sábado, 23 de janeiro de 2021

Monica de Bolle* - A posse e seus símbolos

- Revista Época

Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos

Foram quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o início do dia.

Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.

Quem capturou a atenção na cerimônia, entretanto, foi Amanda Gorman, jovem poetisa de 22 anos, que declamou seu poema “O monte que galgamos” com alegria e bravura. Foi emocionante, e não houve sentimentalismo em suas palavras ou sua postura. Por isso foi tão impactante. Como ela disse, “nós, sucessores de um país e de uma época em que uma menina negra magricela, descendente de escravos e criada por uma mãe solteira pode sonhar em ser presidente, apenas para se ver recitando para um presidente”. Há promessa e poesia nessas palavras: promessa da política, pelo novo que irrompe anunciando aos que vieram antes que o mundo não perecerá, e poesia da política também. O poema de Gorman deixou claro que um ciclo se encerrava para que outro se abrisse. Novo. O novo como cumprimento da promessa, ainda que em situação de crise.

Os ritos pareciam encerrar a transição que se iniciou logo após a eleição. A seu término, Biden partiu para a Casa Branca com o propósito de desfazer males feitos por Trump.

O novo presidente vinculou os Estados Unidos de novo ao Acordo do Clima de Paris, tomou medidas para frear a pandemia e assinou decretos se comprometendo com a proteção social.

Comunicou por atos três pilares de seu governo: a proteção social, o meio ambiente e a saúde pública, além do multilateralismo. Sem ter tido muito tempo para refletir sobre o que tudo isso representa, fui chamada para uma entrevista. Nela me perguntaram: “Como ficam as relações entre o Brasil e os Estados Unidos”. Relações? Que relações? O Brasil de Bolsonaro tem relações frágeis com uns Estados Unidos imaginários, pois o amigo fantasia do presidente brasileiro, Trump-My-Way, jamais deu a mínima para ele ou para o país. De bate-pronto, respondi: vejamos os decretos que Biden acaba de assinar, os compromissos que acaba de assumir e os comparemos com o Brasil. Proteção social? Bolsonaro extinguiu o auxílio emergencial. Meio ambiente? Bolsonaro tem criado condições propícias ao desmatamento, com desmonte institucional e restrições orçamentárias. Saúde pública? Bolsonaro deixou morrerem centenas de milhares de brasileiros e fez de tudo para que a pandemia chegasse a seu pior momento. Multilateralismo? Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto, é, ao mesmo tempo, antiglobalista e árduo defensor de um liberalismo econômico sem peias. Trata-se da política do “E daí?” em todas as áreas que são caras para Biden. Portanto, que relação Brasil-EUA?

É preciso muito pensar. Pensar nesse 20 de janeiro, nas promessas da política. Cultivar esse momento em que as possibilidades são muitas e estão em aberto a quem tem disposição para disputá-las.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

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