Patrícia Campos Mello – Folha de S. Paulo
SÃO
PAULO - No
prefácio da edição brasileira de “Crises da Democracia”, o polonês Adam
Przeworski lamenta não ter incluído o Brasil na obra. “O Brasil não aparece
neste livro como um país onde a democracia
possa estar em crise. Isso acontece porque, quando redigi sua versão
original, eu acreditava firmemente na solidez das instituições políticas
brasileiras.”
O
livro foi publicado nos EUA em setembro de 2019. Fosse hoje, o respeitado
cientista político da New York University, autor de importantes estudos sobre a
democracia, teria inserido o país no rol dos que enfrentam o que ele chama de
“autoritarismo furtivo”, ao lado de Hungria,
Índia, Polônia, Venezuela,
Turquia, e, em menor grau, Estados
Unidos.
No
autoritarismo furtivo, tal como em qualquer governo autocrático, os governantes
tentam “incapacitar possíveis resistências, que variam caso a caso, mas
costumam incluir os partidos de oposição, o sistema judicial e a mídia, bem
como as ruas”.
Nesse
autoritarismo dissimulado, no entanto, não há mudanças abruptas, não se
destacam “um
cabo e um soldado” para fechar o Supremo Tribunal Federal, não se cassam
direitos políticos de opositores nem se planta um censor nas Redações dos
jornais.
Em
vez disso, os aspirantes a autocratas tentam se perpetuar no poder usando
instrumentos do próprio regime democrático, o que confere a eles verniz de
legitimidade.
Há
ações incrementais, como mudanças de fórmulas eleitorais, novas exigências para
poder votar, intimidação da oposição e imposição de restrições a ONGs, além de
transferência de poder do Legislativo para o Executivo, restrição da
independência do Judiciário, uso de referendos para superar barreiras
institucionais, reformas constitucionais, aparelhamento partidário da máquina
estatal e pressão
jurídica e financeira sobre a mídia.
“Se acontecer aqui, não vai acontecer de uma
vez... Cada passo poderá até ser ofensivo, mas não alarmante... Não haverá um
ponto único e cataclísmico em que as instituições democráticas sejam
demolidas... Os passos rumo ao autoritarismo nem sempre serão claramente
ilegais”, escreve Przeworski, citando um advogado constitucionalista que
analisa a situação nos EUA.
“É
difícil identificar um ponto de inflexão em meio aos acontecimentos: nenhuma
nova lei, decisão ou transformação isolada parece suficiente para fazer soar o
alarme; só depois que acontece é que percebemos que a linha que separa a
democracia liberal de uma democracia falsa foi atravessada: momentos decisivos
não são vistos como tais quando vivemos neles”, diz outro advogado citado no
livro.
Przeworski
analisa democracia e eleições há décadas. É autor de estudos que mostraram que
a probabilidade de sobrevivência da democracia aumenta acentuadamente quando a
renda per capita do país é alta. Também mostrou que o crescimento econômico é
muito mais lento em países não democráticos, desfazendo o mito de que ditaduras
são benéficas para a economia.
Dentro
da safra recente de livros que analisam o enfraquecimento da democracia, e, em
certos casos, preveem o fim desse sistema, o de Przeworski é o que mais se
dedica a tentar entender as causas para a ascensão do autoritarismo furtivo e a
apontar que, na verdade, esse quadro é um sintoma de que o sistema atual tem
falhado em suprir as necessidades das pessoas.
O
principal combustível do declínio democrático, segundo o cientista político, é
a estagnação da renda e o aumento da
desigualdade, que leva a um desgaste na crença do progresso material. As
pessoas ficam desiludidas, certas de que seus filhos estão em pior situação
financeira do que elas estavam.
A
polarização profunda e a crescente
hostilidade entre grupos ideológicos diferentes são outros fatores
importantes. “As vitórias
de Bolsonaro e Trump mostram
que, quando estão desesperadas, como pacientes terminais, as pessoas vão atrás
de qualquer remédio, agarram-se a sejam quais forem as possibilidades de
salvação. Mesmo quando oferecidas por impostores que vendem curas milagrosas”,
escreve Przeworski.
Ele
também aponta para sinais importantes do retrocesso democrático: rápido
desgaste das legendas tradicionais, com fragmentação
partidária; avanço
de siglas e atitudes xenofóbicas, racistas e nacionalistas, além do
declínio do apoio à democracia em pesquisas de opinião pública.
O
prognóstico não é animador. Se as pessoas não se derem conta rapidamente de que
há uma escalada autoritária, ela pode se tornar irreversível. À medida que esse
processo avança gradualmente, a oposição fica impossibilitada de ganhar
eleições —ou de assumir, se ganhar; as instituições não conseguem atuar como
freios e contrapesos ao Poder Executivo, e imprensa e protestos são reprimidos.
Segundo
Przeworski, isso ocorreu na Turquia
sob o AKP e o presidente Recep Tayyip Erdogan, na Venezuela sob Hugo
Chávez e Nicolás Maduro, na Hungria sob o Fidesz, partido do
primeiro-ministro Viktor Orbán, na Polônia sob o PiS (Partido da Lei e
Justiça), na Índia sob o premiê Narendra Modi e nos Estados Unidos sob o presidente
Donald Trump.
“A não ser que o povo reaja desde o início contra atos do governo que possam ter efeito cumulativo no desgaste da democracia, ela irá se desmanchando aos poucos”, diz. Fica o alerta.
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