Editoriais
Nem reajustes ao funcionalismo evitam
greves
O Globo
A barbeiragem econômica na concessão de aumentos aos funcionários públicos sempre foi evidente. O reajuste linear prometido pelo presidente Jair Bolsonaro a todo o funcionalismo equivale a injetar mais dinamite na bomba fiscal que ameaça o Orçamento. O que Bolsonaro acrescentou com seu movimento desastrado foi a barbeiragem política. Primeiro quis reservar R$ 1,7 bilhão para reajustar apenas salários de policiais e agentes federais. Não tardou, e o resto do funcionalismo passou a chiar. Agora reivindica reajustes na faixa dos 20% e já faz greves em pleno ano eleitoral.
O movimento grevista é liderado não pelos que mais sofrem com inflação, mas pela elite dos servidores da União: analistas do Banco Central e auditores da Receita, carreiras com salários médios de R$ 26.200 e R$ 29.300. No BC, está suspenso o Relatório Focus, que toda segunda-feira traz estimativas do mercado financeiro para indicadores macroeconômicos, e existem ameaças de paralisação do Pix. Nas aduanas, os fiscais da Receita fazem “operação-padrão”, afetando linhas de montagem industrial que usam componentes importados. Promotores e juízes — a elite da elite dos privilégios — estão de olho para reajustar as extensas e pesadas folhas salariais do Ministério Público e do Judiciário.
Inerte diante de categorias organizadas, o
governo mantém paralisada no Congresso a reforma administrativa necessária para
modernizar a gestão do funcionalismo. Bolsonaro nunca demonstrou maior
interesse por ela. Trata-se de reforma prioritária por tornar a administração
do Estado mais transparente e eficaz, extinguindo vantagens anacrônicas como
promoções automáticas, férias em dobro e dezenas de gratificações absurdas. Ao
privilegiar o mérito nas promoções, ela melhoraria o serviço à população e
reduziria o custo da folha salarial do funcionalismo, que cresceu de modo quase
ininterrupto nos últimos 15 anos e hoje corresponde a escandalosos 13% do PIB.
Em vez disso, o governo tentou contornar a
crise provocada pelo anúncio de aumento aos policiais oferecendo reajuste linear
de 5% a todo o funcionalismo. A distância para a demanda dos sindicatos é tão
grande que o anúncio só serviu para criar novo impasse.
Ao mesmo tempo, a qualidade do serviço
público — com as exceções de praxe — continua uma lástima. Balcões e guichês do
INSS revelam a imensa inépcia da burocracia estatal. Reportagem do GLOBO
revelou o tempo médio de espera para liberar benefícios: 333 dias para pobres e
deficientes (BPC), 202,9 dias para aposentadoria por invalidez causada por
acidente no trabalho, 152,3 dias para aposentadoria por tempo de serviço de
professores, 125,3 dias para aposentadoria por tempo de contribuição, 117,2
dias para pensão por morte no trabalho.
A espera é tão longa que o Supremo fez um
acordo para tornar o serviço mais ágil. Alguns números demonstram a dificuldade
do INSS em cumprir o que prometeu. Um caso apenas: a fila dos pedidos de
auxílio-doença e benefícios referentes a acidentes no trabalho passou de
254.023 em julho de 2019 para 964.560 no mês passado, um aumento de 280%. Os atrasos
mais recentes são causados pelos médicos peritos. Todos já estão em greve pelos
20% de reajuste. Não surpreende que segurados do INSS morram antes de receber o
benefício. É apenas uma das inúmeras provas de que o Estado brasileiro é um
gerador de iniquidades.
Vitória de Macron funciona como sopro de
esperança contra populismo
O Globo
A vitória de Emmanuel Macron nas eleições
francesas foi substantiva — e traz um exemplo positivo a países que, como o
Brasil, se debatem com os desafios do populismo de extrema direita. Ao derrotar
Marine Le Pen, Macron se tornou o primeiro presidente reeleito na França em 20
anos. No quadro de polarização atual, foi expressiva a vantagem, superior a 17
pontos percentuais no segundo turno (ou 5,5 milhões de votos), que o reconduziu
ao cargo apesar do desgaste inerente ao exercício do poder e da popularidade
cadente.
