EDITORIAIS
Bagunça administrativa se junta ao
populismo fiscal
Valor Econômico
Governo dá nova demonstração de amadorismo
com a barafunda criada em torno do projeto de lei de um novo Refis para
empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais
O governo Jair Bolsonaro deu nova
demonstração de amadorismo com a barafunda criada em torno do projeto de lei
que criaria um novo Refis para empresas de pequeno porte e microempreendedores
individuais. Mais do que a decisão de vetar integralmente o texto do
parcelamento de dívidas tributárias do Simples Nacional, aprovado pelo Congresso
em dezembro, causa espanto o grau de desarticulação entre as autoridades. Pode
até ser algo esperado em um governo recém-empossado, não em uma administração
que entra no quarto ano de mandato e pretende reeleger-se. No plano econômico,
os desencontros cada vez mais frequentes entre Bolsonaro e o ministro Paulo
Guedes minam o que resta de credibilidade da política fiscal.
O novo Refis - oficialmente batizado de Programa de Reescalonamento do Pagamento de Débitos no Âmbito do Simples Nacional (Relp) - permitiria a renegociação de até R$ 50 bilhões em dívida com o Fisco. O país tem hoje cerca de 16 milhões de micro ou pequenas empresas, além de MEIs, que sofreram com os efeitos da pandemia. Boa parte tem a continuidade de seus negócios ameaçada. Como sinal da crise, há quatro meses, a Receita Federal notificou 440.480 devedores do Simples com “significativo” valor pendente de regularização.
É defensável a justificativa técnica do
Ministério da Economia e da Advocacia-Geral da União (AGU) para recomendar o
veto - a necessidade de apontar compensação, possivelmente por meio de aumento
de tributos, à renúncia fiscal acarretada pelo perdão das dívidas. O que deixa
todo o panorama embaçado é a bagunça gerencial.
O projeto teve aprovação praticamente
unânime dos deputados, em sua votação final na Câmara, e o governo em nenhum
momento apresentou ressalvas públicas ao texto. Diante do posicionamento de
seus auxiliares contra a sanção, Bolsonaro reagiu supostamente indignado na
“live” semanal das quintas-feiras e aparentemente sem saber que a transmissão
havia começado, desdenhando “os caras [que] queriam que eu vetasse o Simples
Nacional”. Mandou os técnicos “darem um jeito” e reverterem o veto recomendado.
Em vão. Um dos motivos para barrar o Refis teria sido incompatibilidade com a
legislação eleitoral, que impediria novos benefícios em ano de ir às urnas.
Revelou-se que, entre a vontade política de
sancionar e a sugestão técnica de vetar, o martelo foi batido às 23h36 da
quinta-feira - a menos de meio-hora do limite máximo para uma decisão final.
Literalmente, é isso o que dá deixar para a última hora. Foi uma atitude
desnecessária. O novo marco legal das ferrovias, aprovado pelo Congresso na
mesma semana do Relp, teve sanção presidencial - e vetos específicos - no dia
23 de dezembro. Tivesse se debruçado antes sobre potenciais conflitos do Refis
para as micro e pequenas empresas, uma solução de compromisso talvez pudesse
ter sido achada.
Assim, doses praticamente semanais de
confusão vão se sucedendo, não apenas na área econômica, como se viu no recente
atropelo da Anvisa sobre a vacinação de crianças e no apagão de dados da
plataforma ConecteSUS. No campo orçamentário, a precipitação de Bolsonaro em
sinalizar reajuste salarial para policiais deflagrou movimentos grevistas em
outras corporações do serviço público e engendrou nova fonte de pressão por
aumento de gastos em 2022.
Como consequência, 324 profissionais da
Receita Federal entregaram seus cargos comissionados. Operação-padrão dos
auditores já causa atrasos na liberação de cargas nos portos de Santos (SP),
Itajaí (SC) e Pecém (CE). Servidores do Banco Central seguem pelo mesmo
caminho. O funcionalismo ameaça uma primeira paralisação no dia 18. Bolsonaro
abriu a caixa de Pandora.
