domingo, 18 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

A situação calamitosa dos presos provisórios – Opinião | O Globo

Caso do traficante solto pelo STF chama atenção para os 40% dos encarcerados sem condenação

Há um “estado de coisas inconstitucional” nas prisões brasileiras, disse recentemente o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A definição resume as contradições nos três Poderes sobre a política penal, postas a nu pela liberação do narcotraficante André do Rap, mesmo condenado em segunda instância a penas que superam 25 anos de cadeia.

A rigor, o Legislativo habituou-se a escrever leis sobre novos tipos penais em resposta à sociedade angustiada com as taxas de criminalidade. O Executivo reluta na necessária reforma da segurança pública e dos presídios. O Judiciário aplica o poder punitivo com uma seletividade que se tornou estrutural. Todos supõem que está tudo resolvido, até que se chocam com a realidade.

Evidência desse “estado de coisas inconstitucional” foi ressaltada pelo ministro Alexandre de Moraes no julgamento da semana passada: a situação de precariedade em que se encontram quatro em cada dez encarcerados, os presos provisórios.

A Justiça mantém 40% dos presos recolhidos sem condenação definitiva. Ou em razão de prisão em flagrante, ou prisão temporária à espera de pronúncia, ou ainda de sentença recorrível. É uma situação esdrúxula, reveladora do risco de deterioração do Estado resultante dos danos sistêmicos derivados da tendência ao encarceramento. Moraes lembrou, apropriadamente, que a média de presos provisórios no Brasil é o dobro da mundial (20%) e muito acima da europeia (9%).

Por coincidência, enquanto o Supremo discutia o problema, o Superior Tribunal de Justiça certificava sua gravidade e determinava que fossem soltos todos os presos cuja liberdade dependesse apenas do pagamento de fiança. Não se sabe exatamente quantos são os beneficiários da decisão. É certo, porém, que, dos 337 mil atualmente atrás das grades sem condenação definitiva, quase 70% foram presos em razão de crimes considerados de subsistência: delitos contra o patrimônio, como furtos, roubos ou tráfico de drogas no varejo.

É frequente, em tais casos, o aprisionamento por até quatro anos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Como lembra o juiz Raúl Zaffaroni, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, há um século e meio predomina o entendimento de que penas de prisão provisória são reprodutoras de crimes. No Brasil, o Estado que prende os pequenos criminosos, os alimenta e paga pensão a suas famílias na realidade acaba por oferecê-los como mão de obra gratuita ao crime organizado nos presídios.

Não se trata de problema insolúvel, demonstra a experiência conduzida no Piauí em 2018, onde 71% dos presos eram provisórios. No ano passado, de acordo com o CNJ, a proporção caiu a 39% dos encarcerados. A solução exige iniciativas cooperadas entre os três Poderes. E, principalmente, mais eficiência do Judiciário.

Bolívia vai às urnas sob temor de violência, com a economia em coma – Opinião | O Globo

Se houver sensatez, o novo eleito e o futuro líder da oposição se unirão num acordo de salvação nacional

As longas filas nas portas dos bancos e nos postos de gasolina de La Paz, durante toda a semana, traduziram a incerteza da maioria dos 11 milhões de bolivianos sobre o futuro a partir das eleições presidenciais de hoje. Eles assistiram em novembro passado à dramática renúncia de Evo Morales, frustrado na tentativa de se perpetuar na presidência depois de década e meia no poder. Os indícios de fraude eleitoral derivaram em conflitos que deixaram 37 mortos e mais de 800 feridos, segundo a Defensoria Pública.

Morales, exilado na Argentina, é o sujeito oculto da eleição. Impulsionou o candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Luis Arce, ex-ministro da Economia, à liderança nas pesquisas. Arce é seguido de perto pelo ex-presidente Carlos Mesa, líder de uma coalizão de centro-direita. A radicalização semeia temor de reedição da violência do ano passado, num país cuja economia se encontra em estado de coma.

Os gastos públicos foram multiplicados na pandemia. Pelas contas do Colégio Nacional de Economistas, o déficit fiscal poderá chegar a 15% do Produto Interno Bruto, mais que o dobro do estimado. Será o sétimo ano consecutivo de contas públicas no vermelho. Nelas, destaca-se um legado da era Morales, o aumento expressivo dos gastos com pessoal. A folha salarial do governo central consome US$ 579 milhões por mês, o equivalente a 15% das reservas cambiais do país, estimadas em US$ 3,7 bilhões.

