Democratas
precisam evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo
Surpreende
que o mundo político, em sentido estrito – Congresso, parlamentares, partidos
–, somente agora comece a cogitar de um possível impeachment presidencial por
crimes de responsabilidade.
Quando
o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ativo militante do moderantismo, veio a
público declarar (15/1) que o afastamento de Bolsonaro do cargo de presidente
da República “será debatido de forma inevitável no futuro”, ele deu o tom de
uma inflexão que se poderá consolidar nos próximos meses. Aproveitou para chamar
às falas o Congresso, que inexplicavelmente se mantém em recesso enquanto o
País pega fogo.
Bolsonaro
não havia sido, até agora, atingido por uma ameaça desse tipo. A primeira etapa
de seu mandato foi um período de desgoverno e tragédia, em que ele pintou e
bordou, agindo com uma mistura patética de tiranete, chefe de gangue e
godfather tropical. O escárnio diante do vírus, do povo, da vacina e dos
cientistas foi constante, mastigado com indiferença e como prova de
“autenticidade” por uma população em grande parte anestesiada. Com a pandemia,
sua personalidade desequilibrada e narcisista ganhou plena manifestação. Os
meses foram se passando e os estragos, aumentando. Seu prontuário engordou.
O
presidente fez política contra a política, empenhado em criar confusão para
camuflar sua incompetência e atiçar seus seguidores. Em nenhum momento, porém,
pôde proclamar-se vitorioso.
O padrão oposicionista seguiu roteiro conciliador, que travou os planos maléficos do presidente. Fez o rei ficar nu. Meio que em silêncio, com muito jogo de bastidores, possibilitou que houvesse alguma governação no Brasil, paralisando a Presidência da República.
Bolsonaro
foi reduzido a uma caricatura de presidente, que fala compulsivamente, de modo
agressivo, com cálculo de malandro, boca cheia de impropérios e grosserias, mas
é inepto e pouco faz de positivo. Age como um animal encurralado, que ameaça
sem morder. Continua a atacar as instituições, a instigar as Forças Armadas, a
ameaçar retrocessos. Com os venenos que produz na cozinha do Palácio constrói
um imaginário negativo, polarizador, que confunde e corrói. Suas orientações
esvaziam e destroem setores estratégicos das políticas sociais, dos direitos
humanos, da economia, da proteção ambiental. Sua indigência diplomática comprometeu
até mesmo a produção das vacinas e a campanha de vacinação.
A
oposição teve sucesso nessa que a mente afiada do cientista político baiano
Paulo Fábio Dantas Neto chamou de “estratégia maricas”: o bolsonarismo foi
forçado a negociar.
Os
humores mudaram, porém. Quanto mais a pandemia se agravou, quanto mais os
ministros de Bolsonaro mostraram sua desqualificação, quanto mais o País se foi
marginalizando no sistema internacional e fracassando no comércio bilateral,
mais aumentou a pressão para o encontro de uma solução.
Abriu-se
assim uma nova etapa da luta política. Ainda que a “estratégia maricas” consiga
continuar arrancando a fórceps decisões do governo federal, ela precisa ser
complementada por uma estratégia mais contundente, que aperte o cerco, mas
saiba evitar tentações polarizadoras, escolhos e armadilhas.
A
nova fase transcorrerá em algumas frentes principais.
A
primeira é a afirmação de um campo oposicionista democrático consistente, que
consiga soldar os diferentes partidos e forças políticas numa unidade programática
mínima, forjada sem vetos ideológicos, firulas acadêmicas e cálculos políticos
sofisticados.
A segunda é a organização do clamor popular, com a invenção de formas de protesto que aumentem o som das panelas e contornem a dificuldade de se ter gente nas ruas.
A
terceira é o processamento político das denúncias de crime de responsabilidade
contra Bolsonaro. Disso dependerá a abertura ou não do impedimento
constitucional do presidente. Por mais que esse seja um passo delicado,
sobretudo quando se considera que o presidente tem apoio popular e parlamentar,
há no Congresso lideranças com inteligência política e dignidade cívica para
impedir que as labaredas da crise institucional incendeiem o País.
No
curto prazo, uma quarta frente passa pelo desfecho da disputa pelas
presidências da Câmara e do Senado. Muitos parlamentares estão em flutuação,
marcando posição, sem compreender a importância de um evento que poderá definir
muito do ritmo político daqui para a frente. Mas é o que se tem. Os operadores
democráticos precisarão trabalhar dobrado, sensibilizar setores do Centrão e da
esquerda para evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo.
O
recurso ao impeachment poderá catalisar o mal-estar que hoje, impregnado de
horror, medo e repulsa, se espalha pela sociedade. Como está não pode ficar. A
perspectiva conciliadora, vitoriosa em nossa História recente, só tem a ganhar
se adquirir corpo e poder de direcionamento, contrapondo ao negativismo radical
do presidente o ar renovado da política positiva. Sem o qual, aliás, nenhum
vírus será derrotado.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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