Pressionado pela queda na popularidade, o presidente vai cedendo. Acrescenta, às trapalhadas administrativas, um mergulho no populismo fiscal. Pode-se entender dessa forma a MP 1.090, que concede abatimento de até 92% das dívidas do Fies, para pouco mais de 1 milhão de estudantes que deixaram de pagar suas prestações. O fundo de financiamento universitário tem R$ 123 bilhões a receber dos devedores e o Balanço Geral da União registrou, ao fim de 2020, ajuste para perdas de R$ 27,9 bilhões com o programa. Sem focalização, ignorando distinções entre quem poderia e quem não poderia pagar, a MP destrava a porteira para outro problema mais à frente: a judicialização dos contratos ativos por quem está em dia com o programa e se sentirá, não à toa, punido por respeitar seus compromissos.
Euro, 20
Folha de S. Paulo
Criação da moeda única trouxe prosperidade
para a Europa, mas necessita ajustes ainda incompletos
A criação da moeda única europeia
completou duas décadas
no início deste ano. Embora o euro já fosse usado como referência
contábil em transações bancárias desde 1999, a troca do meio circulante ocorreu
três anos depois num contexto de forte otimismo com o projeto europeu, apoiado
maciçamente pela população.
O contexto político da época era propício.
O passo final foi dado a partir da queda da cortina de ferro, que trouxe certa
ansiedade.
O então presidente francês, François
Mitterrand, considerava que a moeda comum seria um mecanismo para ancorar
definitivamente a Alemanha —cuja dimensão econômica seria ainda mais dominante
depois da unificação— na Europa Ocidental, e assim garantir a perenidade da paz
no continente.
Na virada de 2002, 11 países substituíram
suas moedas nacionais pelo euro (universo depois ampliado para 19), mas os
impactos positivos foram sentidos muito antes.
A expectativa de sua criação propiciou um
boom econômico ao longo da década de 1990, quando as taxas de juros dos
esperados membros convergiram para a referência livre de risco de crédito, os
títulos públicos emitidos pela Alemanha.
Com juros menores na periferia e
transferências fiscais do bloco, houve forte crescimento e investimentos em
infraestrutura em países como Espanha, Portugal e Itália, processo que se
estendeu na década seguinte e foi interrompido apenas com a crise
financeira de 2008, que confirmou as temidas fragilidades do
projeto.
Nos anos que antecederam a crise, a
percepção popular era de que as expectativas mais positivas estavam sendo cumpridas,
com bom desempenho econômico geral e o crescimento do uso do euro
internacionalmente e como moeda reserva, rivalizando com o dólar.
Os problemas legados pela crise, contudo,
expuseram os excessos financeiros em países como Espanha, Grécia e Portugal, e
trouxeram desconfiança quanto à solvência desses governos.
A falta de uma união bancária e a
permanência de instituições fiscais separadas em nível nacional se mostraram
críticas. A resistência dos países superavitários em aceitar transferências
quase pôs o projeto a perder entre 2010 e 2014.
Tardiamente, mas de forma decisiva, o bloco
conseguiu realizar melhorias institucionais e o pior da crise ficou para trás.
Mas o ajuste permanece incompleto, pois
alguns países continuam a ter superávits nas contas externas frente a outros,
com níveis muito distintos de prosperidade. Não por acaso, o apoio popular hoje
é menor, mas os avanços dos últimos anos dão margem a otimismo quanto à
perenidade do ambicioso projeto político e econômico.
A jogada de Putin
Folha de S. Paulo
Convulsão no Cazaquistão traz riscos, mas
pode fortalecer russo na disputa que trava na Ucrânia
Durante os 30 anos que se seguiram ao fim
da União Soviética, o Cazaquistão só fez manchetes no Ocidente quando seu
ditador passou o bastão para um autocrata em 2019, um processo algo turbulento.
No mais, era conhecido como o país que
sedia a base espacial russa de Baikonur, polo de mineração de bitcoins, grande
exportador de hidrocarbonetos e urânio e pátria do personagem
satírico Borat.
Foi assim até quarta passada (5), quando
houve uma erupção social na maior nação da Ásia Central. Naquele dia, prédios
públicos foram incendiados, dezenas
morreram. Um choque para quem mirava lá uma ilha de estabilidade.
Como ocorreu no Brasil de 2013, tudo
começou com um protesto econômico, no caso o aumento do gás liquefeito de
petróleo, que é muito usado em veículos.