Não há mais “ajuda” brasileira, via antecipação de pagamentos pela importação de gás. Mas, como não se faz campanha eleitoral sem utopia, todos os partidos adotaram a mesma promessa de “salvação” nacional: a exploração e industrialização do lítio. A Bolívia tem uma das maiores reservas desse insumo básico da indústria eletrônica, mas nunca conseguiu explorá-las a contento.

A gravidade da crise levou o governo interino a pedir socorro a organismos como o Banco Mundial. Chegou a acertar créditos de US$ 300 milhões, que acabaram bloqueados pela bancada parlamentar do ex-presidente Morales. Agora, tenta empréstimo de US$ 7 bilhões. Equivale a 10% de uma dívida externa que já alcança 28% do PIB.

O duelo nas urnas entre os favoritos Arce e Mesa tem desfecho imprevisível. Se houver sensatez, o eleito e o futuro líder da oposição devem se socorrer num acordo pós-eleitoral, para pacificar o país e encaminhar mudanças vitais na estrutura social e econômica. Sem elas, haverá um novo ciclo de instabilidade, algo sempre perigoso numa república com histórico de quase uma centena de golpes de Estado.

O risco pós-covid – Opinião | O Estado de S. Paulo

O governo está encrencado, com dinheiro curto, grandes empréstimos perto de vencer, Orçamento emperrado e dívida pública batendo em 100% do PIB. Os credores sabem disso, quem empresta ao Tesouro exige prêmios maiores e há fortes sinais de inquietação no mercado. Mas o presidente, seus ministros “políticos” e os aliados presidenciais parecem surdos e olham para outro lado, como se finanças públicas fossem um assunto abstruso, abstrato e muito distante do dia a dia. Pior para o Brasil, esse enorme país em torno do Distrito Federal. Quando um governo quebra, a conta mais pesada – com desemprego e outros apertos – vai para quem batalha duramente para garantir o feijão com arroz, o aluguel, os cadernos das crianças e algumas prestações.

Dívidas de R$ 643 bilhões, mais que o dobro da média dos últimos cinco anos, devem vencer entre janeiro e abril. Em quatro meses será preciso pagar 15,4% da dívida interna. Com gastos muito maiores por causa da pandemia, o Executivo precisou buscar mais empréstimos e preferiu operações com prazos mais curtos, para evitar juros maiores. Mas prazos mais curtos – e muito curtos, no caso brasileiro – tornam a dívida mais perigosa. Em 2021 a economia avançará em marcha lenta e isso limitará a arrecadação, mas os gastos obrigatórios continuarão em alta.

Para enfrentar o aperto o Tesouro terá de ir ao mercado, mas as condições para rolar a dívida e conseguir mais empréstimos poderão ser piores, se os financiadores tiverem menos confiança na solvência do setor público. Sinais de insegurança quanto à evolução das contas oficiais têm sido fortes há alguns meses. São perceptíveis nas oscilações do mercado financeiro, nas advertências de investidores e analistas e na dificuldade crescente para colocação de títulos federais. O Banco Central (BC) tem dirigido alertas frequentes ao Executivo, até agora sem resultado.

As condições de financiamento poderão piorar se as notas de crédito do Brasil forem rebaixadas. Uma advertência ainda suave partiu há poucos dias da Moody’s, uma das principais agências de classificação. Ao decidir manter a nota, há alguns meses, a agência levou em conta as necessidades de maiores gastos e mais empréstimos neste ano, mas com a condição de um esforço de ajuste logo em seguida, disse na quarta-feira a vice-presidente e analista da Moody’s, Samar Maziad.

O Brasil está dois níveis abaixo do grau de investimento. As três maiores agências – Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s – tiraram o chamado selo de bom pagador no fim do governo da presidente Dilma Rousseff e depois ainda voltaram a rebaixar a classificação do País. O Executivo deveria levar a sério o risco de um novo rebaixamento.

Medidas eleitoreiras, voltadas para a disputa de 2022, estão entre as preocupações apontadas por analistas e investidores. A evidente concentração do presidente na busca da reeleição justifica o temor. Além disso, a equipe econômica se limita a reafirmar a promessa de retomar o ajuste fiscal e manter a pauta de reformas, sem apresentar um programa de ação. Não há plano de sustentação da economia nem sinais de como se pretende arrumar as finanças públicas.

A dívida oficial, com maior peso e menor prazo, é, no entanto, só uma parte dos problemas. O teto de gastos para 2021 deve ser baseado na inflação de 2,13% correspondente aos 12 meses até junho. Mas a alta de preços ganhou impulso e chegou a 3,14% no período terminado em setembro. Isso afetará, entre outras variáveis, a correção do salário mínimo e aumentará as pressões sobre os gastos públicos. Segundo relatório do BTG Pactual obtido pelo Estadão/Broadcast, será preciso cortar R$ 20 bilhões do gasto federal para evitar o estouro do teto.

