Folha de S. Paulo
Distribuição de melanina em conselho de
banco e na Central do Brasil é diferente
Em entrevista
publicada dia 2 de janeiro nesta Folha,
Gina Abercrombie-Winstanley, chefe de Diversidade e Inclusão do Departamento de
Estado americano, manifestou sua surpresa com a falta de negros nos espaços de
poder no Brasil, apesar de a divisão étnica da população estar em
torno de 50%.
No dia 7, também
na Folha, Demétrio Magnoli criticou
a diplomata americana, dizendo que, na verdade, 47% dos brasileiros se declaram
como "pardos" no censo, e só 9% como "negros".
Reclamou, ainda, que no Brasil uma
estratégia política espúria juntou pretos e pardos na mesma categoria para
ocultar a questão social.
Abercrombie-Winstanley está certa, Magnoli
está errado.
Magnoli sabe muito bem do que
Abercrombie-Winstanley está falando.
Há alguns pardos e, eventualmente, um ou outro negro em espaços de poder brasileiros. Mas a distribuição de melanina na reunião do conselho de administração de um banco brasileiro e em um trem da Central do Brasil é muito diferente.
A aderência aos fatos da observação da
diplomata americana é indiscutível.
Quanto ao argumento sobre a substituição da
questão social pela questão racial, a resposta é simples: ao menos no Brasil,
ao menos até agora, isso nunca aconteceu.
Os pobres conquistaram o Bolsa
Família e os negros conquistaram as cotas pela
atuação dos mesmos militantes, dos mesmos parlamentares, dos mesmos movimentos
e partidos.
É possível que haja países em que o "identitarismo"
tomou o lugar da luta contra a pobreza, mas o Brasil claramente não foi um
deles.
Grande parte desse mérito é do Partido
dos Trabalhadores, quaisquer que sejam suas culpas ou os problemas
psiquiátricos de alguns de seus dirigentes atuais no Rio de Janeiro.
Na verdade, se Magnoli não quer que a
questão social compartilhe espaço com a questão racial, tem só duas
alternativas.
Uma delas é seguir o caminho dos livros de
história que só servem para animar festa de rico, como os de Leandro Narloch,
isolando a escravidão —o motivo das questões social e racial serem tão
amarradas no Brasil— em um passado distante sobre o qual não cabe julgamento
moral.
Concordo que a distância no tempo tem peso
no julgamento moral, mas a questão de quanto peso, em qual julgamento, tem que
ser discutida.
A escravidão brasileira acabou só 50 anos
antes do Holocausto
nazista, que até hoje nos inspira o mais absoluto horror.
O que aconteceu nesses 50 anos? O anãozinho
mágico do perdão desenhou uma linha atrás da qual tudo é "ah, vovô não
tinha jeito mesmo, curtia um genocídio"?
A outra opção seria propor uma
reestruturação revolucionária e, o que é fundamental, imediata, da estrutura
econômica brasileira.
Se Magnoli está defendendo uma revolução
hoje que garanta que os que hoje são pobres amanhã serão o poder, então talvez
não precisemos de cotas.
Não acredito que haja uma proposta bem
elaborada e factível de transformação socialista imediata disponível; não tenho
cara de pau suficiente para dizer para os descendentes dos escravizados
"não me inveje, trabalhe, desta vez vai ter salário".
Por isso, concordo com o
diagnóstico de Abercrombie-Wilkerson.
Resta, portanto, tratar a
questão racial e a questão social com o mesmo respeito, e tentar
resolvê-las com as reformas sociais apropriadas.
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