Valor Econômico
Sem mea culpa, Lula torna seu o desastre da
gestão Dilma
Em sua mais recente e sempre brilhante
coluna no Valor,
o sociólogo José de Souza Martins explica como funcionou, historicamente, a
moderação de poder entre os extremos da política no Brasil. A polarização aguda
não é novidade. A questão, e daí a importância da perspectiva histórica, é como
a superamos.
Na monarquia, durante o 2º reinado
(1840-1889), o poder moderador era exercido pelo rei, que detinha o mecanismo
da terceira via para solucionar conflitos. “O mecanismo funcionava bem. Como,
dentre outros, ressaltou Euclides da Cunha, os liberais inovavam e os conservadores
decidiam como a inovação seria posta em prática”, diz Souza Martins em
“Dificuldades da Terceira Via” (Valor,
caderno EU&, página 3, edição de 29/04/2022).
O 2º reinado é apontado por historiadores como um período de relativa paz na história do país. Dom Pedro II valia-se do poder moderador para contornar impasses decorrentes da disputa de poder. Para Souza Martins, isso “nos fez um país de história politicamente lenta”. De fato, não há exemplo melhor dessa morosidade política do que o fim tardio da escravidão, ignomínia que, de tão longeva, tornou-se nossa principal característica nacional, razão do nosso fracasso.
O sucedâneo como instância mediadora e,
digamos, acomodadora de interesses inconciliáveis, num país de grande
diversidade e profunda desigualdade social, submeteu o pacto político a uma
espécie de vigilância. Como nossa República nasceu de um golpe militar e “sem
povo”, os impasses forjados na disputa pelo poder foram amplificados e,
doravante, coube ao Exército atribuir-se detentor do mecanismo da terceira via.
O Exército tornou-se “reserva moral” para
intervir na ordem institucional e resolver “problemas” criados pelos políticos.
“A república de quartel colocou na função de poder moderador uma instituição
destinada ao conflito e não à tolerância democrática”, explica Souza Martins.
Dois movimentos definiram a história
política do Brasil nos últimos 92 anos: o getulismo (1930-1989) e o lulismo
(desde 1989). Tanto Getúlio Vargas quanto Luiz Inácio Lula da Silva
preveniram-se a tempo de mudar o rumo de seus governos e, assim, adaptarem-se a
anseios do povo, eliminando o clamor pela terceira via. Mudar para permanecer
foi regra da sobrevivência.
Getúlio se desdobrou em quatro personas
distintas ao longo dos 24 anos em que esteve envolvido diretamente na disputa
de poder, sustenta o professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Em
1937, chamou a turma da caserna para instaurar ditadura violenta. Fechou o
Congresso, extinguiu os partidos, cassou governadores, queimou as bandeiras dos
Estados, criou a polícia política (ovo da serpente dos anos de chumbo trazidos
pelo AI-5, entre 1968 e 1978) e calou a imprensa. Justificou o absolutismo com
as “ameaças” comunista e integralista.
Deposto em 1945, Getúlio recolheu-se para
assistir, de camarote, à aventura eleitoral de seu ministro da Guerra (golpista
nº 1 em 37), Eurico Gaspar Dutra. O ex-ditador ajudou o general a eleger-se e,
em troca, saiu ileso da Presidência. Esperto, tratou de atender a inúmeras
demandas sociais durante seu despotismo. Instituiu garantias legais para os
trabalhadores numa época em que o capitalismo entre nós não havia alcançado
ainda o grau de selvagem. Acumulou capital político para que o povo não o
esquecesse. Já em 1946, numa espécie de teste de popularidade, foi eleito
senador por dois Estados e deputado por seis e pelo DF. Em 1950, voltou à
Presidência eleito pelo voto popular.
O novo Getúlio, tendo permanecido tanto
tempo no poder, mais da metade como ditador, sabia que não teria vida fácil no
retorno. El tinha incontestável apoio do público, mas não da crítica. Na
caserna, esse massivo apoio das ruas incomodava os “moderadores”, que temem
líderes populares e populistas. As tropas só esperavam um sinal verde para
derrubá-lo e, assim, acabar com o “mar de lama”. Acuado, Getulio preferiu a
morte à capitulação - o suicídio adiou por dez anos o golpe militar.
No lugar do getulismo, veio o lulismo, que
domina a disputa política desde 1989. A gestão ruinosa de Dilma Rousseff
(2011-2014 e 2015-2016) abalou o petismo, mas não tanto o lulismo. Despertou de
longa hibernação, porém, a extrema direita, que, favorecida pela destruição das
referências histórico-culturais neste mundo sem-pai-nem-mãe das redes sociais,
quer matar a política.
A crise que vivemos é a crise da política.
Jair Bolsonaro foi eleito com discurso anti-política e, no exercício do cargo,
ataca instituições com algum poder moderador: a Justiça e a imprensa.
Lula, assim como Getúlio, foi mais de um
desde que entrou na política. Para Souza Martins, pressupõe-se que o petista é
ele mesmo a terceira via no embate entre esquerda e direita. “É claro que isso
dependerá muito de sua capacidade de compreender demandas sociais,
especialmente as novas, e se ressocializar para ser o novo Lula”, pondera o
sociólogo, ex-aluno de Fernando Henrique Cardoso na USP, um homem de origem
humilde que pensa o Brasil utilizando-se do rigor do método científico
sociológico, mas sem jamais perder a generosidade. Seus textos, além de
instrutivos, são macios (para o bom entendimento do que vai escrito) até quando
tratam de temas como linchamento, uma das muitas chagas brasileiras.
Quando presidiu o país, Lula costumava
fazer uma espécie de chamamento das elites à consciência nos momentos difíceis,
algo como “vejam bem, estou fazendo um governo para todos, contra vários
princípios do meu partido”. A relação foi bem até o escândalo do mensalão, em
2005. Ao perceber que seu mandato corria risco, Lula abriu as portas do governo
para sua base social (os sindicalistas) e isso determinou o futuro de sua
gestão e do país desde então.
Em troca do apoio das centrais, o então
presidente vetou os planos de privatização, interrompeu o processo de reformas
anunciado em 2003, empoderou Dilma Rousseff, crítica feroz da política
econômica do primeiro mandato, e a escolheu, de forma monocrática, para
disputar a sucessão. Agora, 12 anos depois de descer a rampa do Palácio do
Planalto, tenta ser, novamente, mais de um Lula, e talvez isso explique a
dificuldade para convencer não petistas a votarem nele. E tem um Lula que Lula
se nega a ser na partida: o que deveria reconhecer que sua sucessora destruiu
seu legado econômico, jogando o país na recessão mais longa da história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário