segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Mathias Alencastro*: A reforma espanhola

Folha de S. Paulo

Situação de milhões de trabalhadores por aplicativo obriga governos progressistas a repensarem mercado de trabalho

As declarações de Lula exaltando a nova reforma trabalhista da Espanha pautaram o debate político na semana passada. Pouco ou nada foi feito, no entanto, para entender a experiência histórica a que ele está se referindo.

O modelo de governança da Espanha democrática, baseado na competição entre as regiões, com forte autonomia financeira, e o Estado central, que administra os fundos europeus destinados ao país, desmoronou depois do colapso financeiro de 2008.

Eleito em 2011, no auge da crise da dívida na Europa, o governo conservador de Mariano Rajoy usou os números dramáticos do desemprego entre os jovens, que chegou a 46% naquele ano, para justificar uma das reformas trabalhistas mais rigorosas do continente. Foram os assalariados transformados em precários na era Rajoy que ajudaram a fortalecer o esquerdista Podemos a partir de 2014.

Depois de várias tentativas frustradas de chegar ao poder sozinho, o Podemos aceitou, em 2019, formar uma coalizão com os socialistas. Dos cinco ministros que o partido indicou para o governo de Pedro Sánchez, a que mais se destacou foi a ministra do Trabalho Yolanda Díaz.

Filha de militantes antifranquistas, a advogada trabalhista se transformou numa decidida organizadora de reformas. Ganhou protagonismo nacional a partir de 2020, quando se tornou responsável pelos mecanismos de proteção das empresas e dos trabalhadores durante a crise sanitária.

Entre outros sucessos, negociou, no começo do ano passado, a lei Rider, que aboliu a servidão digital ao estabelecer o vínculo empregatício entre trabalhadores e aplicativos de entrega. A nova lei trabalhista, que tem como ponto forte a redução de empregos temporários, será um marco em sua carreira.

Díaz mostrou que a diferença entre revogar, rever e contrarreformar não é apenas semântica. Ela insistiu na necessidade de criar uma lei a partir do zero para enfrentar os desafios do mercado de trabalho pós-pandemia. Seu estilo ambicioso incomodou os correligionários do Podemos, do qual ela se desfiliou, e dos socialistas, mais interessados em se acomodarem com uma simples revisão da lei existente.

Hoje, empresários e sindicatos na Europa reconhecem que o método Díaz é muito mais efetivo do que o de Emmanuel Macron, que desencadeou os coletes amarelos, a maior revolta popular da França desde 1968, na sua primeira tentativa de reformar o país. Política mais popular da Espanha desde 2020, Díaz está articulando uma nova coalizão da esquerda e é vista como sucessora de Sánchez no governo.

Não faltam paralelos entre a experiência brasileira e espanhola. Ambas as reformas trabalhistas foram realizadas em períodos de baixa intensidade democrática, sob a tutela do FMI na Espanha e, no caso brasileiro, por iniciativa de um governo nascido de um impeachment escabroso.

A situação dramática dos milhões de trabalhadores por aplicativo, explorados por algoritmos e abandonados pelo Estado, obriga os governos progressistas a repensarem o mercado de trabalho.

Mas mais do que o resultado final da obra de Díaz, é o método posto em prática por ela que deve servir de inspiração. Sua trajetória mostra que a esquerda moderna e unida domina como nenhum outro campo ideológico a arte da reforma econômica.

*Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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