O que explica a vitória é a rival. É certo
que Marine chegou mais uma vez ao segundo turno e aumentou sua fatia do
eleitorado (de 34% em 2017 para 41,5% agora). Mas todo o esforço para desfazer
a imagem tóxica associada a seu partido foi insuficiente. Ela tentou concentrar
a campanha na inflação e em críticas às reformas econômicas promovidas por
Macron. Fez o possível para suavizar ainda mais o discurso radical. Mas não
convenceu. Uma das promessas era proibir as muçulmanas de usar véu na rua. Não
espanta que tenha fracassado sua tentativa de atrair os eleitores da esquerda
se dissociando da pecha de “fascista”. No fim, Macron conquistou votos da
esquerda e abriu larga vantagem.
Revitalizado pelas urnas para um novo
mandato de cinco anos, Macron se torna o político mais poderoso da Europa (o
alemão Olaf Scholz não tem o mesmo carisma nem a tarimba da antecessora, Angela
Merkel). A guerra na Ucrânia convalidou a defesa que ele faz há anos da
necessidade de uma União Europeia mais autônoma, com gastos militares maiores.
No discurso de vitória, seguiu o bom senso ao dizer que governará para todos os
franceses. Não deveria perder muito tempo nas celebrações.
Nas eleições parlamentares de junho, manter
a maioria é essencial para que consiga cumprir promessas de campanha. Mesmo que
assegure o controle, sua vida não será fácil. Na França, as ruas não costumam
dar sossego. A ideia de elevar a idade mínima de aposentadoria deverá motivar
protestos. Sua imagem de arrogante e elitista persiste.
Em seu primeiro mandato, Macron deu várias
demonstrações de coragem. No começo da pandemia, os franceses estavam entre os
mais céticos em relação a vacinas. Mesmo sabendo que poderia ser impopular, ele
instaurou passaportes vacinais, ajudando a salvar muitas vidas. Hoje o índice
de vacinação na França é superior ao de Alemanha, Grã-Bretanha e Estados
Unidos.
Num momento em que vários países sofrem com a política hiperpolarizada, em que Jair Bolsonaro está em ascensão nas pesquisas de opinião e Donald Trump se torna favorito a retornar à Casa Branca, a vitória de Macron serve como um sopro de esperança. É a prova de que existe um caminho democrático, distante do clima de guerra constante e inútil dos populistas.
Sangue frio
Folha de S. Paulo
Superação de tensões entre os Poderes
depende de estratégia e decisões difíceis
Jair Bolsonaro (PL) deixou evidente nos
últimos dias que pretende aproveitar todas as oportunidades que surgirem à sua
frente para fustigar os ministros do Supremo Tribunal Federal e acirrar as
tensões entre os Poderes.
A cinco meses da eleição presidencial, o
mandatário volta a investir na bagunça, seja para manter aliados radicais
mobilizados, seja para evitar discussões embaraçosas sobre os múltiplos
fracassos de sua gestão.
Não foi outro o objetivo do decreto que
concedeu perdão
ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), o agitador bolsonarista
condenado à prisão na semana passada por atacar o Supremo e fazer ameaças a
seus integrantes.
O indulto faz parte das prerrogativas do
chefe do Executivo, mas nesse caso não escapa a ninguém a motivação
extravagante de quem se arvora em revisor das decisões da corte para assumir
papel inexistente na ordem constitucional.
Caberá ao STF examinar a legalidade da
medida. Se existem caminhos jurídicos consistentes para anular os efeitos da
iniciativa do presidente, é claro que a decisão não é simples no contexto
atual.
A revogação imediata do indulto, por este
ter sido decretado antes mesmo do trânsito em julgado da condenação, não
impediria um novo perdão mais à frente, quando de fato chegasse a hora do
cumprimento da pena de prisão.
Uma possível alternativa, que preservasse o
decreto e deixasse Silveira solto, mas impedido de concorrer no pleito que se
avizinha, poderia deixar Bolsonaro à vontade para desafiar novamente o tribunal
quando outro desordeiro se visse ameaçado.
Decerto não contribuem para esfriar a
crise as
declarações do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, que no domingo
(24) afirmou que as Forças Armadas foram usadas para disseminar dúvidas sobre
as urnas eletrônicas.
Mas foi exatamente o que Bolsonaro fez no
início do ano, quando cobrou resposta do Tribunal Superior Eleitoral a
questionamentos apresentados pelo representante do Exército numa comissão criada
pelo TSE para verificar a segurança do processo eleitoral.
Como logo se viu, não havia nada de errado
com as urnas. Ficou evidente que a cobrança era mais uma tentativa de Bolsonaro
de espalhar mentiras sobre as máquinas e buscar elementos para contestar o
resultado das eleições se lhe for desfavorável.
Num ambiente envenenado pela
irresponsabilidade do presidente da República, que não cansa de exibir desprezo
pelas instituições que refreiam seus instintos autoritários, será preciso ter
sangue frio e estratégia para reafirmar os limites impostos ao seu poder.
Impulsos franceses
Folha de S. Paulo
Vitória de Macron evita desastre
democrático, mas força de extremos é eloquente
Finda a eleição presidencial francesa, Emmanuel
Macron confirmou o favoritismo das pesquisas mais recentes e sagrou-se
o primeiro mandatário máximo do país a se reeleger desde que Jacques Chirac
destroçou Jean-Marie Le Pen no segundo turno de 2002.
Há 20 anos, houve alívio, já que a mera
presença do fascistoide Le Pen na disputa sugeria um terremoto. Chirac, um
político de velha guarda impopular, venceu com 64,4 pontos percentuais de
vantagem.
Nas duas eleições seguintes, forças
tradicionais se alternaram, até que em 2017 Macron surgiu como uma espécie de
outsider de dentro da elite, prometendo renovação. Seu governo, porém, viu a
ascensão do apelo dos extremos.
Sua vitória sobre a filha de Le Pen, a mais
comedida Marine, deve ser celebrada como um novo suspiro, embora em tom
reservado.
No mesmo embate em 2017, a vantagem sobre
os ultranacionalistas já havia caído pela metade em relação a 2002, para 32,2
pontos percentuais; agora, sofreu um encurtamento semelhante, para 16,7 pontos
em favor do mandatário.
Em uma Europa sob os fumos da guerra na
Ucrânia, ver alguém filiado ao clube em que milita Vladimir Putin ser derrotado
nas urnas é sempre motivo de júbilo. Os desafios colocados à frente de Macron,
no entanto, são enormes.
No primeiro turno, a ultradireita de Le Pen
e Éric Zemmour amealhou 30,2% dos votos; o ultraesquerdista Jean-Luc Mélenchon
ficou com quase 22%. Mais da metade do eleitorado apostou em radicais. Somados
aos outros nomes menores, também contrários ao establishment, são mais de 61%.
O presidente parece ter entendido.
Redirecionou sua campanha para o palco doméstico e dirigiu-se aos eleitores
cativados por Le Pen —que modulou a virulência da sigla herdada do pai, ora
renomeada, e se vendeu como conduíte das aspirações da população que perdeu sua
voz.
A abordagem tecnocrática e distante de
Macron não apela às classes média e trabalhadora dos "coletes
amarelos", que pararam o país em 2018 e 2019 com demandas de inclusão
social e econômica. Terá de trabalhar para garantir que os franceses não sigam
o exemplo dos britânicos, que abandonaram o projeto europeu em 2016.
O desafio passa por enfrentar a maior inflação desde 1985, resultante de preços majorados pela guerra, e a formação de base sólida na eleição parlamentar de junho.
