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Folha de S. Paulo
Se
houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?
“Qual vacina devo tomar, doutor?”. Nos EUA, na
Europa e até no Brasil, médicos são confrontados com a inédita indagação.
Jamais perguntamos a marca da vacina tríplice de nossos filhos ou do imunizante
contra a febre amarela. Contudo, com a pandemia
de Covid, a população mundial foi exposta a um curso relâmpago de
imunologia cujo efeito colateral é a obsessão por comparar vacinas. Por que não
selecionar a vacina como escolhemos automóveis ou celulares?
Mike Ryan, da OMS, deu a resposta certa e óbvia: a decisão racional é tomar o
primeiro imunizante que lhe for oferecido. O raciocínio justifica-se por duas
razões, uma “egoísta”, outra “altruísta”. A primeira: como
todas as vacinas aprovadas previnem a imensa maioria dos casos graves,
vacinar-se logo é proteger sua própria saúde. A segunda: cada pessoa imunizada
contribui na redução da pressão sobre o sistema hospitalar.
Depois
de meses de angustiante expectativa sobre o desenlace dos testes de
imunizantes, o mundo foi informado de que, no lugar do temido fracasso
universal, a ciência operou um pequeno milagre. As
vacinas pioneiras, de tecnologia inovadora (Pfizer/BioNTech e Moderna),
exibiram taxas de eficácia em torno de 95%. As seguintes, porém,
apresentaram taxas menores, entre os 66% da Janssen ou 63% da
AstraZeneca/Oxford e os 50% da Coronavac.
Aquilo
que, antes, seria celebrado como triunfo, ganhou ares de decepção. Daí
a pergunta que atormenta os médicos. A imprensa não prestou o melhor
serviço público ao destacar, em manchetes, o número singular que indica a taxa
de eficácia geral das vacinas. De um lado, porque há três taxas diferentes de
eficácia: contra infecção, morbidade ou mortalidade. De outro, porque os testes
de fase 3 não são comparáveis entre si.
A
Pfizer testou em amostra da população adulta; o Butantan testou a Coronavac
entre profissionais de saúde da linha de frente, normalmente expostos a cargas
virais maiores. Testes em diferentes países captaram a ação vacinal contra
variantes diversas do vírus. Só conseguiremos cotejar imunizantes ao longo dos
próximos meses, a partir de experimentos controlados ainda em andamento.
A publicidade ilusória das taxas de eficácia tem implicações negativas. Os EUA
renunciaram a direcionar o produto da Janssen, que não exige ultracongelamento,
às pequenas cidades, pois a decisão lógica seria fulminada pela (falsa)
acusação de discriminação contra os pobres.
Na
União Europeia, governos acuados pela lentidão na imunização decidiram cobrir
seus erros deflagrando uma guerra retórica contra a AstraZeneca. O francês
Macron chegou, ridiculamente, a dizer que a vacina seria “quase ineficaz” para
maiores de 65 anos. O bombardeio oportunista prejudicou ainda mais o processo
de vacinação, nutrindo resistências ao uso de um dos principais imunizantes
disponíveis na região. Inexistem cardápios de vacinas. Os
sistemas de saúde aplicam a vacina que está à mão. Mas, e se houvesse
abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?
Na ausência de nítidos motivos imunológicos, minha resposta derivaria de
critérios éticos. Na Europa, eu optaria pela AstraZeneca. A associação da
farmacêutica com a Universidade de Oxford comprometeu-se a vender seu produto
sem lucro durante toda a pandemia, o que merece aplausos. Além disso, o gesto
expressaria minha aversão à hipocrisia de Macron e cia.
No
Brasil, pelo contrário, eu escolheria a Coronavac, como forma de reconhecer a
persistência heroica e a competência do Butantan –e de protestar, solitariamente,
contra os escandalosos atrasos da Fiocruz na entrega de doses da AstraZeneca.
Felizmente, não terei opção: vacino-me com a primeira que chegar a meu ombro.
Será, de qualquer modo, um protesto contra o negacionismo criminoso de
Bolsonaro e a estúpida campanha antivacinal de seus acólitos.
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