Marcos redondos têm valor simbólico, mas pouco significam na análise estatística
Marcos
numéricos redondos têm valor simbólico, mas pouco significam para a análise
estatística. Dias
atrás, mundo afora, as manchetes destacaram a (falsa) ultrapassagem da
fronteira do milhão de mortos por Covid-19. Certamente o limite foi rompido
antes, mas não enxergamos a placa graças à subnotificação generalizada. De
qualquer forma, é um sinal da escala da pandemia —e, ainda, um alerta sobre a
arrogância humana.
Um
milhão é muito ou pouco? Não vale comparar a pandemia com fenômenos cujas
causas, temporalidades e espacialidades são distintas, como guerras, atentados
terroristas, mortes no trânsito ou tsunamis. Pandemias devem ser cotejadas com
pandemias; doenças com doenças.
A
tuberculose mata, anualmente, cerca de 1,5 milhão; a diarreia infecciosa, 1,4
milhão; a Aids, 950 mil; a malária, 620 mil; as gripes comuns, 650 mil. A OMS
estima até mais um milhão de óbitos pelo coronavírus antes da vacinação em
massa —e isso com o cortejo de restrições sanitárias aplicadas pelos governos.
É muito.
Ninguém
sabe ao certo quantos morreram na gripe espanhola de 1918. As estimativas variam
de 18 milhões a 50 milhões. A mortalidade giraria, portanto, entre 1% e 2,7% da
população mundial de 1,8 bilhão. Naquele ano, pela última vez na história,
registrou-se crescimento demográfico global negativo. A Covid, em contraste,
ceifará menos que 0,03% da população do planeta e será praticamente
indetectável nos gráficos da dinâmica demográfica. É pouco.
Muito
ou pouco, depende do ponto de vista. O
número assombra os arautos da "gripezinha". Osmar Terra, guru
especialista de Bolsonaro, profetizou um máximo de 2.000 mortes no Brasil, num
ciclo epidêmico limitado a 13 semanas. Qual seria o saldo de óbitos pelo vírus
se, como queria o presidente, tivéssemos escolhido prosseguir a "vida
normal"?
Na
ponta oposta, o milhão global de mortos desmente os profetas que, inspirados
pelo Imperial College, imaginaram algo como uma reedição da gripe
espanhola. Atila
Iamarino projetou "um milhão de pessoas mortas" —mas apenas
no Brasil e somente até o final de agosto. Isso, no "cenário de mitigação
que a gente está fazendo", ou seja, fechando "escola, transporte,
trabalho". Qual seria nosso saldo de miséria, desemprego, desespero e
violência social se, como queria o fundamentalismo epidemiológico, tivéssemos
optado pela via do "lockdown" eterno?
O
erro é parte da experiência humana: ninguém deve ser estigmatizado por
equívocos de boa-fé. Mas as profecias hiperbólicas simétricas evidenciaram
complexos intercâmbios entre o discurso científico e as narrativas políticas.
Os
2.000 de Terra ajudaram a extrema-direita a conferir um simulacro de
legitimidade científica ao negacionismo criminoso de Bolsonaro. O milhão de
Iamarino contribuiu com o esforço da esquerda de reivindicar o impossível para,
na sequência, acusar todos os governantes adversários de negligência criminosa.
A polarização política fecha caminhos à difícil busca do equilíbrio entre as
demandas contraditórias da saúde, da economia e das liberdades públicas.
Até
aí, porém, singramos na superfície. Atrás das profecias minimalistas oculta-se
a arrogância diante da natureza: o vírus pode ser ignorado, pois a economia é
tudo. Já as profecias maximalistas expressam a arrogância diante da sociedade:
a vida social, o emprego, os direitos individuais podem ser cancelados
indefinidamente, pois o vírus é tudo. Numa ponta, despreza-se a perspectiva
aterradora de pessoas morrendo sem atendimento às portas de hospitais
superlotados. Na outra, a paisagem perversa da militarização das cidades, de
suas periferias e favelas, decorrente da estratégia utópica de supressão
completa dos contágios.
Um
milhão é muito ou pouco? Sei lá. No meu mundo ideal, seria um chamado à
humildade, à dúvida e ao diálogo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário