Dois
anos de suplício e de muita galhardia
Em
29 de abril último, ao dar posse a André Mendonça, o sucessor do ex-juiz Sergio
Moro no Ministério da Justiça, o presidente Jair Bolsonaro assim referiu-se a
João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça, presente à
cerimônia:
–
Prezado Noronha. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira
vista. Me simpatizei com Vossa Excelência.
Menos
de três meses depois, Noronha aproveitou as férias do Judiciário para soltar
Fabrício Queiroz. Mandou-o para prisão domiciliar. Para não parecer pouco,
estendeu o benefício à mulher de Queiroz, que havia fugido. A ela caberia
cuidar do marido.
O
caso de amor à primeira vista entre o presidente e o juiz culminou com a
decisão tomada pela Quinta Turma do tribunal de anular a quebra do sigilo
fiscal e bancário do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas), acusado de desvio de
dinheiro público.
Noronha foi o primeiro dos quatro votos favoráveis ao filho mais velho de Bolsonaro. O voto do relator da ação foi contra. Flávio celebrou a decisão ao lado do seu advogado, Frederico Wassef, em cuja casa, no interior de São Paulo, Queiroz fora preso.
Em
seu voto, que deixou eufórico o presidente da República, Noronha acusou o
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão vinculado ao Banco
Central, de promover “indevida intromissão na devida intimidade e privacidade”
de Flávio.
O
Coaf monitora atividades financeiras consideradas suspeitas. Foi com base num
relatório seu que o Ministério Público do Rio denunciou Flávio por peculato,
lavagem de dinheiro e organização criminosa. Um esquema que lhe rendeu 6
milhões de reais.
O
mutirão para tirar Flávio do sufoco envolveu muita gente dos três Poderes da
República. A saída de Moro do governo deveu-se à interferência de Bolsonaro na
Polícia Federal, segundo o ex-ministro. A Agência Brasileira de Inteligência
deu uma mão.
A
Receita Federal foi pressionada para que não criasse problemas. O Conselho de
Ética do Senado ficou desativado para não ter que examinar pedidos de abertura
de processos contra Flávio por quebra de decoro. Até o Supremo Tribunal Federal
ajudou.
Em
setembro próximo, com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, será aberta uma
vaga de ministro no Supremo. Noronha sonha com ela, mas também Mendonça,
Augusto Aras, Procurador-Geral da República, e outros nomes menos cotados.
Aras
já tem quem o substitua na Procuradoria-Geral: Lindôra Araújo, a procuradora
que com muito orgulho não esconde os telefonemas que recebe de Bolsonaro. Ela
liderou a investigação que resultou na queda de Wilson Witzel, governador do
Rio.
O
Superior Tribunal de Justiça voltará a julgar a partir da próxima terça-feira
novas ações movidas pela defesa de Flávio. A tendência é aceitar todas. E assim
será posto um ponto final no suplício de dois anos vivido com galhardia pela
família presidencial brasileira.
Lucrar
com a divulgação de informações falsas é pecado mortal
A
imprensa e o seu labirinto
Se
foi por descuido, um descuido grave, os jornais que publicaram o informe
publicitário deveriam reconhecer o erro e devolver o dinheiro. Se foi porque
entenderam que era expressão de pensamento, desataram um debate que não lhes
dará razão.
Um
grupo chamado Médicos pela Vida publicou nos principais jornais
impressos do país um manifesto em defesa do “tratamento precoce” contra a
Covid-19. O texto usa informações falsas ao citar hidroxicloroquina,
azitromicina, ivermectina e outras drogas.
Segundo
o informe, haveria evidências científicas que comprovam os benefícios do uso
desses remédios, mas não há qualquer estudo de metodologia rigorosa que tenha
chegado a essa conclusão. É isso que a mídia brasileira e mundial tem dito com
rara insistência.
Como
é possível criticar dia sim, e o outro também, o governo e quem mais recomenda
um ineficaz tratamento precoce à base de drogas receitadas para outras doenças
e, na contramão dos fatos, lucrar com a publicação de um informe mentiroso?
Com a palavra, os jornais. Em seu site, o grupo Médicos pela Vida se define como um movimento civil apartidário que luta contra o aborto e divulga fotos de manifestações políticas promovidas na Avenida Paulista, em São Paulo.
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