Parte do aumento da inflação é atribuível ao dólar. Também isso remete à insegurança em relação às contas públicas e à solvência do Tesouro, temas obviamente ligados à campanha presidencial pela reeleição. Passado o choque da pandemia, os objetivos pessoais do presidente são a maior ameaça às contas públicas do Brasil.

‘Big techs’ e as economias emergentes – Opinião | O Estado de S. Paulo

FSB cita boas práticas internacionais que podem ser ponderadas por autoridades do País

Nos países desenvolvidos está em curso um debate acalorado sobre a regulamentação das chamadas big techs. A pandemia inflamou essa discussão, que agora se tornou incontornável também para os mercados em desenvolvimento.

Na contramão da maioria dos setores, as multinacionais de tecnologia ampliaram seus negócios de compras online, entretenimento e relacionamento social ou empresarial. Ao mesmo tempo, a Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados dos EUA, em um minucioso relatório sobre as chamadas “quatro grandes”, alega que elas não só operaram para conquistar monopólios, como abusaram de seu poder. O Departamento de Justiça norte-americano está a ponto de mover uma ação contra o Google por abuso de seu monopólio nas buscas online. Amazon, Apple e Facebook também estão sob investigações antitruste por agências federais e pelas procuradorias dos Estados.

A Comissão sugere uma reforma da legislação antitruste, da envergadura das realizadas na época dos barões do petróleo e depois no setor financeiro e no de alimentação. A proposta tem apoio bipartidário, embora os republicanos sejam mais cautelosos do que os democratas – sobretudo na ideia de fragmentar as cadeias de produção já constituídas pelas big techs. De todo modo, a proposta ganha tração. Uma pesquisa do Pew Research Center aponta que 72% dos americanos acreditam que as mídias sociais têm poder demais.

A dificuldade com as leis atuais é que são primordialmente focadas nos danos ao consumidor ou controle de preços. Mas o negócio das big techs é peculiar. A própria Comissão reconhece os “claros benefícios à sociedade” por meio da oferta de produtos inovadores ao público a baixo custo ou mesmo gratuitamente. Os danos ao mercado estão na cadeia de produção e fornecimento, por exemplo, na imposição de tarifas e termos contratuais excessivos ou no controle abusivo de dados.

Acima de tudo, é preciso um olhar atento à aquisição de concorrentes para eliminar a competição. A União Europeia, por sua vez, está em vias de editar uma legislação que obrigará as big techs a compartilhar suas reservas de dados com rivais menores.

Um diagnóstico do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB, em inglês), um instituto internacional independente que reúne autoridades financeiras para propor políticas de regulação e supervisão para os sistemas financeiros, traz luzes sobre o impacto das multinacionais de tecnologia nos mercados emergentes e em desenvolvimento.

Em termos de serviços financeiros, o FSB constata que a expansão das big techs é mais rápida e ampla nestes países do que em economias avançadas. Isso porque os baixos níveis de inclusão financeira respondem a uma demanda pouco atendida pelas instituições financeiras tradicionais.

Os benefícios são evidentes. As classes baixas e populações rurais são muitas vezes atraídas por ofertas a custos mais baixos, cada vez mais disseminadas com a crescente disponibilização de dispositivos móveis. Algoritmos bem calibrados também podem oferecer produtos mais bem talhados às necessidades de cada um, criando melhores condições de bem-estar financeiro.

Há, contudo, os riscos e vulnerabilidades, como, por exemplo, no uso e proteção de dados pessoais. Além disso, onde as big techs são os principais provedores, há a tendência a dominar o mercado e, no limite, à prática do monopólio de uma delas.

Por isso, é preciso especial atenção à regulação e supervisão, tanto para apoiar a inovação dos serviços financeiros como para mitigar os riscos. O FSB adverte para “a necessidade de aplicar o princípio ‘mesmo risco – mesma regulação’ em relação às atividades das big techs, modelando ao mesmo tempo quadros regulatórios correspondentes ao tamanho e escopo das atividades das big techs”. As autoridades financeiras também precisam exercer um olhar atento à governança de dados, proteção aos consumidores e gestão dos riscos operacionais.

Não há fórmulas prontas, mas o próprio FSB oferece um vasto mosaico de boas práticas internacionais que podem ser ponderadas pelas autoridades brasileiras.

