A
discriminação pode ser declarada ou disfarçada, mas é sempre crime
Geraldo
era negro. E meu colega no ginásio estadual de Tietê. Era alegre, gentil,
animado, brincalhão e com muitos amigos. Dentre eles, eu. Que era o mais
próximo dele. Com quem mais ele conversava. Depois que terminamos o curso
ginasial, perdi contato. Reencontrei-o muitos anos depois em São Paulo . Ele,
bem-sucedido e mantendo a mesma alegria. “Sou diretor de uma empresa” disse-me.
“Mas sou uma exceção” completou, revelando ciência e consciência de sua cor.
Sambi
era seu apelido. Também negro e pintor de paredes. Era adulto. Eu tinha 13
anos, mas conversava muito com ele. E sempre recebia dele os melhores
conselhos. Muitos deles pautaram a minha vida. Eu não sentia nem percebia a
diferença de cor. Éramos iguais. Mas na minha cidade, recordo-me bem, havia uma
segregação daqueles que eram negros.
Lembro alguns fatos: na praça principal, mais precisamente no jardim, os negros somente andavam na parte externa, não ingressando nos dois círculos internos, em que só circulavam os brancos. No cinema havia a parte de baixo e a parte de cima. Esta última, chamada balcão ou, depreciativamente, “poleiro”. Os negros só frequentavam a parte de cima, cujo ingresso era até mais barato.
Também
não entravam no clube dos brancos. Tinham clube próprio. Em dado momento o
cinema local estofou as cadeiras de cima e o ingresso ficou mais caro. Mas
continuaram a frequentar o balcão, embora pagando mais caro. Foi, a meu ver, o
primeiro movimento lá verificado como rebelião pacífica contra aquela situação.
Como
disse no início deste artigo, nunca cheguei a compreender a razão daquela
desigualdade. Mas percebi, quando se deu o episódio do cinema, que a
desigualdade era inadmissível. Não havia ódio entre brancos e negros. Havia
segregação, separação entre as duas cores, como se fosse a coisa mais natural
do mundo.
Havia
uma grande comunidade na cidade e uma das igrejas mais frequentadas era a de
São Benedito. Reitero que havia até benquerença entre brancos e negros. Com o
tempo essa segregação desapareceu. Hoje, quando vou àquela cidade, percebo que
há maior integração na comunidade. Mas ainda assim é como se fosse uma bondade
dos brancos, o que vem mais uma vez, revelar o apartamento, a desigualdade.
É,
penso, o que se dá no nosso país. As estatísticas o demonstram: os negros são
remunerados a menor, são os que mais sofrem ou recebem a ação policial, são os
menos presentes nos Poderes Executivos e Legislativos do País e ocupam poucos
cargos executivos, restando-lhes as funções mais subalternas. Portanto, a
segregação é um fenômeno nacional. Disfarçada, quase escondida, não declarada,
mas sempre exercitada.
Essa
minha experiência na adolescência é que me fez, quando procurado pelo reitor
José Vicente, da Zumbi dos Palmares, editar decreto, o de número 9.417/18,
determinando à administração direta e indireta que, dos cargos de estagiários,
fossem reservados 30% para os de origem negra. Foi também o que me levou, em
1993, a criar a delegacia de apuração de crimes raciais.
E
aí é que entra a pergunta: existe alguma autorização constitucional ou legal
que permita essa atuação prejudicial à sociedade brasileira? Nenhuma. Ao
contrário. A ordem jurídico-constitucional é plena de dispositivos
desautorizadores dessa conduta. É a Constituição federal que determina que não
pode haver diferença em razão de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer
outra forma de discriminação. É isso que, no dizer do constituinte, faz surgir
uma sociedade livre, justa e solidária.
Repete
o artigo 5.º da Carta Magna que todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza. Há mais. O mesmo artigo 5.º, no seu inciso XLII, ressalta
que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível sujeito
a pena de reclusão, nos termos da lei. Como também no seu inciso XLI estabelece
que a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades
fundamentais. E a discriminação, no caso, pode ser declarada ou disfarçada. A
consequência é a mesma: é crime.
Não
é demais enfatizar que a paz é um dos comandos da nossa Constituição, que, em
seus vários dizeres, determina essa conduta social. É comando constitucional
dirigido a toda a sociedade, especialmente a todos os órgãos que exercem o
poder em nome do povo. Tanto é assim que até mesmo o preâmbulo da Constituição
(preâmbulo vem de pre
ambulare, ou seja, antes de entrar no texto) diz que a razão do
novo Estado é assegurar uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
com a solução pacífica das controvérsias.
Sei
que a invocação do texto constitucional nos dias atuais tem pouca relevância,
já que são poucos os que se dedicam ao cumprimento rigoroso do que a soberania
popular determinou em 5 de outubro de 1988. Cumpríssemos a regração
constitucional, não teríamos tantos conflitos sociais e, especialmente,
daríamos crédito à visão humanitária que teve o constituinte de 1988 ao fixar,
de maneira imperativa, a regra da igualdade de todos, começando pelos de cores
diferentes, mas nascidos com as mesmas características fisiológicas.
*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República
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