terça-feira, 26 de abril de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Nem reajustes ao funcionalismo evitam greves

O Globo

A barbeiragem econômica na concessão de aumentos aos funcionários públicos sempre foi evidente. O reajuste linear prometido pelo presidente Jair Bolsonaro a todo o funcionalismo equivale a injetar mais dinamite na bomba fiscal que ameaça o Orçamento. O que Bolsonaro acrescentou com seu movimento desastrado foi a barbeiragem política. Primeiro quis reservar R$ 1,7 bilhão para reajustar apenas salários de policiais e agentes federais. Não tardou, e o resto do funcionalismo passou a chiar. Agora reivindica reajustes na faixa dos 20% e já faz greves em pleno ano eleitoral.

O movimento grevista é liderado não pelos que mais sofrem com inflação, mas pela elite dos servidores da União: analistas do Banco Central e auditores da Receita, carreiras com salários médios de R$ 26.200 e R$ 29.300. No BC, está suspenso o Relatório Focus, que toda segunda-feira traz estimativas do mercado financeiro para indicadores macroeconômicos, e existem ameaças de paralisação do Pix. Nas aduanas, os fiscais da Receita fazem “operação-padrão”, afetando linhas de montagem industrial que usam componentes importados. Promotores e juízes — a elite da elite dos privilégios — estão de olho para reajustar as extensas e pesadas folhas salariais do Ministério Público e do Judiciário.

Inerte diante de categorias organizadas, o governo mantém paralisada no Congresso a reforma administrativa necessária para modernizar a gestão do funcionalismo. Bolsonaro nunca demonstrou maior interesse por ela. Trata-se de reforma prioritária por tornar a administração do Estado mais transparente e eficaz, extinguindo vantagens anacrônicas como promoções automáticas, férias em dobro e dezenas de gratificações absurdas. Ao privilegiar o mérito nas promoções, ela melhoraria o serviço à população e reduziria o custo da folha salarial do funcionalismo, que cresceu de modo quase ininterrupto nos últimos 15 anos e hoje corresponde a escandalosos 13% do PIB.

Em vez disso, o governo tentou contornar a crise provocada pelo anúncio de aumento aos policiais oferecendo reajuste linear de 5% a todo o funcionalismo. A distância para a demanda dos sindicatos é tão grande que o anúncio só serviu para criar novo impasse.

Ao mesmo tempo, a qualidade do serviço público — com as exceções de praxe — continua uma lástima. Balcões e guichês do INSS revelam a imensa inépcia da burocracia estatal. Reportagem do GLOBO revelou o tempo médio de espera para liberar benefícios: 333 dias para pobres e deficientes (BPC), 202,9 dias para aposentadoria por invalidez causada por acidente no trabalho, 152,3 dias para aposentadoria por tempo de serviço de professores, 125,3 dias para aposentadoria por tempo de contribuição, 117,2 dias para pensão por morte no trabalho.

A espera é tão longa que o Supremo fez um acordo para tornar o serviço mais ágil. Alguns números demonstram a dificuldade do INSS em cumprir o que prometeu. Um caso apenas: a fila dos pedidos de auxílio-doença e benefícios referentes a acidentes no trabalho passou de 254.023 em julho de 2019 para 964.560 no mês passado, um aumento de 280%. Os atrasos mais recentes são causados pelos médicos peritos. Todos já estão em greve pelos 20% de reajuste. Não surpreende que segurados do INSS morram antes de receber o benefício. É apenas uma das inúmeras provas de que o Estado brasileiro é um gerador de iniquidades.

Vitória de Macron funciona como sopro de esperança contra populismo

O Globo

A vitória de Emmanuel Macron nas eleições francesas foi substantiva — e traz um exemplo positivo a países que, como o Brasil, se debatem com os desafios do populismo de extrema direita. Ao derrotar Marine Le Pen, Macron se tornou o primeiro presidente reeleito na França em 20 anos. No quadro de polarização atual, foi expressiva a vantagem, superior a 17 pontos percentuais no segundo turno (ou 5,5 milhões de votos), que o reconduziu ao cargo apesar do desgaste inerente ao exercício do poder e da popularidade cadente.

