utilizados merecem atenção: apartidários, avulsos e independentes são usados como se fossem sinônimos, como se denotassem a mesma coisa. Mais do que isso, chama a atenção que a União Nacional dos Juízes encampe o movimento. Aí tem coisa, pois não? Ainda mais interessante é a estratégia adotada, a de direcionar para Supremo Tribunal Eleitoral a 'responsabilidade' pela decisão. Em outras palavras, o Dr. Cubas quer contornar a Constituição. Lá está escrito com todas as letras que candidatos devem se filiar a partidos. Como juízes e promotores não podem se dedicar a atividades político-partidárias, segue que não podem se candidatar a cargos eletivos.
Ou seja, o Dr. Cubas está advogando em causa própria. Mais do que isso, quer que membros de seu próprio grupo, os juízes, decidam a questão. Como todo ardil deste tipo, a demanda vem revestida da defesa do interesse geral, como parte de uma reforma que livraria a política dos interesses sinistros dos políticos profissionais. Para os membros da casta de toga, tanto quanto para Thomas Jefferson, interessados são os outros. Interessante é que, no caso do Dr. Cubas, a independência econômica é garantida pelo polpudo salário que recebe do Estado.
A Procuradora-Geral da República veio em socorro da Unajuf e dos demais interessados na questão. Em parecer enviado ao Ministro Luís Roberto Barroso, responsável pela análise da questão no STF, a Dra. Raquel Dodge argumentou que a filiação partidária não está entre as restrições à elegibilidade elencadas pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Restrições a juízes e membros do Ministério Público também não são mencionadas, ainda que as relativas à instrução o sejam. O essencial é a conclusão a que a Dra. Dodge chega: a de que a Justiça Eleitoral teria razões para desconsiderar a vedação constitucional às candidaturas avulsas. Quando se trata de fazer valer seus interesses, sempre se encontra uma forma elaborada para ignorar o texto constitucional.
A ideia de que deveríamos ser governados por uma elite de homens públicos desinteressados tem enorme apelo, mas não passa da mais pura ingenuidade acreditar que candidaturas avulsas nos levariam a esse mundo idealizado.
Digamos que a medida tenha o condão de estimular a entrada na política de pessoas verdadeiramente independentes, desinteressadas e comprometidas apenas com a coisa pública. Como os eleitores saberão distingui-los dos demais? Para merecer o voto dos eleitores, um cidadão precisa se destacar dos demais, precisa ser conhecido e reconhecido e isso não ocorre naturalmente, mesmo que a disputa se restrinja a homens independentes. Neste caso limite, o candidato teria que dar mostras de ser o mais independente entre todos os independentes.
Descendo à realidade, cabe pensar como os possíveis candidatos avulsos poderiam se fazer conhecer pelos eleitores. É evidente que celebridades de todo o tipo, incluindo os justiceiros, as estrelas de TV e os endinheirados, serão os grandes beneficiários da reforma.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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