Joe
Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi
radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos
Foram
quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo
real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que
não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma
realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a
insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias
para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente
dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som
de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e
uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o
início do dia.
Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.
Quem
capturou a atenção na cerimônia, entretanto, foi Amanda Gorman, jovem poetisa
de 22 anos, que declamou seu poema “O monte que galgamos” com alegria e
bravura. Foi emocionante, e não houve sentimentalismo em suas palavras ou sua
postura. Por isso foi tão impactante. Como ela disse, “nós, sucessores de um
país e de uma época em que uma menina negra magricela, descendente de escravos
e criada por uma mãe solteira pode sonhar em ser presidente, apenas para se ver
recitando para um presidente”. Há promessa e poesia nessas palavras: promessa
da política, pelo novo que irrompe anunciando aos que vieram antes que o mundo
não perecerá, e poesia da política também. O poema de Gorman deixou claro que
um ciclo se encerrava para que outro se abrisse. Novo. O novo como cumprimento
da promessa, ainda que em situação de crise.
Os
ritos pareciam encerrar a transição que se iniciou logo após a eleição. A seu
término, Biden partiu para a Casa Branca com o propósito de desfazer males
feitos por Trump.
O
novo presidente vinculou os Estados Unidos de novo ao Acordo do Clima de Paris,
tomou medidas para frear a pandemia e assinou decretos se comprometendo com a
proteção social.
Comunicou
por atos três pilares de seu governo: a proteção social, o meio ambiente e a
saúde pública, além do multilateralismo. Sem ter tido muito tempo para refletir
sobre o que tudo isso representa, fui chamada para uma entrevista. Nela me
perguntaram: “Como ficam as relações entre o Brasil e os Estados Unidos”.
Relações? Que relações? O Brasil de Bolsonaro tem relações frágeis com uns
Estados Unidos imaginários, pois o amigo fantasia do presidente brasileiro,
Trump-My-Way, jamais deu a mínima para ele ou para o país. De bate-pronto,
respondi: vejamos os decretos que Biden acaba de assinar, os compromissos que
acaba de assumir e os comparemos com o Brasil. Proteção social? Bolsonaro
extinguiu o auxílio emergencial. Meio ambiente? Bolsonaro tem criado condições
propícias ao desmatamento, com desmonte institucional e restrições
orçamentárias. Saúde pública? Bolsonaro deixou morrerem centenas de milhares de
brasileiros e fez de tudo para que a pandemia chegasse a seu pior momento.
Multilateralismo? Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto, é, ao mesmo
tempo, antiglobalista e árduo defensor de um liberalismo econômico sem peias.
Trata-se da política do “E daí?” em todas as áreas que são caras para Biden.
Portanto, que relação Brasil-EUA?
É
preciso muito pensar. Pensar nesse 20 de janeiro, nas promessas da política.
Cultivar esse momento em que as possibilidades são muitas e estão em aberto a
quem tem disposição para disputá-las.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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