Os desafios da integração Brasil-Argentina

Os interesses comuns vão além do espectro do Mercosul e das transações econômicas

Na relação entre Brasil e Argentina está em jogo muito mais que o destino dos dois países. Juntos eles formam a base do Mercosul e representam cerca de dois terços do território, da população e do PIB do Cone Sul. O Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina e a Argentina é o terceiro maior parceiro do Brasil e o principal destino de suas manufaturas. Em um momento de redefinição da geopolítica global, foi oportuno que o Centro Brasileiro de Relações Internacionais, em parceria com a consultoria argentina Berensztein, tenha reunido diplomatas e pesquisadores em uma Jornada de Diálogos Brasil-Argentina.

Em que pesem as insatisfações e imperfeições na relação entre os dois países, o salto com o Mercosul foi incomparável em relação ao que havia antes. Só na primeira década do século 21 o comércio praticamente quadruplicou. Ainda assim, em comparação à experiência da União Europeia ou do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, há muito a ser feito. De resto, os interesses comuns dos dois países vão além do espectro do Mercosul e das transações econômicas.

No campo geoestratégico, como notou o ex-chanceler Celso Lafer, a coesão entre Brasil e Argentina tem para ambos, talvez mais do que com quaisquer outros países, o potencial de ampliar sua capacidade de atuação internacional e de gestão de riscos nos campos político, militar, energético e científico.

Dada a complexidade dessa rede de interesses, os dois países não podem simplesmente confiar, como disse o professor Hussein Kalout, na “inércia burocrática” parcialmente provida pelo Mercosul, mas precisam suplementá-la por uma atuação política.

O próprio Mercosul é um exemplo. Suas bases foram lançadas no final da década de 80 pelos presidentes Sarney e Alfonsín sob o lema “Juntos para crescer”. Mas sua parceria internacional mais importante, o acordo com a União Europeia, ficou quase duas décadas em “banho-maria” até os presidentes Temer e Macri, percebendo uma oportunidade com o desarranjo transatlântico entre a Europa e os EUA liderados por Trump, acelerarem a costura final que agora é submetida à ratificação dos dois blocos.

Por outro lado, como um contraexemplo, as convicções ideológicas dos presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández ameaçam paralisar, quando não desconstruir, anos de engenharia diplomática.

Justamente neste momento se faz como nunca necessário fortalecer os vínculos entre as classes políticas, empresariais e civis de ambos os países como um antídoto contra as oscilações e idiossincrasias dos governos de turno. Isso implica estimular transações não só econômicas, mas culturais, acadêmicas e científicas.

Motivações não faltam. Uma pauta importante é a defesa e a segurança, em especial no combate transfronteiriço ao crime organizado. Outra é a cooperação tecnológica, particularmente nos campos espacial, energético e digital. A crise pandêmica é uma oportunidade para intensificar os diálogos em prol de uma regulamentação sanitária regional, assim como a crise econômica o é para aumentar as importações e diminuir a dependência dos mercados financeiros internacionais.

Para tanto, é fundamental aprimorar mecanismos de integração já em vigor (como a tarifa externa comum) e criar outros, como uma burocracia do Mercosul mais robusta (a exemplo da União Europeia) ou instituições acadêmicas comuns. Há além de tudo áreas novas a serem exploradas, como a bioeconomia ou os vínculos com a região do pacífico asiático, atualmente a mais dinâmica do mundo do ponto de vista econômico.

O consenso entre os debatedores é de que há, na fórmula de Lafer, um imenso “potencial de sociabilidade”. O desafio é transformar a potência em ato. Vencer esse desafio é mais do que uma oportunidade para o desenvolvimento dos dois países, é quase uma condição sine qua non. Dado o seu entrelaçamento geográfico e histórico, o relacionamento entre ambos tem “a obrigação de dar certo”, como disse o professor Hussein Kalout: “É um matrimônio em que nenhum dos dois tem direito ao divórcio”. 

 Ideias e nomes – Opinião | Folha de S. Paulo

Folha preferirá o debate crítico e plural, sem atrelar-se a partidos e governos

Em consonância com a proposta de um jornalismo crítico, apartidário e pluralista, esta Folha não endossa grupos políticos ou candidaturas, tradição que se manterá inalterada no pleito municipal deste ano. Em tempos de polarização ideológica e patrulhas estridentes nas redes sociais, cabe revisitar os fundamentos dessa escolha.

Outros veículos de imprensa, como se sabe, fazem recomendações de voto aos leitores. Em exemplo notório e recente, o diário The New York Times declarou apoio ao democrata Joe Biden na corrida à Casa Branca; trata-se de posição legítima e amparada pelo direito inegociável à liberdade de expressão.

