sábado, 13 de novembro de 2021

Ricardo José de Azevedo Marinho* - O Sorriso do Jaguar

Em julho de 1986 Salman Rushdie, atendendo a um convite, viaja para Manágua (capital da Nicarágua). Várias semanas depois da viagem, ele ficou tão afetado pelo que vira que não conseguia parar de pensar e de falar sobre a Nicarágua. Como literato a forma de lidar com essa sensação era escrever. E assim nasceu O Sorriso do Jaguar: uma Viagem pela Nicarágua (Editora Guanabara) publicado em 1987.

Para Salman, os melhores momentos ocorreram ao ser entrevistado por Bianca Jagger, uma nicaraguense, para a revista “Interview”. Toda vez que ele se referia a um nicaraguense conhecido, de esquerda ou de direita, Bianca comentava, vagamente, em tom neutro: “Ah, sim, a gente namorou, faz tempo”. Essa era a verdade a respeito da Nicarágua. Era um país pequeno, com uma classe dominante minúscula. Os combatentes, dos dois lados, tinham todos frequentado a escola juntos, eram membros daquela classe dominante e um conhecia a família do outro, ou até, quanto aos Chamorro, vinham da mesma família; e todos tinham namorado uns com os outros. A versão de Bianca dos eventos, não escrita, seria mais interessante (e, com certeza, mais picante) do que a dele.

Por ocasião do lançamento do livro nos Estados Unidos da América, um apresentador de um programa de entrevistas, a quem desagradara sua oposição ao bloqueio contra a Nicarágua e ao apoio de Reagan aos “contras”, que tentavam derrubar o governo sandinista, perguntou-lhe: “Senhor Rushdie, até que ponto o senhor é um inocente comunista útil?”. Com uma gargalhada — o programa era ao vivo —, Salman aborreceu o apresentador mais do que com qualquer outra resposta que tivesse dado. Mas aqui começa o espinhoso problema da definição de crimes e presos políticos.

Na grande maioria dos países onde houve, há ou haverá presos políticos, existem leis que criminalizam certos atos políticos. No México existe, em Cuba idem, e as normas hoje vigentes na Nicarágua punem qualquer conexão com financiamento externo a organizações não governamentais (ONGs), um crime tipificado na lei desse país.

Se voltarmos às ditaduras na Ibero-América nos anos 1970 e 1980 ou às leis — incluindo as de Nuremberg — da Alemanha nazista, veremos que o problema não é o fato de um comportamento político violar a lei ou não, porque as ditaduras tendem a ter leis que proíbem certas atividades políticas, principalmente aquelas que buscam acabar com a ditadura.

Portanto, não é apenas o crime em si que define o caráter do preso político. Um preso também pode pertencer a esta categoria se violou uma lei perfeitamente formulada e/ou cometeu um ato contrário a uma ditadura sem violar nenhuma lei, como aconteceu várias vezes na História. Em outras palavras: a definição de “preso político” é sempre movediça, pois, de acordo com o regime, amplia-se seu entendimento para incluir outras tipificações, quiçá várias, “ad infinitum”.

Nesse sentido, até a imprensa nicaraguense foi, é e será presa politicamente, além de pré-candidatos, estudantes, dirigentes rurais e defensores dos direitos humanos. Tanto ela quanto outros atores podem ou não ter cometido crimes. E aí surge o problema do Poder Judiciário e do devido processo legal com condenações e absolvições. Mas não se pode responder às acusações em liberdade?

Aqui no Brasil se usou de tudo para prender os mandatários eleitos no período 1945-1950, bem como outras pessoas, a despeito da autoridade ter ou não a certeza (outro terreno de difícil sondagem, o que versa sobre a formação da convicção) de que cometeram os crimes de que eram acusadas. Em vez disso, trata-se de razões, motivações e impulsos políticos por parte dos governantes. É por isso que a experiência das eleições nicaraguenses em curso é especialmente escandalosa.

O fato de os juízes terem negado mais de uma vez as fianças da oposição nicaraguense mostra claramente a intenção política de suas prisões, bem como a impossibilidade de estes atos serem corrigidos antes de existirem condições políticas — não jurídicas — para uma retificação. Por isso é que, apesar das ilusões e dos equívocos de certos entusiastas e suas notas sobre o processo eleitoral nicaraguense, está claro que os aspectos jurídicos que o envolvem são praticamente irrelevantes.

O estranho é que um governo desse tipo recorra a tais práticas depois de ter visto o que aconteceu no seu passado. Poucos países na Ibero-América têm um histórico tão longo — a contar do período colonial — de presos políticos. Mas onde manda o capitão não manda o marinheiro. Esta é a Nicarágua de Daniel Ortega: idêntica ou pelo menos semelhante à Nicarágua da grande maioria dos governos daquele país bicentenário.

Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2021

*Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

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