Nos
200 anos do poeta francês, que se completam nesta sexta, sua mais difundida
criação talvez esteja prestes a se modificar para sempre.
Não
se trata de uma nova descoberta relativa ao monumental "As Flores do
Mal" —de cuja mais
recente tradução, por Júlio Castañon Guimarães, para a Companhia das
Letras, veio a tradução dos versos acima, retirados de "O Cisne".
O
que as circunstâncias vêm alterando é o hábito de flanar. Resistirá ao
confinamento o vagar sem destino pelas ruas? E ao controle do tempo imposto
pelos aplicativos?
Quem
foi Baudelaire
Nascido
em 9 de abril de 1821, há 200 anos, Charles Baudelaire rompeu com o romantismo
vigente ao lançar ‘As Flores do Mal’, em 1857. O livro foi logo censurado e só
voltou a sair em 1861, sem 6 de seus poemas, vistos como imorais —mas com
outros 35 novos. Paris, com os tipos e os vícios da rua, adentrava a
literatura, e a poesia nunca mais foi a mesma. Baudelaire, que foi também
crítico, viveu uma vida boêmia e morreu aos 46 anos, vítima da sífilis
É
certo que a "flânerie" já era reconhecida pela literatura desde antes
—Balzac, duas décadas mais velho que Baudelaire, a chamou de "gastronomia
do olho". Mas é a partir da modernidade baudelairiana que o costume se
cristaliza como um topos da criação artística.
A
Paris que Baudelaire identifica como outra é a do Segundo Império, remodelada
pelas obras do barão de Haussmann, prefeito do departamento do Sena entre 1853
e 1870, e que o poeta viu nascer. Então se rasgou entre seu velho casario
medieval a trama de bulevares que se tornou o símbolo da cidade moderna.
Ela
já se modificou e, no
pós-pandemia, deve mudar novamente, inclusive para que as pessoas ganhem mais
espaço para caminhar. Como se exportaram os traçados haussmanianos
para Buenos Aires ou para o Rio de Janeiro, no fim do século 19 e começo do 20,
a caminhada sem propósito também se exportou.
Esse se deixar levar pela e na observação da cidade é costume que conforma boa parte da escrita de Baudelaire e cujo valor ele ressalta em outro de seus textos mais célebres, "O Pintor da Vida Moderna".
O
ensaio de 1859 parte de Constantin Guys, pintor que de outro modo talvez fosse
pouco lembrado pela história, para fazer o elogio da busca pelo novo como valor
essencial da modernidade. O novo, Guys ia buscar nas ruas, retornando, embebido
do que vira, ao ateliê.
No
coração mortal de escritores, colher nas ruas o "não eu" é ainda um
método. Ou era. Pois como perambular perdido na multidão na era da Covid-19?
Em
junho de 2020, o poeta
Tarso de Melo escreveu em um postagem que só sabia "pensar
andando". "Bater perna, perambular, dar um rolê —eureca! O pensamento
vem —peripatético— das pernas. O poema vem —errante, 'flâneur'— das
pernas".
Mas,
dizia ainda, "veio a quarentena e é preciso seguir", desautomatizar
de outras maneiras.
Preso
em seu apartamento em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, Tarso diz que é
difícil tentar imaginar o que vai acontecer com a cidade quando ela puder ser
retomada.
Pensando
como advogado que é, especializado em relações de trabalho, arrisca dizer que o
tempo irá modificar o espaço. Ou melhor, o controle do tempo por aplicativos.
Nesse quadro, diz, "chega a ser absurdo falar em flâneur".
“A
rua era o lugar da aleatoriedade”, mas esse inesperado foi sendo associado à
perda de tempo. Quanto mais tecnologia há na cidade, mais controle do ritmo,
ele ressalta.
Andar
seria, assim, “um ato politicamente libertário”. Mas flanar é proibido.
Julgamos quem sai à toa. Desde antes do vírus, o que as pessoas querem é “ter
tudo sob controle”, medindo os horários com “esses aparelhinhos, isso que a
gente hoje chama de casa”.
A
frase é uma inversão do que diz o principal leitor de Charles Baudelaire, o
pensador alemão Walter Benjamin, cujos escritos sobre o poeta francês se tornaram incontornáveis e
contribuíram para os estudos do poeta francês e sua associação com o livre
perambular. Benjamin diz que a rua é a casa do flâneur.
Mas
há outras formas de levar a casa para a rua que impedem o descompromisso.
“Mesmo
quando a mulher acessa o espaço público, esse movimento muitas vezes se resume
a uma espécie de expansão da função do espaço privado”, escreve Camila Assad,
que diz que a mulher sai à rua para a "manutenção do lar".
A
citação vem de “Desterro”, terceiro livro de Assad. Poeta e tradutora, ela lê,
na obra, a experiência da mulher na cidade, transferindo para a literatura as
pesquisas dos tempos de estudante de arquitetura em Presidente Prudente, no
interior de São Paulo, onde nasceu.
Radicada
na capital paulista, ela diz que percebeu “logo após os primeiros 40 dias” da
pandemia quanto sua criação estava atrelada à vivência urbana. Mas conta que
esta já não era sem conflitos.
Além
de a mulher sair levando consigo os afazeres domésticos —o avesso da falta de
propósito—, ela está na rua sob o signo da ameaça.
Livros
como “Feminist City”, da geógrafa canadense Leslie Kern, ou “Flâneuse”, da
escritora americana Lauren Elkin, ambos ainda sem tradução no Brasil, abordam o
assunto.
A
mãe dessa corrente, com que Assad dialoga, é a ensaísta americana Rebecca
Solnit, que dedicou ao assunto um capítulo de seu “Wanderlust” —publicado em
português apenas com seu subtítulo, “Uma História do Caminhar”.
Em
“Desterro”, Assad revisitou ainda suas leituras de Baudelaire e Benjamin. E diz
que, ao escrever, pensava muito no comentário do alemão sobre o ritmo do
flâneur ser como “deambular com uma tartaruga”. “Para mim, as mulheres
caminhariam com coelhos.”
“As
Flores do Mal” levou para a poesia tipos que não cabiam nela. Os femininos,
porém, sublinha Camila Assad, “são as prostitutas, a viúva, a velha, a lésbica
e a passante, a mulher enquanto musa”. A mulher era “objeto de análise e
observação, assim como ele fazia com a própria cidade, mais próxima da
descrição da metrópole do que um ser atuante".
É
de outras formas que o deslocamento se tematiza na obra da poeta Marília Garcia. Aparece, por exemplo em "Um Teste de
Resistores", livro de 2014 que nasce do seu embate com São Paulo, para
onde se mudara, vinda do seu Rio natal.
Ela
diz ter “escrito pouquíssimo na pandemia”. Um dos poucos textos foi iniciado
ainda em 2019 e surgiu da observação das árvores de sua rua.
Ao
tentar adaptar o escrito para ler “num Zoom”, constatou que sua espacialidade
não cabia no momento. “Era um texto do século passado! Hoje os espaços são
outros.”
Há
outras maneiras, porém, de entender o vagar na literatura, o que pode ser uma
saída metafórica para a “flânerie”.
“Os deslocamentos no que escrevo”, diz Garcia, “podem estar muito relacionados com os da palavra no discurso”. O percurso da escrita também pode levar o autor sem que ele saiba onde vai dar.
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