Este jornal, no entanto, opta por manter-se desatrelado de legendas e governos. Entende que assim desempenhará com maiores desenvoltura e credibilidade o papel de registrar e escrutinar a conduta do poder —quaisquer que sejam as forças instaladas no Estado.

O exercício intransigente da crítica não raro é errônea ou interessadamente tomado por atitude persecutória, como alegam setores bolsonaristas e petistas, entre outros grupos militantes. Todavia a Folha, sem desconhecer eventuais equívocos e excessos que deve corrigir com transparência, não faz nem fez oposição.

Defende, sim, princípios —democracia, Estado de Direito, liberdades individuais, economia de mercado— e as políticas públicas que entende serem as mais adequadas, independentemente da administração que as conduz.

Tampouco se deve confundir apartidarismo com neutralidade. As diferenças percebidas entre candidatos e entre governos, incluindo seus aspectos mais deletérios, devem ser apontadas, sem deixar de respeitar a opção dos eleitores.

É o que se dá no caso do presidente Jair Bolsonaro e de seu flerte inaceitável com teses autoritárias, denunciado desde antes da campanha eleitoral. A excepcionalidade de sua gestão também se reflete na defesa da saída de ministros, prática rara na história do jornal.

Advogou-se neste ano a demissão de Abraham Weintraub, que já deixou o MEC após ataques golpistas ao Supremo, e de Ricardo Salles, como passo inescapável para reverter a devastação patrocinada na pasta do Meio Ambiente. É lamentável que providências dessa ordem precisem ser cobradas em tão curto período de tempo.

Este jornal continuará a preferir o debate de ideias ao de nomes, sem omitir-se diante de atitudes contrárias aos valores que abraça —e sem sonegar espaço ao outro lado. Espera, com isso, servir a leitores de todas as preferências.

Alerta global – Opinião | Folha de S. Paulo

FMI vê risco provocado pela alta das dívidas públicas; caso brasileiro é grave

Houve boas notícias na revisão do cenário econômico divulgada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), por ocasião de seu encontro anual. A projeção para a contração global neste 2020 ficou menor, em razão do suporte propiciado pelos governos com mais gastos e cortes de juros. Entretanto a saída da crise será lenta e deixará cicatrizes.

Segundo o Fundo, a economia mundial deve encolher 4,4% neste ano, menos do que os 5,2% estimados há seis meses. Para 2021, a expectativa de retomada foi ajustada de 5,4% para 5,2%.

Quase todas as regiões tiveram melhores prognósticos. Estados Unidos e Europa terão quedas do Produto Interno Bruto menos agudas, assim como o Brasil —para o qual o FMI agora projeta retração de 5,8%, contra 9,1% antes.

Apenas a China terá crescimento, de 1,9% neste ano e incríveis 8,2% em 2021, segundo o organismo. No agregado, considerada a exceção chinesa, a volta ao nível de atividade de antes da pandemia só ocorrerá em 2022 ou 2023.

Até lá, risco de danos permanentes no mercado de trabalho é alto, ocasionados pelo fechamento de empresas, sobretudo as menores.

A desigualdade deve aumentar, com reversão de parte do progresso obtido nas últimas duas décadas no combate à pobreza.

Outro dano se dá na saúde financeira, tendo em vista o salto do endividamento público devido a alta de gastos e de cortes de impostos, estimados em US$ 12 trilhões, para combater os efeitos da Covid-19.

Nos países desenvolvidos, a dívida crescerá 20 pontos percentuais, para 125% do PIB até o final de 2021, enquanto no mundo emergente a proporção chegará a 65% do PIB. Pelos critérios do Fundo, serão mais de 100% no Brasil.

Há certamente hipóteses mais positivas. Caso se confirme a expectativa de que haverá vacinas eficazes para ampla distribuição até meados de 2021, o crescimento econômico poderá ser maior que o esperado. Enquanto isso, o FMI sugere que os países com maior espaço fiscal estendam parte dos estímulos para o ano que vem.

Mesmo assim, fica o alerta para o tamanho da dívida e para a necessidade de buscar receitas com maior tributação dos mais ricos e redução de subsídios perdulários.

Tais preocupações se mostram especialmente importantes no caso do brasileiro, dado o estado calamitoso das finanças governamentais. Com a maior dívida entre os emergentes e riscos crescentes de instabilidade financeira, o país não tem opção além de ajustar o Orçamento e fazer reformas, incluindo impostos mais progressivos.

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