Forças Armadas devem resistir ao
bolsonarismo
O Estado de S. Paulo
Elas têm sido exemplares no respeito à Constituição, sem se envolver em questões políticas. Nota do Ministério da Defesa mostra como o bolsonarismo é perigoso
No processo de enfraquecimento das
instituições levado a cabo pelo bolsonarismo, é atribuído às Forças Armadas um
papel que não lhes corresponde. Os militares não são guarda pretoriana,
tampouco poder moderador. A Constituição de 1988 estabelece que as Forças
Armadas se destinam “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais
e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Para que possam cumprir suas funções
constitucionais, as Forças Armadas têm de estar obrigatoriamente distantes da
política. Por consequência, devem estar distantes do bolsonarismo, do
lulopetismo ou de qualquer outro grupo político.
É de justiça reconhecer que, desde 1988, as
Forças Armadas têm se portado exemplarmente, em plena conformidade com seu
estatuto constitucional, sem se envolver em questões políticas. Esse
posicionamento institucional foi reforçado e protegido pela criação do
Ministério da Defesa em 1999, durante o governo de Fernando Henrique, que
reuniu as pastas correspondentes à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica. Foi um
importante marco, confirmando que, num regime civil, também a condução política
dos assuntos militares e da defesa deve estar plenamente integrada à
administração geral do Estado. Na construção e manutenção desse cenário
institucional próprio de um Estado Democrático de Direito, os militares tiveram
papel fundamental, com seu firme compromisso à Constituição de 1988.
É notório, no entanto, que Jair Bolsonaro
não nutre afeição por essa configuração institucional. Em seus discursos e ações,
vislumbra-se uma pretensão contrária ao que dispõe a Constituição. Bolsonaro
quer ter as Forças Armadas ao lado de seu projeto político e, para piorar,
deseja lhes atribuir um protagonismo político-institucional nas relações com o
Judiciário e o Legislativo. Tudo isso é rigorosamente inconstitucional.
“Política não pode estar dentro do quartel. Se entra política pela porta da
frente, a disciplina e a hierarquia saem pela dos fundos”, lembrou, em novembro
de 2020, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão.
Por tudo isso, é preocupante a nota As Forças Armadas e o Processo Eleitoral,
emitida no domingo passado pelo Ministério da Defesa, em reação a uma palestra
dada a estudantes pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal
Federal (STF). Ao reverberar uma suscetibilidade exagerada, sem se ater sequer
ao que foi dito pelo palestrante, a nota suscita a mensagem oposta ao que, em
tese, deveria transmitir.
Na palestra, Luís Roberto Barroso
reconheceu, em tom de elogio, que “o profissionalismo e o respeito à
Constituição têm prevalecido” nas Forças Armadas. Alertou, no entanto, para o
risco de “voltar à tradição latino-americana de colocar o Exército envolvido
com política”. Segundo o ministro do STF, observa-se a tentativa de usar as
Forças Armadas “para atacar o processo (eleitoral)
e tentar desacreditá-lo”. Disse ainda ter fé “que as lideranças militares
saberão conter esse risco de contaminação indesejável que levou à ruína da
Venezuela”.
Assinada pelo ministro da Defesa, Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira, a nota, que não cita a Constituição de 1988 nem os
deveres constitucionais das Forças Armadas, “repudia qualquer ilação ou
insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para
efetuar ações contrárias aos princípios da democracia”.
Citando a “ampla confiança da sociedade (nas Forças Armadas), rotineiramente
demonstrada em sucessivas pesquisas e no contato direto e regular com a
população”, o texto ainda afirma que “as eleições são questão de soberania e
segurança nacional, portanto, do interesse de todos”. Não parece destinado a
sanar dúvidas, tampouco a mostrar eventual equívoco da fala de Luís Roberto
Barroso.
A distância que as Forças Armadas, desde a
Constituição de 1988, vêm mantendo das questões políticas precisa ser
preservada. Algo importante e valioso foi construído no período. Não se pode
deixar que o bolsonarismo, com sua pretensão de autoritarismo, destrua esse
legado.
