O Estado de S. Paulo
Estamos aprendendo, tarde demais, que não é
por desinformação que muita gente o idolatra, mas por ódio a tudo o que seja
informação. O desastre quica na área.
Até pouco tempo atrás, as passeatas de
esquerda encenavam uma predisposição para o embate físico. A característica se
fazia presente na coreografia de todos os comícios anticapitalistas, e não
apenas no Brasil. Punhos erguidos socando o espaço sinalizavam a vontade de
esmurrar o oponente. As palavras de ordem jorravam carregadas de agressividade
quase bélica. Com frequência, lá vinham os black blocs atirando pedras nas vitrines e
coquetéis molotov nos policiais. Naqueles tempos idos, embora tão recentes, a
voz e o corpo da esquerda se opunham à ordem estabelecida, e sua linguagem eram
as jornadas teatrais contra o establishment,
a autoridade, as regras de trânsito e as boas maneiras.
Agora é o oposto. A velha gramática dos protestos virou de ponta-cabeça. Ano passado, nos Estados Unidos, quem promoveu arruaças foi a extrema-direita trumpista, que chegou ao cúmulo de promover a invasão do Capitólio. O símbolo mais icônico do atentado foi aquele sujeito enrolado num cobertor que parecia pele de urso e coroado, usando um capacete com dois chifres hediondos. O tipo ganhou o apelido midiático de “viking” e ficou famoso (no Brasil, um imitador do tal “viking” tem animado os convescotes golpistas do bolsonarismo).
A esquerda seguiu por outra via. Nos
Estados Unidos, por exemplo, andou mais preocupada em filiar eleitores na
Georgia para garantir a vitória do Partido Democrata. Enquanto a
extrema-direita tomou para si o gestual, a coreografia e a torpeza dos
vândalos, a esquerda se reagrupou na defesa da legalidade e do Estado de
Direito. Em Paris, foi a mesma coisa. Agora mesmo, tão logo foi anunciada a
derrota de Le Pen no segundo turno, seus cabos eleitorais (neonazistas e
congêneres) saíram pelos logradouros públicos chutando portas e latas de lixo;
os personagens da esquerda, de sua parte, preferiram ritualizar o congraçamento
entre as classes. Num mundo em que ninguém tem mais endereço certo e sabido, a
pancadaria mudou de lado, espetacularmente.
Essa inversão dá ao presidente da
República, Jair Bolsonaro, uma oportunidade eleitoral explosiva. Não obstante
seja o incumbente da vez, encarregado de cuidar da máquina pública, ele
bombardeia a máquina pública todos os dias, sem tréguas. Seu lema é destruir a
institucionalidade. Seu método é empregar o aparelho de Estado para demolir o
aparelho de Estado. Com a aproximação das eleições, não rivaliza com os
adversários ou com a oposição: sua guerra preferencial é contra as urnas
eletrônicas e contra a Justiça Eleitoral. Ele não quer derrotar seus rivais,
ele quer derrotar todo o sistema eleitoral.
Bolsonaro está em cruzada permanente. Na
falta de um inimigo externo, elegeu o Supremo, a imprensa e os ecologistas,
além de artistas, cientistas e intelectuais, como alvos prioritários. Ele não
tem apenas uma “narrativa”, palavra mágica que seus apoiadores se comprazem em
repetir: sua estratégia de comunicação consiste em convocar seus fanáticos para
assumir o papel de protagonistas anônimos nas batalhas campais contra a lei e a
ordem. Bolsonaro entrega às suas falanges, além das certezas feitas
exclusivamente de mentiras (certezas que lhes acalentam a alma ressentida), a
emoção de agir diretamente no combate discursivo, corporal e armado contra os
inimigos da Pátria e de Deus. Esse combate não passa de um delírio, mas isso
também não importa a mínima.
O que está vindo aí é uma onda, e essa onda
pode crescer. Com sua lógica colada na dinâmica das redes sociais, o presidente
aposta suas fichas na conflagração e no convulsionamento. O resultado não
importa; o que lhe rende pontos é o movimento. Ele não tem nem precisa ter
compromisso com a coerência ou com os fatos, pois sua fonte de energia política
é a barulheira incendiária. Quanto ao mais, seus seguidores também não ligam
para os fatos.
Estamos aprendendo, tarde demais, que não é
por desinformação que muita gente o idolatra, mas por ódio a tudo o que seja
informação. As multidões obcecadas pelo presidente abominam a verdade factual
e, mais ainda, repudiam os que falam em nome da verdade factual. Para as massas
ensandecidas e sedentas de tirania, a onda bolsonarista oferece uma paixão
violenta e irresistível, que combina paixão e certezas irracionais, mais ou
menos como se deu com o fascismo no século 20. O desastre quica na área.
“O trabalhador se sentirá autorizado a
descontar no corpo de sua esposa toda a opressão vivida na cidade”, antecipa o
cientista político Miguel Lago, um dos pouquíssimos que enxergam, ouvem e
sentem o que está para desabar sobre a Nação. O alerta está no ensaio Como explicar a resiliência de Bolsonaro?,
que faz parte do livro Linguagem
da destruição (Companhia das Letras, 2022), que tem Heloisa
Starling e Newton Bignotto como coautores. “O homofóbico se sentirá autorizado
a espancar uma pessoa por sua orientação sexual”, prossegue Miguel Lago,
desfiando a longa lista de “guardas da esquina”. Com a nossa pasmaceira
hesitante e paralisante, nós estamos pagando para ver o pior acontecer.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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