sábado, 3 de outubro de 2020

João Gabriel de Lima - Duas noites na ópera e uma briga de rua

- O Estado de S. Paulo

É inevitável a sensação de que algo se perdeu nas duas maiores democracias das Américas

Em setembro de 2015 Fernando convidou Fernando para ir à ópera. Um Fernando, o Haddad, era prefeito de São Paulo, e gostava trocar ideias com outro Fernando, o Henrique Cardoso, que havia sido presidente da República. Os dois tinham algo em comum além do nome. Eram intelectuais formados na esquerda movendo-se na selva da política. Em uma das conversas entre ambos, Haddad lembrou que Cardoso gostava de ópera, e o convidou para assistir à Manon Lescaut, de Puccini, no Teatro Municipal.

Ruth e Antonin também gostavam de ir juntos à ópera, no Metropolitan de Nova York. Ruth era Ruth Bader Ginsburg, juíza liberal nomeada por Bill Clinton. Ela defendia a igualdade de gêneros brandindo argumentos da Constituição americana. Antonin era Antonin Scalia, remanescente do conservadorismo com base intelectual dos tempos de Ronald Reagan. Amicíssimos para além das divergências, a liberal e o conservador se igualavam no brilho jurídico, na ironia – e no gosto pela ópera. O escritor Paulo Nogueira, colaborador do Estadão, lembroume que o compositor Derrick Wang homenageou em música a verve e a inteligência dos dois juízes da Suprema Corte americana. A ópera Scalia/ginsburg estreou em 2015, o mesmo ano em que um Fernando convidou o outro para ir ao Municipal.

Cinco anos se passaram. Em 29 de setembro de 2020, terça-feira passada, o mundo assistiu ao debate entre os candidatos à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump e Joe Biden.

O republicano interrompia o democrata a todo momento para provocá-lo. Irritado, Biden chamou Trump de “mentiroso”, “palhaço” e “cachorrinho de Putin”. Foi uma briga de rua em live streaming.

Cinco anos se passaram. Em 2015, o Brasil ainda não vivera seu segundo impeachment. PT e PSDB frequentemente baixavam o nível do debate, mas, diante do que vemos hoje, o termo “polarização” soa exagerado para as rusgas entre os dois partidos forjados na USP. Em 2015 ninguém levava a sério a candidatura de Jair Bolsonaro – este sim um político polarizador – à Presidência da República. Nos Estados Unidos, em 2015, o termo “fake news” começava a entrar na moda – e Donald Trump igualmente não era levado a sério como postulante à Casa Branca.

Cinco anos se passaram. Recentemente, a deputada conservadora Janaína Paschoal e o parlamentar progressista Marcelo Freixo debateram no Youtube. Ambos foram criticados nas redes sociais, apenas por conversar de forma amigável com quem pensa de maneira diferente.

Quando me contou sobre sua noite na ópera com Haddad, Fernando Henrique disse que tentou se manter discreto no camarote, para evitar problemas para o então prefeito. Não foi possível. Os jornais farejaram a foto histórica. Fernando Henrique e Fernando Haddad – personagem do minipodcast da semana – posaram sorridentes, sem constrangimento.

Quando o juiz Scalia morreu, em 2016, a juíza Ginsburg fez seu elogio fúnebre. Lembrou uma tirada irônica de Scalia sobre a amizade dos dois: “Eu combato ideias, não pessoas. Ótimas pessoas podem ter péssimas ideias”. Ruth Bader Ginsburg morreu neste ano, recebendo merecidíssimas homenagens – mas também alguns impropérios de trumpistas nas redes sociais.

Cinco anos se passaram entre as duas noites na ópera e a briga de rua em live streaming. É inevitável a sensação de que, em apenas cinco anos, algo se perdeu nas duas maiores democracias das Américas.

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