O centro se sustenta na França
O Estado de S. Paulo
Mas não se sabe até quando. A sociedade segue dividida, o extremismo cresce e reacionários se aproximam do poder
Em meio ao desafio da reconstrução
pós-covid, atravessado pela guerra, a vitória do centrista Emmanuel Macron nas
eleições francesas foi um alívio para os liberais franceses e os aliados da
França na União Europeia (UE) e na Otan. Mas isso não anula o fato de que a
sociedade francesa segue profundamente dividida e a extrema-direita está forte
como nunca desde a 2.ª Guerra.
Ao admitir a derrota, a ultraconservadora
Marine Le Pen declarou que o resultado foi uma “vitória fulgurante” que
evidencia um “grande confronto” em relação aos líderes nacionais e europeus. De
fato, há 20 anos, seu pai, Jean-Marie Le Pen, levou menos de 18% dos votos no
segundo turno. Em 2017, Marine Le Pen dobrou esse contingente, com 34% dos
votos. Agora, foram 41%. Ela venceu em várias províncias, especialmente em
zonas rurais, assim como entre os jovens e a classe operária.
Sua campanha se concentrou no custo de vida
e suavizou seu radicalismo, mas não alterou as inconsistências e o chauvinismo
de sua agenda. Seu programa doméstico é uma mescla populista de mais gastos,
menos impostos, aposentadoria precoce e protecionismo. Se já não fala em um “Frexit”,
insiste em políticas incompatíveis com o mercado comum europeu, como a
preferência à lei francesa sobre a UE ou aos cidadãos franceses sobre os
estrangeiros.
Ainda assim, se sua derrota teve um gosto
de vitória, a vitória de Macron não teve, ao menos não na mesma proporção, um
gosto de derrota. Os reais derrotados foram os partidos tradicionais da direita
e da esquerda. No primeiro turno, eles conquistaram só 6,5% dos votos – 20
pontos a menos em relação a 2017.
Criado em 2016, o partido En Marche de
Macron aglutinou alguns dos melhores quadros do centro. Macron venceu as duas
eleições que disputou, tornando-se o primeiro presidente reeleito em 20 anos e
o primeiro desde o pós-guerra a ser reconduzido com uma maioria parlamentar.
Com o início vacilante do novo chanceler
alemão, Macron é hoje o líder mais influente da Europa. Os eventos recentes lhe
deram razão em sua defesa por mais integração. Ele persuadiu a UE a emitir
títulos para financiar a recuperação pós-covid, e a guerra legitima suas ambições
por uma “autonomia estratégica” apta a transformar o bloco em uma superpotência
parelha à China e aos EUA.
Mas, externa e internamente, sua reputação
de petulante ainda gera desconfiança. No primeiro turno, 58% dos franceses
votaram em candidatos populistas ou radicais. Le Pen e o extremista de esquerda
Jean-Luc Mélenchon prometem dificultar sua vida, a começar pelas eleições
legislativas, em junho. E políticas impopulares, como a reforma da Previdência
ou a taxação de combustíveis fósseis, podem detonar revoltas nas ruas, como a
dos “coletes amarelos”.
“Nosso país é assolado por dúvidas e
divisões”, admitiu Macron, afirmando que a “ira” expressa nas urnas exige uma
“resposta”. Ele terá cinco anos para dá-la. Mas a verdade é que, parafraseando
o que disse Le Pen sobre seus correligionários, essas dúvidas, essas divisões e
essa ira são “cada dia maiores”.
Investimento público não tem solução fácil
O Estado de S. Paulo
Todos prometem investir mais para favorecer o crescimento, mas em geral apresentam mais intenções do que planos claros
Para o País crescer é preciso investir em
capacidade produtiva. Parte importante dessa tarefa envolve o investimento em
bens e serviços públicos. Todos os pré-candidatos à Presidência da República
prometem aumentar esse tipo de investimento, claramente insuficiente desde o
início do século. Expansão econômica mais veloz e mais duradoura só será
possível com melhores condições de transportes, mais energia, maior oferta e
melhor distribuição de água, saneamento mais difundido e mais eficiente e –
detalhe nem sempre lembrado nos programas – grandes melhoras em educação,
ciência e tecnologia. Um dos desafios será combinar esses objetivos com as
limitações de um setor público muito endividado e dependente de financiamento
muito caro.
