segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Demétrio Magnoli: Djokovic expõe o jogo duplo da Austrália

O Globo

Novak Djokovic viajou para Melbourne para conquistar seu 21º torneio de Grand Slam, o recorde histórico que persegue. O jogo, porém, desenrolou-se fora da quadra, na esfera das regras da emergência sanitária. No fim, involuntariamente, o tenista número um expôs bem mais que seu próprio individualismo antissocial. A novela bizarra abriu uma fresta pela qual é possível admirar o espetáculo de governantes operando em perene Estado de Emergência.

Segundo Djokovic, a vacinação é uma simples escolha pessoal, algo como a opção entre carne ou peixe. Rejeitando a imunização, o tenista obteve isenção médica para participar do Aberto da Austrália, concedida por comissões “independentes” de especialistas criadas pelos organizadores do torneio e pelo estado australiano de Victoria. A notícia da exceção, sob motivos não revelados, provocou furor numa Austrália traumatizada por quase dois anos de longos lockdowns e rígidos fechamentos de fronteiras externas e internas. Aí, o governo federal renegou seu acordo imoral com as autoridades de Victoria, revogou o visto do infrator e emitiu uma ordem de deportação.

“Ninguém está acima das regras!”, declarou Scott Morrison, o primeiro-ministro australiano, que enfrenta uma incerta eleição federal em maio. Seu vice, Barnaby Joyce, deu um passo além, acusando o sérvio Djokovic de tentar “transformar o poder soberano de outra nação numa pilhéria”. Joyce ainda acrescentou, em curto sermão indignado: “Você não pode simplesmente perambular pelo mundo imaginando que, por ser muito rico, está acima das leis de outras nações”.

Morrison e Joyce ganharam aplausos de legiões de tolos. Os outros, especialmente na Austrália, sabem mais.

Durante a pandemia, celebridades de Hollywood converteram a ilha-continente que já foi livre de Covid-19 em parque de folguedos, beneficiando-se de exceções concedidas pelas autoridades para transferir residência temporária a ranchos ou mansões de praia. Na “Aussiewood”, idílico paraíso nos Mares do Sul, pousaram Zac Efron, Mark Wahlberg, Matt Damon, Julia Roberts, George Clooney e Idris Elba, que cumpriram “quarentena” nas suas novas casas, evitando os deploráveis “hotéis de quarentena” obrigatórios para os cidadãos australianos. Enquanto isso, 40 mil australianos residentes no exterior, muitos já sem emprego ou renda, permaneciam impedidos de retornar a seu próprio país, rodeado pelas muralhas intransponíveis da emergência sanitária.

“A Austrália segue a ciência” — quantas vezes a frase foi repetida por epidemiologistas hipnotizados pela estratégia de “Covid zero”? A invocação da Ciência, assim, com maiúscula, resulta de uma grave falha de formação intelectual. Todos os governos, invariavelmente, seguem a política. A distinção verdadeira é entre os que explicitam a natureza política de suas decisões e os que a ocultam sob o manto providencial da pura razão científica.

O primeiro grupo é composto de governos que, consultando comitês científicos, tomam decisões amparadas pelos parlamentos e escrutinadas pelos tribunais. Nesses casos, as regras de emergência sanitária aplicam-se a todos, sem privilégios ou exceções, e subordinam-se aos princípios gerais de direitos humanos. Lockdowns e restrições de liberdades públicas têm limites, impostos pelo bem-estar básico da sociedade. Nenhum cidadão pode ter ingresso vetado em seu próprio país. Ninguém pode ser discriminado por motivos extrassanitários, como origem, renda, raça ou religião.

No segundo grupo, estão governos como os da Austrália e da China, que só “seguem a ciência” na imaginação exaltada dos mais ingênuos epidemiologistas. O regime totalitário chinês encontrou na estratégia de “Covid zero” uma ferramenta perfeita para apertar os torniquetes de um opressivo controle social. Os cínicos governantes australianos encontraram nela o caminho ideal para extrair vantagens eleitorais de uma sociedade atemorizada pela difusão do inimigo microscópico.

A viagem fatídica de Djokovic não resultará no cobiçado 21º troféu. Talvez, porém, sirva para expor algo bem mais relevante que o negacionismo primitivo e arrogante de um tenista famoso.

 

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