quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Fim do piso para educação significa repetir práticas de duas ditaduras

Criada em 1934, medida só foi suspensa no Estado Novo e no regime militar

Por Hugo Passarelli  - Valor Econômico

SÃO PAULO - Entidades e especialistas em educação criticaram ontem a proposta de eliminar o piso constitucional para investimento em educação e saúde. No caso do ensino, a medida representaria a quebra de uma vinculação criada pela primeira vez em 1934. Desde então, o Brasil viveu dois períodos sem um patamar mínimo de despesa para educação: de 1937 a 1945, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, e na ditadura militar, de 1967 até 1985, quando foi regulamentada a Emenda Calmon.

Os gastos com educação só registraram queda contínua justamente nos períodos em que não houve vinculação mínima constitucional, lembra o professor Romualdo Portela de Oliveira, diretor de pesquisa e avaliação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). “Os valores aplicados em educação diminuíram nessas ocasiões. Se o desejo é garantir condições mínimas para a população, o governo deve tentar outros meios, mas não tirando da educação e saúde. A reforma tributária, por exemplo, seria um caminho. É aquele argumento de ocasião e, na verdade, uma agenda que sempre esteve na mesa e voltou agora”, afirma.

O parecer final da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial, divulgado ontem, confirmou a retirada dos pisos para educação e saúde. Desde a Constituição de 1988, o governo federal é obrigado a destinar 18% da receita para educação, enquanto Estados e municípios devem aplicar 25%. Já para a saúde, o mínimo constitucional é de 12% da receita para Estados e de 15% para os municípios.

“Esse é um filão que o ministro Paulo Guedes já tinha colocado desde o início do governo e aproveitou agora esse momento da pandemia. Ocorre que esse jogo tem um custo bastante complexo e danoso tanto para a educação como para a saúde. Nós sabemos, por exemplo, que há gestores que não entendem a educação como investimento, mas sim custo”, afirma Mozart Neves Ramos, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Para Mozart, é equivocada a percepção de que aumentar o gasto com educação não tem relação direta com a melhora da aprendizagem. “Sempre digo que é preciso melhorar a gestão das despesas também, mas isso também ocorre por meio da vinculação. Se eu coloco 37% do meu orçamento [no caso dos Estados] para educação, há um olhar diferenciado para esse dinheiro.”

Ele ainda cita casos de sucesso em que o valor adicional aplicado em educação ajudou a trazer mais resultados. “Basta lembrar o impacto do Ceará quando se passou a redistribuir parte do ICMS de acordo com o número de crianças alfabetizadas, e não só matriculadas. Quando atrelamos dinheiro a resultados, há outra sentido e importância para o planejamento e resultado de uma atividade”, afirma Mozart.

Oliveira, do Cenpec, ainda avalia que a extinção do piso acabaria por implodir o novo Fundeb, aprovado no ano passado e que eleva gradualmente de 10% para 23% os repasses da União para as redes de ensino com menos recursos no Brasil. “O Fundeb é uma redistribuição de recursos vinculados, se não tem a vinculação, não tem Fundeb”, resume.

A Undime, entidade que representa os secretários municipais de Educação, considera a alteração “impensável”. “É temerário repetir o discurso de que há recursos e de que o problema é de gestão, ou de que a desvinculação daria mais autonomia aos entes federados”, diz nota divulgada ontem. Posição semelhante também veio do Consed, que reúne os secretários estaduais de Educação. “No que se refere à educação, muito ainda há que se investir na manutenção e desenvolvimento do ensino, especialmente na educação básica pública, para que se alcancem patamares satisfatórios de qualidade”, diz nota da instituição.

O movimento Todos pela Educação lembrou que a medida vai na direção contrária às regras do novo Fundeb. “Importante lembrar que a Emenda Constitucional 108, aprovada de forma quase unânime no Congresso Nacional em 2020, tornou o Fundeb mais justo e eficiente na distribuição dos recursos educacionais”, diz nota da entidade.

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