Há formas simples, atraentes e desastrosas
de contornar as limitações fiscais. Pode-se eliminar o teto de gastos. Pode-se
criar um teto separado para os investimentos. Também se pode vincular a
expansão dos investimentos à elevação da receita pública. Todas essas ideias já
foram apresentadas. Nenhuma elimina ou reduz a participação dos gastos
obrigatórios, a indexação dos valores e o peso excessivo dos tributos sobre o
setor produtivo. Tornar o Orçamento mais flexível, ou menos engessado, é uma
ideia em discussão há mais de três décadas. Mas esse objetivo é politicamente
difícil, por envolver, entre outros temas complexos, mudanças na administração
de pessoal.
Criar metas de investimentos é parte das
ideias em circulação há algumas semanas. Metas podem ser importantes, mas só
ganham funcionalidade quando vinculadas a planos e programas. Não basta
reservar uma porcentagem das verbas, ou da variação da receita, para
investimentos. É preciso redescobrir o planejamento, em todas as suas
dimensões, incluídos a escolha de objetivos gerais, o escalonamento de
prioridades, a identificação de gargalos e a estimativa dos meios disponíveis
ou acessíveis. Nada parecido com esse tipo de planejamento, bem conhecido no
Brasil há sete décadas, foi observado, em nível federal, nas últimas duas.
Ideias úteis começam a surgir, no meio de
uma discussão ainda nebulosa. Já se propôs vincular as emendas parlamentares a
um plano geral de investimentos públicos. Seria uma forma de tornar mais
eficiente o uso de recursos orçamentários, mas a sugestão envolve dificuldades
políticas e talvez legais. Há quem defenda a combinação de várias medidas, como
a busca do equilíbrio fiscal, a valorização das previsões plurianuais e a
melhora da máquina pública por meio da digitalização e da reforma
administrativa.
A atração de capital privado será uma
forma, já explorada no Brasil, de contornar a escassez de recursos públicos.
Mas de nenhum modo as autoridades deverão abandonar as tarefas de avaliar os
projetos, acompanhar e fiscalizar sua execução e cobrar o respeito a prazos e a
critérios de qualidade.
A expansão do investimento em bens e
serviços públicos é essencial para a eficiência produtiva e para a
competitividade internacional. Mas o valor investido em infraestrutura tem sido
insuficiente até para manter os bens disponíveis. O País precisa de cerca de R$
290 bilhões anuais de investimento nessa classe de ativos, cerca de 4,3% do Produto
Interno Bruto, segundo estimativa do economista-chefe da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo, Igor Rocha. O total investido com recursos
públicos e privados tem ficado, no entanto, perto de R$ 130 bilhões, soma
insuficiente para cobrir a depreciação dos ativos físicos. Em vez de ampliar, o
Brasil vem perdendo parte da infraestrutura, como se estivesse numa trajetória
de subdesenvolvimento.
O retrocesso é mais ostensivo em comparações internacionais. De 1980 a 2019, o Brasil investiu 49 vezes o volume investido em 1979, segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). Na Índia aquele valor foi multiplicado por 249. Na Coreia do Sul, por 202. Na África do Sul, por 66. Competitividade, assim, é um quase milagre para a agropecuária e algumas indústrias.
O apressado fim da emergência sanitária
Valor Econômico
Um governo que desdenhou de uma pandemia
que matou mais de 662 mil brasileiros tem motivos para tentar fazer todos
esquecerem esse trágico desempenho
O governo Jair Bolsonaro, impossibilitado
de decretar o fim da pandemia do novo coronavírus como pretendia, por não lhe
caber usurpar as atribuições da Organização Mundial da Saúde (OMS), pôs fim ao
Estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), deixando
em suspense os 5,7 mil municípios, os 26 Estados brasileiros e o Distrito
Federal.