O que explica a vitória é a rival. É certo que Marine chegou mais uma vez ao segundo turno e aumentou sua fatia do eleitorado (de 34% em 2017 para 41,5% agora). Mas todo o esforço para desfazer a imagem tóxica associada a seu partido foi insuficiente. Ela tentou concentrar a campanha na inflação e em críticas às reformas econômicas promovidas por Macron. Fez o possível para suavizar ainda mais o discurso radical. Mas não convenceu. Uma das promessas era proibir as muçulmanas de usar véu na rua. Não espanta que tenha fracassado sua tentativa de atrair os eleitores da esquerda se dissociando da pecha de “fascista”. No fim, Macron conquistou votos da esquerda e abriu larga vantagem.

Revitalizado pelas urnas para um novo mandato de cinco anos, Macron se torna o político mais poderoso da Europa (o alemão Olaf Scholz não tem o mesmo carisma nem a tarimba da antecessora, Angela Merkel). A guerra na Ucrânia convalidou a defesa que ele faz há anos da necessidade de uma União Europeia mais autônoma, com gastos militares maiores. No discurso de vitória, seguiu o bom senso ao dizer que governará para todos os franceses. Não deveria perder muito tempo nas celebrações.

Nas eleições parlamentares de junho, manter a maioria é essencial para que consiga cumprir promessas de campanha. Mesmo que assegure o controle, sua vida não será fácil. Na França, as ruas não costumam dar sossego. A ideia de elevar a idade mínima de aposentadoria deverá motivar protestos. Sua imagem de arrogante e elitista persiste.

Em seu primeiro mandato, Macron deu várias demonstrações de coragem. No começo da pandemia, os franceses estavam entre os mais céticos em relação a vacinas. Mesmo sabendo que poderia ser impopular, ele instaurou passaportes vacinais, ajudando a salvar muitas vidas. Hoje o índice de vacinação na França é superior ao de Alemanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos.

Num momento em que vários países sofrem com a política hiperpolarizada, em que Jair Bolsonaro está em ascensão nas pesquisas de opinião e Donald Trump se torna favorito a retornar à Casa Branca, a vitória de Macron serve como um sopro de esperança. É a prova de que existe um caminho democrático, distante do clima de guerra constante e inútil dos populistas.

Sangue frio

Folha de S. Paulo

Superação de tensões entre os Poderes depende de estratégia e decisões difíceis

Jair Bolsonaro (PL) deixou evidente nos últimos dias que pretende aproveitar todas as oportunidades que surgirem à sua frente para fustigar os ministros do Supremo Tribunal Federal e acirrar as tensões entre os Poderes.

A cinco meses da eleição presidencial, o mandatário volta a investir na bagunça, seja para manter aliados radicais mobilizados, seja para evitar discussões embaraçosas sobre os múltiplos fracassos de sua gestão.

Não foi outro o objetivo do decreto que concedeu perdão ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), o agitador bolsonarista condenado à prisão na semana passada por atacar o Supremo e fazer ameaças a seus integrantes.

O indulto faz parte das prerrogativas do chefe do Executivo, mas nesse caso não escapa a ninguém a motivação extravagante de quem se arvora em revisor das decisões da corte para assumir papel inexistente na ordem constitucional.

Caberá ao STF examinar a legalidade da medida. Se existem caminhos jurídicos consistentes para anular os efeitos da iniciativa do presidente, é claro que a decisão não é simples no contexto atual.

A revogação imediata do indulto, por este ter sido decretado antes mesmo do trânsito em julgado da condenação, não impediria um novo perdão mais à frente, quando de fato chegasse a hora do cumprimento da pena de prisão.

Uma possível alternativa, que preservasse o decreto e deixasse Silveira solto, mas impedido de concorrer no pleito que se avizinha, poderia deixar Bolsonaro à vontade para desafiar novamente o tribunal quando outro desordeiro se visse ameaçado.

Decerto não contribuem para esfriar a crise as declarações do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, que no domingo (24) afirmou que as Forças Armadas foram usadas para disseminar dúvidas sobre as urnas eletrônicas.

Mas foi exatamente o que Bolsonaro fez no início do ano, quando cobrou resposta do Tribunal Superior Eleitoral a questionamentos apresentados pelo representante do Exército numa comissão criada pelo TSE para verificar a segurança do processo eleitoral.

Como logo se viu, não havia nada de errado com as urnas. Ficou evidente que a cobrança era mais uma tentativa de Bolsonaro de espalhar mentiras sobre as máquinas e buscar elementos para contestar o resultado das eleições se lhe for desfavorável.

Num ambiente envenenado pela irresponsabilidade do presidente da República, que não cansa de exibir desprezo pelas instituições que refreiam seus instintos autoritários, será preciso ter sangue frio e estratégia para reafirmar os limites impostos ao seu poder.