Mas a situação escalou para um confronto
armado, apesar da escassez de relatos, até porque o governo tirou da tomada
tanto a internet quanto a telefonia móvel.
Ato contínuo, administração de
Kassim-Jomart Tokaiev tomou medidas além da repressão. Após o presidente
retirar algumas funções do antecessor, que ainda flutuava sobre o establishment
local, ele apelou a Vladimir Putin no Kremlin.
O Cazaquistão é parte da chamada periferia
ex-soviética, que o líder russo quer restaurar como área de influência para
garantir espaço estratégico contra inimigos.
Sua presença convocada por Tokaiev, na
forma dissimulada de tropas de uma aliança militar de antigos membros da União
Soviética sob comando de Moscou, seria esperada num caso desses.
Mas o momento para tudo isso traz elementos
que desafiam a casualidade. Nesta segunda (10), russos e americanos começam a
debater o impasse em torno da pressão
militar que o Kremlin impõe à Ucrânia, com mais de 100 mil soldados
em posição que o Ocidente lê como a de uma invasão para garantir seus
interesses e a autonomia de separatistas pró-Rússia.
Assim, ou bem a crise cazaque atrapalhará
Putin como diversionismo, ou o ajudará, pois uma solução que parece se
encaminhar o pinta como alguém que garante a paz com o uso da força. Ele sentará
à mesa com mais musculatura.
Ambas as alternativas apontam para teorias
conspiratórias sobre quem sequestrou os atos e os manipulou. Na prática, tanto
faz para o longevo presidente russo: até aqui, tudo sugere que ele sairá
beneficiado deste momento agudo.
Nova promessa nas privatizações
O Estado de S. Paulo
Fracasso na venda de estatais em uma gestão pretensamente liberal mostra que é preciso mais que retórica para que processos se concretizem
Sem concluir nenhuma privatização em três
anos, o governo renovou a aposta na venda de estatais para 2022. O secretário
especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da
Economia, Diogo Mac Cord, disse que a União deve se desfazer do controle de
sete companhias nos próximos meses. É uma expectativa bastante otimista, ainda
que mais realista que a de seu antecessor, Salim Mattar, e a do ministro da
Economia, Paulo Guedes, que prometia arrecadar R$ 1 trilhão com a venda de
empresas públicas federais.
A capitalização da Eletrobras, por exemplo,
ainda precisa do aval do plenário de ministros do Tribunal de Contas da União
(TCU), mas tudo indica que a primeira privatização sob Jair Bolsonaro será
finalmente concretizada. Em paralelo, técnicos do Executivo, da estatal e do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) já trabalham nas
questões operacionais relacionadas à emissão de novos papéis. Os riscos estão
nas prováveis ações que serão apresentadas por funcionários na Justiça e no
próprio presidente da República – que é quem mais boicota as ações de seu
próprio governo e que nunca apoiou medidas que modernizem o Estado. Há quem
acredite que ele possa interromper o processo caso enxergue algum ganho
eleitoral nessa atitude. Prudente, o Congresso nem sequer incluiu a previsão de
recursos da operação no Orçamento deste ano.
Para justificar esse atraso, Diogo Mac Cord
mencionou, em entrevista ao Estadão/broadcast, que teve que tocar as
privatizações do zero, pois não havia “memória” dentro do Executivo para tal.
Para além de ecoar o falso discurso da “herança maldita” do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, a declaração ignora os avanços obtidos durante a gestão
do ex-presidente Michel Temer, quando sete distribuidoras de energia que
causaram prejuízos bilionários à Eletrobras por 20 anos foram leiloadas. Esse
processo contribuiu de maneira preponderante para o saneamento da estatal. Vem
dessa mesma época o marco que autorizou os desinvestimentos e que permitiu à
Petrobras vender gasodutos e refinarias.
Foi também o governo Temer que apresentou o
primeiro projeto sobre a privatização da Eletrobras ao Congresso. Mesmo sem ser
aprovado, ele deu base para o texto enviado pela gestão atual e que foi
aprovado pelo Legislativo no ano passado. Já os “jabutis” incluídos na medida
provisória e que aumentarão o custo da energia em R$ 84 bilhões ao longo dos
próximos anos são mérito exclusivo da equipe de Bolsonaro, que compactuou com
as emendas no desespero para não ver a proposta caducar.
