Folha de S. Paulo
Situação de milhões de trabalhadores por
aplicativo obriga governos progressistas a repensarem mercado de trabalho
As declarações
de Lula exaltando a nova reforma trabalhista da Espanha pautaram
o debate político na semana passada. Pouco ou nada foi feito, no entanto, para
entender a experiência histórica a que ele está se referindo.
O modelo de governança da Espanha
democrática, baseado na competição entre as regiões, com forte autonomia
financeira, e o Estado central, que administra os fundos europeus destinados ao
país, desmoronou depois do colapso financeiro de 2008.
Eleito em 2011, no auge da crise da dívida
na Europa, o governo conservador de Mariano Rajoy usou os números dramáticos do
desemprego entre os jovens, que chegou a 46% naquele ano, para justificar uma das
reformas trabalhistas mais rigorosas do continente. Foram os
assalariados transformados em precários na era Rajoy que ajudaram a fortalecer
o esquerdista Podemos a partir de 2014.
Depois de várias tentativas frustradas de chegar ao poder sozinho, o Podemos aceitou, em 2019, formar uma coalizão com os socialistas. Dos cinco ministros que o partido indicou para o governo de Pedro Sánchez, a que mais se destacou foi a ministra do Trabalho Yolanda Díaz.
Filha de militantes antifranquistas, a
advogada trabalhista se transformou numa decidida organizadora de reformas.
Ganhou protagonismo nacional a partir de 2020, quando se tornou responsável
pelos mecanismos de proteção das empresas e dos trabalhadores durante a crise
sanitária.
Entre outros sucessos, negociou, no começo
do ano passado, a lei Rider, que aboliu a servidão digital ao estabelecer o
vínculo empregatício entre trabalhadores e aplicativos de entrega. A nova lei
trabalhista, que tem como ponto forte a redução de empregos temporários, será
um marco em sua carreira.
Díaz mostrou que a diferença entre revogar,
rever e contrarreformar não é apenas semântica. Ela insistiu na necessidade de
criar uma lei a partir do zero para enfrentar os desafios do mercado de
trabalho pós-pandemia. Seu estilo ambicioso incomodou os correligionários do
Podemos, do qual ela se desfiliou, e dos socialistas, mais interessados em se
acomodarem com uma simples revisão da lei existente.
Hoje, empresários e sindicatos na Europa
reconhecem que o método Díaz é muito mais efetivo do que o de Emmanuel Macron,
que desencadeou os coletes
amarelos, a maior revolta popular da França desde 1968, na sua
primeira tentativa de reformar o país. Política mais popular da Espanha desde
2020, Díaz está articulando uma nova coalizão da esquerda e é vista como
sucessora de Sánchez no governo.
Não faltam paralelos entre a experiência
brasileira e espanhola. Ambas as reformas trabalhistas foram realizadas em
períodos de baixa intensidade democrática, sob a tutela do FMI na Espanha e, no
caso brasileiro, por iniciativa de um governo nascido de um impeachment
escabroso.
A situação dramática dos milhões de
trabalhadores por aplicativo, explorados por algoritmos e abandonados pelo
Estado, obriga os governos progressistas a repensarem o mercado de trabalho.
Mas mais do que o resultado final da obra
de Díaz, é o método posto em prática por ela que deve servir de inspiração. Sua
trajetória mostra que a esquerda moderna e unida domina como nenhum outro campo
ideológico a arte da reforma econômica.
*Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC
Nenhum comentário:
Postar um comentário