Impulsos franceses

Folha de S. Paulo

Vitória de Macron evita desastre democrático, mas força de extremos é eloquente

Finda a eleição presidencial francesa, Emmanuel Macron confirmou o favoritismo das pesquisas mais recentes e sagrou-se o primeiro mandatário máximo do país a se reeleger desde que Jacques Chirac destroçou Jean-Marie Le Pen no segundo turno de 2002.

Há 20 anos, houve alívio, já que a mera presença do fascistoide Le Pen na disputa sugeria um terremoto. Chirac, um político de velha guarda impopular, venceu com 64,4 pontos percentuais de vantagem.

Nas duas eleições seguintes, forças tradicionais se alternaram, até que em 2017 Macron surgiu como uma espécie de outsider de dentro da elite, prometendo renovação. Seu governo, porém, viu a ascensão do apelo dos extremos.

Sua vitória sobre a filha de Le Pen, a mais comedida Marine, deve ser celebrada como um novo suspiro, embora em tom reservado.

No mesmo embate em 2017, a vantagem sobre os ultranacionalistas já havia caído pela metade em relação a 2002, para 32,2 pontos percentuais; agora, sofreu um encurtamento semelhante, para 16,7 pontos em favor do mandatário.

Em uma Europa sob os fumos da guerra na Ucrânia, ver alguém filiado ao clube em que milita Vladimir Putin ser derrotado nas urnas é sempre motivo de júbilo. Os desafios colocados à frente de Macron, no entanto, são enormes.

No primeiro turno, a ultradireita de Le Pen e Éric Zemmour amealhou 30,2% dos votos; o ultraesquerdista Jean-Luc Mélenchon ficou com quase 22%. Mais da metade do eleitorado apostou em radicais. Somados aos outros nomes menores, também contrários ao establishment, são mais de 61%.

O presidente parece ter entendido. Redirecionou sua campanha para o palco doméstico e dirigiu-se aos eleitores cativados por Le Pen —que modulou a virulência da sigla herdada do pai, ora renomeada, e se vendeu como conduíte das aspirações da população que perdeu sua voz.

A abordagem tecnocrática e distante de Macron não apela às classes média e trabalhadora dos "coletes amarelos", que pararam o país em 2018 e 2019 com demandas de inclusão social e econômica. Terá de trabalhar para garantir que os franceses não sigam o exemplo dos britânicos, que abandonaram o projeto europeu em 2016.

O desafio passa por enfrentar a maior inflação desde 1985, resultante de preços majorados pela guerra, e a formação de base sólida na eleição parlamentar de junho.

Forças Armadas devem resistir ao bolsonarismo

O Estado de S. Paulo

Elas têm sido exemplares no respeito à Constituição, sem se envolver em questões políticas. Nota do Ministério da Defesa mostra como o bolsonarismo é perigoso

No processo de enfraquecimento das instituições levado a cabo pelo bolsonarismo, é atribuído às Forças Armadas um papel que não lhes corresponde. Os militares não são guarda pretoriana, tampouco poder moderador. A Constituição de 1988 estabelece que as Forças Armadas se destinam “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Para que possam cumprir suas funções constitucionais, as Forças Armadas têm de estar obrigatoriamente distantes da política. Por consequência, devem estar distantes do bolsonarismo, do lulopetismo ou de qualquer outro grupo político.

É de justiça reconhecer que, desde 1988, as Forças Armadas têm se portado exemplarmente, em plena conformidade com seu estatuto constitucional, sem se envolver em questões políticas. Esse posicionamento institucional foi reforçado e protegido pela criação do Ministério da Defesa em 1999, durante o governo de Fernando Henrique, que reuniu as pastas correspondentes à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica. Foi um importante marco, confirmando que, num regime civil, também a condução política dos assuntos militares e da defesa deve estar plenamente integrada à administração geral do Estado. Na construção e manutenção desse cenário institucional próprio de um Estado Democrático de Direito, os militares tiveram papel fundamental, com seu firme compromisso à Constituição de 1988.

É notório, no entanto, que Jair Bolsonaro não nutre afeição por essa configuração institucional. Em seus discursos e ações, vislumbra-se uma pretensão contrária ao que dispõe a Constituição. Bolsonaro quer ter as Forças Armadas ao lado de seu projeto político e, para piorar, deseja lhes atribuir um protagonismo político-institucional nas relações com o Judiciário e o Legislativo. Tudo isso é rigorosamente inconstitucional. “Política não pode estar dentro do quartel. Se entra política pela porta da frente, a disciplina e a hierarquia saem pela dos fundos”, lembrou, em novembro de 2020, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão. 