Outra privatização que deve se concretizar
é a da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa). A exemplo da Eletrobras,
trata-se de um projeto que remete ao governo Temer, quando tiveram início os
estudos para sua estruturação. Quanto às demais estatais, é improvável que haja
avanços. Com mais de 90 mil empregados e presença em todos os municípios do
País, os Correios dificilmente serão desestatizados. Aprovada pela Câmara em
uma votação relâmpago, sem a participação da sociedade, a proposta que cria um
novo marco postal está parada no Senado e não há perspectiva de que seja votada
em um ano eleitoral.
O fracasso das privatizações em uma
administração que se diz liberal na economia é prova de que é preciso muito
mais do que retórica para que esses processos sejam bem-sucedidos. Eles
demandam tempo, planejamento e esforços de dezenas de técnicos para avançar,
além de articulação política para vencer resistências, algo de que Bolsonaro
abdicou ao instrumentalizar as emendas de relator para criar uma base de apoio.
Tratar o assunto como promessa eleitoral, sem que estudos tivessem sido
previamente realizados, gerou apenas falsas expectativas. Exemplos anteriores
demonstram que toda desestatização deve ser tratada de maneira séria e
comprometida com resultados, de forma a permitir ao Estado que priorize o uso
de seus escassos recursos em áreas como saúde, educação, segurança e políticas
sociais, que são sua verdadeira vocação.
Redução de danos na educação superior
O Estado de S. Paulo.
Fundações estaduais de amparo à pesquisa se
contrapõem à inoperância do MEC e ao esvaziamento da Capes e do CNPQ
Ensino, ciência e pesquisa nunca foram
prioridades para o presidente Jair Bolsonaro. Basta ver a mediocridade dos
escolhidos por ele para assumir o Ministério da Educação (MEC). A visão
estreita de Bolsonaro, focalizada apenas em seus interesses eleitorais mais
imediatos, não lhe permite avaliar devidamente o papel primordial que a
educação desempenha no desenvolvimento do País.
O retrato mais visível dessa limitação é a
inoperância do MEC, do qual só se ouve falar quando o atual ministro, Milton
Ribeiro, ou algum de seus auxiliares, faz uma nova besteira. Há poucos dias,
por exemplo, Ribeiro voltou a ser lembrado por editar uma portaria que impedia
a exigência do comprovante de vacinação contra a covid-19 de alunos,
professores e servidores de universidades e institutos federais. O ministro
Ricardo Lewandowski, do STF, suspendeu o ato do MEC, restabelecendo a primazia
da saúde pública sobre o adesismo cego do titular da pasta aos desatinos de
Bolsonaro.
As restrições orçamentárias impostas à
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) também
refletem o descaso do governo com a educação superior e a pesquisa científica.
Muito mais do que qualquer questão de natureza fiscal, a falta de investimento
nas universidades e em projetos de pesquisa decorre, fundamentalmente, do
preconceito de Bolsonaro contra as universidades, tidas pelo presidente como
“antros de comunistas”, ou coisa que o valha.
O resultado mais perceptível da falta de
incentivo à pesquisa no Brasil é a evasão cada vez maior de bolsistas de
mestrado, doutorado e pós-doutorado, que buscam no exterior a valorização que
não recebem em seu próprio país (ver editorial Fuga de cérebros, 9/6/2021).
Desde 2013, as bolsas de pesquisa das duas instituições federais não são
reajustadas. Tanto a Capes como o CNPQ dizem que “estudam conceder reajustes”,
mas não informam prazos nem valores. Bolsistas de mestrado recebem de ambas as
instituições R$ 1,5 mil; e de doutorado, R$ 2,2 mil. São valores insuficientes
para a subsistência dos pesquisadores, considerando que muitos programas de
pesquisa exigem dedicação exclusiva.