É evidente que um dos temas mais quentes da
campanha das eleições presidenciais será o enfrentamento à pandemia.
Notoriamente conhecido por ter combatido a vacinação da população, torpedeado a
compra dos imunizantes, a adoção de medidas de proteção, como o uso de máscaras
e o isolamento, e ainda por ter defendido medicamentos comprovadamente
ineficazes, Bolsonaro pensa em se safar das acusações anunciando o fim do
estado de emergência.
Com uma celeridade jamais vista ao longo da
pandemia, quando era mais do que necessária, como no episódio da falta de
respiradores na região Norte, que levou muitos brasileiros a morrerem
asfixiados, o Ministério da Saúde anunciou o término do estado de emergência no
domingo de Páscoa. Menos de uma semana depois, soltou o decreto oficializando a
medida e estabelecendo apenas 30 dias de prazo de transição, ignorando os
apelos do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho
Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) para que fixasse um
período maior, de 90 dias.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga,
alfinetou Estados e municípios argumentando que o fim do estado de emergência
já era uma realidade dado os desfiles de escolas de samba realizados em algumas
cidades no carnaval extemporâneo do fim de semana passado. Apontou ainda que
alguns Estados e o Distrito Federal declararam o fim da calamidade ou da
emergência de saúde pública por causa da covid-19. Santa Catarina e Belo
Horizonte anunciaram a decisão em 31 de março; e o Distrito Federal tomou o
mesmo caminho depois da iniciativa do Ministério da Saúde.
Com essa reação, Queiroga demonstra
desconhecimento da realidade nacional. Enquanto 76,1% da população brasileira
na média está com o ciclo vacinal completo, segundo os dados da semana passada
do consórcio nacional de veículos de comunicação, o percentual chega a cair a
63,7% no Amapá e a 63,9% em Roraima.
Com um prazo de transição fixado em 30
dias, haverá agora uma correria para revisar e adaptar normas e práticas. O próprio
Ministério da Saúde estima que mais de 2 mil normas caiam em todo o país com o
fim da emergência em saúde pública (G1, 22/4). Conforme relataram ao ministro
em carta o Conass e o Conasems, várias normas estaduais e municipais passaram a
vigorar com base no decreto nacional, entre as quais as que facilitavam a
contratação de profissionais e a compra de insumos como vacinas e medicamentos
sem licitação.
Para o enfrentamento à pandemia, Estados e
municípios tiveram que ampliar os serviços de saúde e assistenciais, com a
ampliação de leitos, a contratação temporária de profissionais, e a aquisição
de insumos. Segundo os secretários, esses serviços devem ser agora readequados,
com o remanejamento dos profissionais, e adaptação de contratos em andamento. O
Conass e o Conasems ressaltam que o próprio ministro disse que a pandemia não
acabou, o que exige a manutenção de serviços de saúde, sobretudo os da atenção
primária, responsáveis pela vacinação e pela oferta de leitos.
Outras pendências incluem o uso de máscaras,
a regulamentação da telemedicina e do teletrabalho. Recaiu ainda sobre a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a responsabilidade pela
prorrogação a toque de caixa da autorização do uso da vacina Coronavac,
utilizada em caráter emergencial, e de alguns medicamentos.
A quantidade de indefinições importantes evidencia o objetivo eleitoreiro da medida, adotada sem o devido planejamento. A redução dos casos e mortes por covid-19 no Brasil não significa o fim da pandemia. Uma das dúvidas é o futuro das campanhas de vacinação: quais serão os próximos passos, dado que o vírus segue à solta. A pandemia ainda é global e a desigualdade na distribuição de vacinas ao redor do mundo mantém elevado o risco de surgimento de novas variantes. Um governo que desdenhou de uma pandemia que matou mais de 662 mil brasileiros tem os seus motivos para tentar fazer com que todos se esqueçam de seu trágico desempenho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário