O Globo
Novak Djokovic viajou para Melbourne para
conquistar seu 21º torneio de Grand Slam, o recorde histórico que persegue. O
jogo, porém, desenrolou-se fora da quadra, na esfera das regras da emergência
sanitária. No fim, involuntariamente, o tenista número um expôs bem mais que
seu próprio individualismo antissocial. A novela bizarra abriu uma fresta pela
qual é possível admirar o espetáculo de governantes operando em perene Estado
de Emergência.
Segundo Djokovic, a vacinação é uma simples escolha pessoal, algo como a opção entre carne ou peixe. Rejeitando a imunização, o tenista obteve isenção médica para participar do Aberto da Austrália, concedida por comissões “independentes” de especialistas criadas pelos organizadores do torneio e pelo estado australiano de Victoria. A notícia da exceção, sob motivos não revelados, provocou furor numa Austrália traumatizada por quase dois anos de longos lockdowns e rígidos fechamentos de fronteiras externas e internas. Aí, o governo federal renegou seu acordo imoral com as autoridades de Victoria, revogou o visto do infrator e emitiu uma ordem de deportação.
“Ninguém está acima das regras!”, declarou
Scott Morrison, o primeiro-ministro australiano, que enfrenta uma incerta
eleição federal em maio. Seu vice, Barnaby Joyce, deu um passo além, acusando o
sérvio Djokovic de tentar “transformar o poder soberano de outra nação numa
pilhéria”. Joyce ainda acrescentou, em curto sermão indignado: “Você não pode
simplesmente perambular pelo mundo imaginando que, por ser muito rico, está
acima das leis de outras nações”.
Morrison e Joyce ganharam aplausos de
legiões de tolos. Os outros, especialmente na Austrália, sabem mais.
Durante a pandemia, celebridades de
Hollywood converteram a ilha-continente que já foi livre de Covid-19 em parque
de folguedos, beneficiando-se de exceções concedidas pelas autoridades para
transferir residência temporária a ranchos ou mansões de praia. Na
“Aussiewood”, idílico paraíso nos Mares do Sul, pousaram Zac Efron, Mark
Wahlberg, Matt Damon, Julia Roberts, George Clooney e Idris Elba, que cumpriram
“quarentena” nas suas novas casas, evitando os deploráveis “hotéis de
quarentena” obrigatórios para os cidadãos australianos. Enquanto isso, 40 mil
australianos residentes no exterior, muitos já sem emprego ou renda,
permaneciam impedidos de retornar a seu próprio país, rodeado pelas muralhas
intransponíveis da emergência sanitária.
“A Austrália segue a ciência” — quantas
vezes a frase foi repetida por epidemiologistas hipnotizados pela estratégia de
“Covid zero”? A invocação da Ciência, assim, com maiúscula, resulta de uma
grave falha de formação intelectual. Todos os governos, invariavelmente, seguem
a política. A distinção verdadeira é entre os que explicitam a natureza
política de suas decisões e os que a ocultam sob o manto providencial da pura
razão científica.
O primeiro grupo é composto de governos
que, consultando comitês científicos, tomam decisões amparadas pelos
parlamentos e escrutinadas pelos tribunais. Nesses casos, as regras de
emergência sanitária aplicam-se a todos, sem privilégios ou exceções, e
subordinam-se aos princípios gerais de direitos humanos. Lockdowns e restrições
de liberdades públicas têm limites, impostos pelo bem-estar básico da
sociedade. Nenhum cidadão pode ter ingresso vetado em seu próprio país. Ninguém
pode ser discriminado por motivos extrassanitários, como origem, renda, raça ou
religião.
No segundo grupo, estão governos como os da
Austrália e da China, que só “seguem a ciência” na imaginação exaltada dos mais
ingênuos epidemiologistas. O regime totalitário chinês encontrou na estratégia
de “Covid zero” uma ferramenta perfeita para apertar os torniquetes de um
opressivo controle social. Os cínicos governantes australianos encontraram nela
o caminho ideal para extrair vantagens eleitorais de uma sociedade atemorizada
pela difusão do inimigo microscópico.
A viagem fatídica de Djokovic não resultará
no cobiçado 21º troféu. Talvez, porém, sirva para expor algo bem mais relevante
que o negacionismo primitivo e arrogante de um tenista famoso.
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