Para tentar conter a evasão de
pesquisadores e o abandono de projetos de pesquisa essenciais para o País, como
projetos ligados à covid-19, três fundações estaduais de amparo à pesquisa
anunciaram reajuste de suas bolsas de pós-graduação. As fundações de Minas
Gerais (Fapemig), do Rio de Janeiro (Faperj) e de Santa Catarina (Fapesc)
concederão aumento de 20% a 25% nas bolsas pagas a alunos de mestrado e
doutorado. A Fapergs, do Rio Grande do Sul, anunciou que também vai reajustar
suas bolsas, sem falar em valores. A Fapemig passará a pagar R$ 1.875 para
mestrandos e R$ 2.750 para doutorandos. A Faperj anunciou que mestrandos
passarão a receber bolsa de R$ 2 mil, enquanto doutorandos receberão R$ 2.875.
Já a Fapesc informou que sua bolsa de mestrado passará a ser de R$ 1,8 mil e de
doutorado, R$ 2.640.
A Fapesp continua a ser a instituição que
paga as maiores bolsas de pesquisa do País. A fundação paulista reajustou o
valor das bolsas de mestrado e doutorado em 2018 para R$ 2.168,70 e R$
3.726,30, respectivamente.
As fundações estaduais de amparo à pesquisa
são importantíssimas, principalmente quando suas ações são contrastadas com a
inoperância federal. No entanto, são insuficientes para, de forma isolada,
elevar o patamar da pesquisa científica nacional. Basta dizer que a Capes
responde por 73% das bolsas de pós-graduação do País, enquanto o CNPQ é
responsável por 13%. As fundações estaduais pagam os 13% restantes.
Como em outras áreas, a falta de políticas
públicas coordenadas no âmbito federal é fatal para o bom desenvolvimento da
educação no País. É ocioso esperar do atual governo uma mudança de rumo a esta
altura. A bem da verdade, falta de rumo é uma das marcas da “administração”
Bolsonaro, se é que assim pode ser chamada. Resta aos entes federativos adotar
políticas de mitigação de danos até que o País volte a ter um governo digno do
nome.
Governo faz populismo com MP do Fies
O Globo
A Medida Provisória editada pelo presidente
Jair Bolsonaro no penúltimo dia do ano permitindo que beneficiários do Fundo de
Financiamento Estudantil (Fies) renegociem suas dívidas em até 12 anos é a
típica decisão que muda para não mudar. Programa implementado em 1999 para
ampliar o acesso ao ensino superior, o Fies já passou por várias reformulações,
e nenhuma conseguiu resolver uma de suas principais mazelas: a inadimplência
crônica. O pacote de bondades contido na MP de fim de ano só empurra o problema
para a frente.
Estudantes inscritos no Cadastro Único para
Benefícios Sociais do Governo Federal (CadÚnico) ou que tenham recebido auxílio
emergencial terão direito a um desconto de 92% em suas dívidas. Para os demais,
o perdão será de 86,5%. Em ambos os casos, o valor poderá ser quitado em dez
prestações mensais. A Secretaria-Geral da Presidência afirmou que a medida é um
instrumento para sanear a carteira de crédito do Fies.
Difícil imaginar que tal perdão, motivado
por interesse eleitoral, ajudará a sanear o fundo. Em audiência pública na
Câmara dos Deputados em maio de 2019 para discutir os problemas do Fies,
informou-se que o total de endividados chegava a quase metade (47,7%) dos
beneficiários (1,1 milhão) e que a dívida à época era de R$ 12 bilhões — hoje
passa de R$ 38 bilhões.
A decisão de Bolsonaro, às vésperas de um
ano eleitoral e depois de o petista Luiz Inácio Lula da Silva ter defendido
anistia aos estudantes, contraria o que dizem os técnicos do próprio governo.
Eles recomendam “reforçar os mecanismos de recuperação de créditos
inadimplentes”. Um relatório sobre o Fies feito pelo Conselho de Monitoramento
e Avaliação de Políticas Públicas em 2019 constata que a inadimplência é um de
seus grandes problemas, com potencial para “afetar sua sustentabilidade ao
longo dos anos”.
A análise aponta que quase todos os
pagamentos em atraso se concentram em financiamentos contratados na segunda
fase do Fies, justamente quando houve afrouxamento nas normas. “Pode-se
concluir que a flexibilização das regras ocorrida nessa fase e a consequente
expansão do programa elevaram substancialmente o risco fiscal do Fies”, afirma
o documento.
