O Globo
Duas ainda desfilariam, duas das pesadas;
mas não podia crer que alguma me arrebatasse para além do que fizera a Unidos
da Tijuca. Era impossível. Como poderia me impressionar mais que a Beija-Flor?
Essa era a altitude da Tijuca. E ali passara mesmo algo diferente, enredo concebido
por um criador que vinha de realizar desfile de identidade sem precedentes.
Imbatível.
Estava errado. O que veio a seguir plantou
nova gramática; desenvolveu-se em outro plano. Formulou e animou outro plano.
Tornou vencido o que o antecedera. Datou a Vila Isabel, linda a Vila, que logo
viria. Inaugurou outro tempo. Não deixou dúvida, embora o chão em que se
processa o julgamento não seja apetrechado para comparar o que simplesmente não
tem equivalência.
Do que, de quem, estou a falar?
Dê uma chance a este texto, você que não
gosta de escolas de samba — e que aqui vai acostumado a ler análises sobre
política. Peço licença — e sua leitura — para uma exceção. Licença também para
que esta crônica tenha uma dimensão pessoal.
O clichê dirá que tudo é política. Por certo, todo movimento político deriva de escolhas. Ir à Sapucaí foi a melhor coisa que fiz, para mim, em muito tempo. Decidi me alienar. Começou na madrugada de sexta, manhã adentro, para que a alvorada se confundisse com o raiar do Império Serrano. Custa, mas vem. O desfile de 2020 fora o pior de sua história. O de 2022 foi o melhor da minha. Ainda não terminou.
Não terminou porque o vi, vejo, na poderosa
passagem preta da Beija-Flor, cujos pilares de Cabana são o próprio fundamento
de uma instituição cultural permanente, destinada à eternidade,
independentemente de qualquer papai. Não terminou porque o projetei na
revolução em que consistiu o acontecimento Grande Rio — aquela hora e pouco em
que, a história diante de nós, algo se move, em que algo muda, mudou, para
sempre. E nós — isto também uma raridade — percebemos. Nunca mais será igual.
Nunca mais terá fim a madrugada de domingo.
Depois da Tijuca, meu Deus, a Grande Rio — aquela para a qual não há
equivalência. Nenhum parâmetro. E decidi me alienar, em vez de me perguntar
sobre quem pagara aquela conta.
Nunca mais fim. Ou eu teria de admitir que
aquele abre-alas, aquele que avançava vermelho para além do céu e que, lá em
cima, flamejante, ainda provocava de armar ousadia num simples desfraldar de
bandeiras, que aquela engenharia de mundo poderia um dia desaparecer. Jamais
desaparecerá. Não foi enredo. Foi a própria materialização de um universo. Algo
da vida nasceu e existiu ali. Existe desde então. A Grande Rio tocou o céu com
Exu.
O mundo — meu mundo — parou para que o
Império Serrano desfilasse. Quase não fui. Tinha de trabalhar cedo no dia
seguinte — e ir seria não dormir. Eu não me perdoaria se não fosse. Fui. Me
entreguei, me apaziguei. Quase não fui; porque, na véspera, a gestão da
impunidade, tão própria aos criminosos senhores das ligas, produzira, sob
negligência do Estado, as condições que impuseram o esmagamento da menina
Raquel. Desanimei-me. Mas fui. Alienado, em busca de alienação. Consciente
dessa escolha.
O mundo acabou para Raquel. Mas eu fui.
Precisava ir. Falo de peito aberto. Fiz a escolha certa; pelo entorpecimento da
paixão por aquele estandarte. Ao meu lado foram Flora e Arlindo Neto, filhos de
Arlindo Cruz, meu orixá. Fui pensando no Arlindo, com saudade do Arlindo, me
lembrando de quando me ligava para perguntar o que achara do samba dele para o
concurso do Império. Desfilei com Arlindo, ali, o Arlindo em seus filhos.
Fui, a vida seguindo. Era madrugada de
sexta. E meu mundo parou, suspenso sob o encantamento de quando o desfile
encaixa e já não há fronteiras entre avenida e audiência. Foi a experiência de
liberdade absoluta tanto tempo depois; marco individual de esperança, de página
virada — da fé em que sobrevivemos. Raquel não sobreviveu. É tudo tão ligeiro. Precisamos
declarar nossos amores.
Na madrugada de domingo, pouco antes do
desfile da Grande Rio, de cujo samba é um dos autores, Arlindinho me contaria a
história que tornou esta crônica uma urgência. O Império Serrano apresentou, em
2007, um desfile absolutamente feio. O carnavalesco era Jack Vasconcelos,
tantos anos depois criador do inesquecível desfile da Tijuca em 2022. O mundo
avança, recria-se. Em 2007, porém, nada era bom. Nem o samba. O único samba
ruim composto por Arlindo Cruz. Escrevi, aos 27 anos, imperiano apaixonado, uma
crítica dura. Arlindo não gostou. Claro. Mas eu jamais poderia imaginar o que
Arlindinho me revelou na Sapucaí; que, como produto dessa mágoa, o pai, meu
ídolo, compusera o samba “Quem gosta de mim”.
E então veio a Grande Rio. Com samba do
Arlindinho. Com samba do seu filho, Arlindo, veio o novo tempo da avenida, com
todos os conflitos, com todas as incoerências. O futuro, o delírio. Um em que
não haverá mais discurso intimidador de capitão-guimarães, de saco cheio de
capitães. O futuro, o sonho: nosso Império, campeão do Acesso, de volta ao
Grupo Especial, anunciando, hoje, o enredo em sua homenagem. Gosto de você,
Arlindo Cruz. Amo você, maioral. E imagino a sua Babi lendo isso a seu ouvido.
Ainda não terminou.
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