Por tudo isso, é preocupante a nota As Forças Armadas e o Processo Eleitoral, emitida no domingo passado pelo Ministério da Defesa, em reação a uma palestra dada a estudantes pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao reverberar uma suscetibilidade exagerada, sem se ater sequer ao que foi dito pelo palestrante, a nota suscita a mensagem oposta ao que, em tese, deveria transmitir.

Na palestra, Luís Roberto Barroso reconheceu, em tom de elogio, que “o profissionalismo e o respeito à Constituição têm prevalecido” nas Forças Armadas. Alertou, no entanto, para o risco de “voltar à tradição latino-americana de colocar o Exército envolvido com política”. Segundo o ministro do STF, observa-se a tentativa de usar as Forças Armadas “para atacar o processo (eleitoral) e tentar desacreditá-lo”. Disse ainda ter fé “que as lideranças militares saberão conter esse risco de contaminação indesejável que levou à ruína da Venezuela”.

Assinada pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, a nota, que não cita a Constituição de 1988 nem os deveres constitucionais das Forças Armadas, “repudia qualquer ilação ou insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia”.

Citando a “ampla confiança da sociedade (nas Forças Armadas), rotineiramente demonstrada em sucessivas pesquisas e no contato direto e regular com a população”, o texto ainda afirma que “as eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos”. Não parece destinado a sanar dúvidas, tampouco a mostrar eventual equívoco da fala de Luís Roberto Barroso.

A distância que as Forças Armadas, desde a Constituição de 1988, vêm mantendo das questões políticas precisa ser preservada. Algo importante e valioso foi construído no período. Não se pode deixar que o bolsonarismo, com sua pretensão de autoritarismo, destrua esse legado.

O centro se sustenta na França

O Estado de S. Paulo

Mas não se sabe até quando. A sociedade segue dividida, o extremismo cresce e reacionários se aproximam do poder

Em meio ao desafio da reconstrução pós-covid, atravessado pela guerra, a vitória do centrista Emmanuel Macron nas eleições francesas foi um alívio para os liberais franceses e os aliados da França na União Europeia (UE) e na Otan. Mas isso não anula o fato de que a sociedade francesa segue profundamente dividida e a extrema-direita está forte como nunca desde a 2.ª Guerra.

Ao admitir a derrota, a ultraconservadora Marine Le Pen declarou que o resultado foi uma “vitória fulgurante” que evidencia um “grande confronto” em relação aos líderes nacionais e europeus. De fato, há 20 anos, seu pai, Jean-Marie Le Pen, levou menos de 18% dos votos no segundo turno. Em 2017, Marine Le Pen dobrou esse contingente, com 34% dos votos. Agora, foram 41%. Ela venceu em várias províncias, especialmente em zonas rurais, assim como entre os jovens e a classe operária.

Sua campanha se concentrou no custo de vida e suavizou seu radicalismo, mas não alterou as inconsistências e o chauvinismo de sua agenda. Seu programa doméstico é uma mescla populista de mais gastos, menos impostos, aposentadoria precoce e protecionismo. Se já não fala em um “Frexit”, insiste em políticas incompatíveis com o mercado comum europeu, como a preferência à lei francesa sobre a UE ou aos cidadãos franceses sobre os estrangeiros.

Ainda assim, se sua derrota teve um gosto de vitória, a vitória de Macron não teve, ao menos não na mesma proporção, um gosto de derrota. Os reais derrotados foram os partidos tradicionais da direita e da esquerda. No primeiro turno, eles conquistaram só 6,5% dos votos – 20 pontos a menos em relação a 2017.

Criado em 2016, o partido En Marche de Macron aglutinou alguns dos melhores quadros do centro. Macron venceu as duas eleições que disputou, tornando-se o primeiro presidente reeleito em 20 anos e o primeiro desde o pós-guerra a ser reconduzido com uma maioria parlamentar.

Com o início vacilante do novo chanceler alemão, Macron é hoje o líder mais influente da Europa. Os eventos recentes lhe deram razão em sua defesa por mais integração. Ele persuadiu a UE a emitir títulos para financiar a recuperação pós-covid, e a guerra legitima suas ambições por uma “autonomia estratégica” apta a transformar o bloco em uma superpotência parelha à China e aos EUA.

Mas, externa e internamente, sua reputação de petulante ainda gera desconfiança. No primeiro turno, 58% dos franceses votaram em candidatos populistas ou radicais. Le Pen e o extremista de esquerda Jean-Luc Mélenchon prometem dificultar sua vida, a começar pelas eleições legislativas, em junho. E políticas impopulares, como a reforma da Previdência ou a taxação de combustíveis fósseis, podem detonar revoltas nas ruas, como a dos “coletes amarelos”.

“Nosso país é assolado por dúvidas e divisões”, admitiu Macron, afirmando que a “ira” expressa nas urnas exige uma “resposta”. Ele terá cinco anos para dá-la. Mas a verdade é que, parafraseando o que disse Le Pen sobre seus correligionários, essas dúvidas, essas divisões e essa ira são “cada dia maiores”. 

Investimento público não tem solução fácil

O Estado de S. Paulo

Todos prometem investir mais para favorecer o crescimento, mas em geral apresentam mais intenções do que planos claros

Para o País crescer é preciso investir em capacidade produtiva. Parte importante dessa tarefa envolve o investimento em bens e serviços públicos. Todos os pré-candidatos à Presidência da República prometem aumentar esse tipo de investimento, claramente insuficiente desde o início do século. Expansão econômica mais veloz e mais duradoura só será possível com melhores condições de transportes, mais energia, maior oferta e melhor distribuição de água, saneamento mais difundido e mais eficiente e – detalhe nem sempre lembrado nos programas – grandes melhoras em educação, ciência e tecnologia. Um dos desafios será combinar esses objetivos com as limitações de um setor público muito endividado e dependente de financiamento muito caro.

Há formas simples, atraentes e desastrosas de contornar as limitações fiscais. Pode-se eliminar o teto de gastos. Pode-se criar um teto separado para os investimentos. Também se pode vincular a expansão dos investimentos à elevação da receita pública. Todas essas ideias já foram apresentadas. Nenhuma elimina ou reduz a participação dos gastos obrigatórios, a indexação dos valores e o peso excessivo dos tributos sobre o setor produtivo. Tornar o Orçamento mais flexível, ou menos engessado, é uma ideia em discussão há mais de três décadas. Mas esse objetivo é politicamente difícil, por envolver, entre outros temas complexos, mudanças na administração de pessoal.

Criar metas de investimentos é parte das ideias em circulação há algumas semanas. Metas podem ser importantes, mas só ganham funcionalidade quando vinculadas a planos e programas. Não basta reservar uma porcentagem das verbas, ou da variação da receita, para investimentos. É preciso redescobrir o planejamento, em todas as suas dimensões, incluídos a escolha de objetivos gerais, o escalonamento de prioridades, a identificação de gargalos e a estimativa dos meios disponíveis ou acessíveis. Nada parecido com esse tipo de planejamento, bem conhecido no Brasil há sete décadas, foi observado, em nível federal, nas últimas duas.

Ideias úteis começam a surgir, no meio de uma discussão ainda nebulosa. Já se propôs vincular as emendas parlamentares a um plano geral de investimentos públicos. Seria uma forma de tornar mais eficiente o uso de recursos orçamentários, mas a sugestão envolve dificuldades políticas e talvez legais. Há quem defenda a combinação de várias medidas, como a busca do equilíbrio fiscal, a valorização das previsões plurianuais e a melhora da máquina pública por meio da digitalização e da reforma administrativa.

A atração de capital privado será uma forma, já explorada no Brasil, de contornar a escassez de recursos públicos. Mas de nenhum modo as autoridades deverão abandonar as tarefas de avaliar os projetos, acompanhar e fiscalizar sua execução e cobrar o respeito a prazos e a critérios de qualidade.

A expansão do investimento em bens e serviços públicos é essencial para a eficiência produtiva e para a competitividade internacional. Mas o valor investido em infraestrutura tem sido insuficiente até para manter os bens disponíveis. O País precisa de cerca de R$ 290 bilhões anuais de investimento nessa classe de ativos, cerca de 4,3% do Produto Interno Bruto, segundo estimativa do economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Igor Rocha. O total investido com recursos públicos e privados tem ficado, no entanto, perto de R$ 130 bilhões, soma insuficiente para cobrir a depreciação dos ativos físicos. Em vez de ampliar, o Brasil vem perdendo parte da infraestrutura, como se estivesse numa trajetória de subdesenvolvimento.

O retrocesso é mais ostensivo em comparações internacionais. De 1980 a 2019, o Brasil investiu 49 vezes o volume investido em 1979, segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). Na Índia aquele valor foi multiplicado por 249. Na Coreia do Sul, por 202. Na África do Sul, por 66. Competitividade, assim, é um quase milagre para a agropecuária e algumas indústrias.

O apressado fim da emergência sanitária

Valor Econômico

Um governo que desdenhou de uma pandemia que matou mais de 662 mil brasileiros tem motivos para tentar fazer todos esquecerem esse trágico desempenho

O governo Jair Bolsonaro, impossibilitado de decretar o fim da pandemia do novo coronavírus como pretendia, por não lhe caber usurpar as atribuições da Organização Mundial da Saúde (OMS), pôs fim ao Estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), deixando em suspense os 5,7 mil municípios, os 26 Estados brasileiros e o Distrito Federal.

É evidente que um dos temas mais quentes da campanha das eleições presidenciais será o enfrentamento à pandemia. Notoriamente conhecido por ter combatido a vacinação da população, torpedeado a compra dos imunizantes, a adoção de medidas de proteção, como o uso de máscaras e o isolamento, e ainda por ter defendido medicamentos comprovadamente ineficazes, Bolsonaro pensa em se safar das acusações anunciando o fim do estado de emergência.

Com uma celeridade jamais vista ao longo da pandemia, quando era mais do que necessária, como no episódio da falta de respiradores na região Norte, que levou muitos brasileiros a morrerem asfixiados, o Ministério da Saúde anunciou o término do estado de emergência no domingo de Páscoa. Menos de uma semana depois, soltou o decreto oficializando a medida e estabelecendo apenas 30 dias de prazo de transição, ignorando os apelos do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) para que fixasse um período maior, de 90 dias.

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, alfinetou Estados e municípios argumentando que o fim do estado de emergência já era uma realidade dado os desfiles de escolas de samba realizados em algumas cidades no carnaval extemporâneo do fim de semana passado. Apontou ainda que alguns Estados e o Distrito Federal declararam o fim da calamidade ou da emergência de saúde pública por causa da covid-19. Santa Catarina e Belo Horizonte anunciaram a decisão em 31 de março; e o Distrito Federal tomou o mesmo caminho depois da iniciativa do Ministério da Saúde.

Com essa reação, Queiroga demonstra desconhecimento da realidade nacional. Enquanto 76,1% da população brasileira na média está com o ciclo vacinal completo, segundo os dados da semana passada do consórcio nacional de veículos de comunicação, o percentual chega a cair a 63,7% no Amapá e a 63,9% em Roraima.

Com um prazo de transição fixado em 30 dias, haverá agora uma correria para revisar e adaptar normas e práticas. O próprio Ministério da Saúde estima que mais de 2 mil normas caiam em todo o país com o fim da emergência em saúde pública (G1, 22/4). Conforme relataram ao ministro em carta o Conass e o Conasems, várias normas estaduais e municipais passaram a vigorar com base no decreto nacional, entre as quais as que facilitavam a contratação de profissionais e a compra de insumos como vacinas e medicamentos sem licitação.

Para o enfrentamento à pandemia, Estados e municípios tiveram que ampliar os serviços de saúde e assistenciais, com a ampliação de leitos, a contratação temporária de profissionais, e a aquisição de insumos. Segundo os secretários, esses serviços devem ser agora readequados, com o remanejamento dos profissionais, e adaptação de contratos em andamento. O Conass e o Conasems ressaltam que o próprio ministro disse que a pandemia não acabou, o que exige a manutenção de serviços de saúde, sobretudo os da atenção primária, responsáveis pela vacinação e pela oferta de leitos.

Outras pendências incluem o uso de máscaras, a regulamentação da telemedicina e do teletrabalho. Recaiu ainda sobre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a responsabilidade pela prorrogação a toque de caixa da autorização do uso da vacina Coronavac, utilizada em caráter emergencial, e de alguns medicamentos.

A quantidade de indefinições importantes evidencia o objetivo eleitoreiro da medida, adotada sem o devido planejamento. A redução dos casos e mortes por covid-19 no Brasil não significa o fim da pandemia. Uma das dúvidas é o futuro das campanhas de vacinação: quais serão os próximos passos, dado que o vírus segue à solta. A pandemia ainda é global e a desigualdade na distribuição de vacinas ao redor do mundo mantém elevado o risco de surgimento de novas variantes. Um governo que desdenhou de uma pandemia que matou mais de 662 mil brasileiros tem os seus motivos para tentar fazer com que todos se esqueçam de seu trágico desempenho.

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