O relatório sustenta ainda que parcela
significativa dos inadimplentes poderia arcar com as prestações. “Observa-se
que 61,5% dos alunos que se encontravam na fase de amortização em janeiro de 2019
trabalharam com vínculo formal em algum momento de 2018.” Ainda segundo a
avaliação, o comprometimento da renda do beneficiário com o programa é de
apenas 12%. Os técnicos afirmam que a retenção das parcelas de amortização
diretamente na folha de pagamento “poderia resultar numa redução significativa
da taxa de inadimplência”.
O governo não parece interessado em
melhorar o programa. A MP de Bolsonaro se presta tão somente a fazer populismo
às vésperas da eleição. Não ataca os verdadeiros problemas do Fies, uma
política pública bem-intencionada, mas que nunca funcionou a contento, tanto
que já foi mudada várias vezes, sem sucesso. Sem falar que a decisão é um
péssimo exemplo aos estudantes, ampliando o que os economistas chamam de “risco
moral”: quem deixou de pagar as prestações acaba levando vantagem sobre os que
se esforçaram para cumprir suas obrigações. Que pedagogia é essa?
O recado que o caso Theranos traz para o
sistema judicial brasileiro
O Globo
Quando apareceu no noticiário no início do
século, a americana Elizabeth Holmes era saudada como nova promessa do Vale do
Silício. A exemplo de Bill Gates ou Mark Zuckerberg, abandonara uma faculdade
de elite — não Harvard, mas Stanford — para perseguir seu sonho de
empreendedora. Na onda do genoma humano, apostava na medicina como nova
fronteira da economia do conhecimento. Sua empresa, a Theranos, ofereceria
testes indolores, rápidos e baratos para as mais variadas doenças e condições
de saúde, disponíveis em qualquer farmácia. Uma gotícula de sangue por dia e
você saberia tudo sobre o próprio corpo. Em 2003, aos 19 anos, Holmes era
aclamada pela imprensa de negócios como o novo Steve Jobs — usava até as mesmas
blusas cacharrel pretas.
Bastou um jornalista investigativo se
debruçar sobre a Theranos — John Carreyrou, no Wall Street Journal — para
descobrir que a promessa então avaliada em US$ 9 bilhões não passava de
cascata. Em 2015, 12 anos depois de fundada a empresa, ficou claro para todos
que as máquinas milagrosas anunciadas por Holmes não passavam de um produto de
sua imaginação. Os equipamentos que chegavam às farmácias eram imprecisos,
incapazes de identificar de modo confiável se alguém era portador do HIV, tinha
câncer ou mesmo colesterol alto.
Holmes foi condenada na última
segunda-feira por ter enganado os investidores que apostaram centenas de
milhões de dólares na fantasia, incluindo expoentes do mundo dos negócios como
Rupert Murdoch e Larry Ellison, os ex-secretários de Estado Henry Kissinger e
George Shultz, o ex-secretário de Defesa James Mattis e a família da
ex-secretária da Educação Betsy DeVos. Com o aval de todos esses nomes, o caso
vem sendo considerado um choque de realidade para o Vale do Silício, onde qualquer
um munido de credenciais acadêmicas lustrosas, uma boa apresentação de
PowerPoint e lábia sedutora consegue tirar dinheiro do bolso de investidores e
celebridades.
Cada uma das quatro condenações poderá
render a Holmes 20 anos de cadeia (provavelmente não cumulativos). Ela passará
a integrar a extensa lista de criminosos corporativos que foram parar atrás das
grades nos Estados Unidos, como Martin Shkreli (que aumentou em 5.000% o preço
de uma droga contra a toxoplasmose), Adam Neumann (que desviou US$ 700 milhões
da WeWork), Andy Fastow e Ken Lay (condenados pela maquiagem contábil na Enron)
e tantos outros.
Curiosamente, o júri a absolveu das
acusações de lograr os pacientes, incapaz de enxergar crimes nos testes
oferecidos pela Theranos. O julgamento de Holmes traz uma mensagem relevante
para o Brasil, onde o desmonte da Operação Lava-Jato deflagrou uma discussão
interminável sobre abusos cometidos pela Justiça: o fato de um sistema judicial
respeitar o direito de defesa dos réus e o devido processo legal não significa
que os criminosos ricos e poderosos devam ter acesso a todo tipo de recurso e
manobra para ficar fora da cadeia.
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