Começo contando como assisti Gilberto Gil, nosso mais recente imortal, apresentar-se, na última sexta-feira, 29, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves. Show a ser guardado na memória. Primor de tempestividade política sem pronunciamento que a formalizasse. Escolheu a dedo, para o começo, um repertório que a maioria da plateia ouviu e cantou sentada, o que já foi – tratando-se de Gil, cantando na Bahia – um sinal de que a noite não seria trivial. Quem tem mais de 60 anos, mais perto ou além dos 70, ouviu e viu o artista como se sua voz ainda tivesse a potência exortadora dos seus vinte e poucos anos. Tempo de sombras, então desafiados, agora evocados por Gil, cantando como quem dá um recado. Esse começo durou sete ou oito músicas, o introito acabou e ele subiu ao palco para valer. A comunicação direta com o momento coletivo mostrou aquele senhor artista cheirando a talco compartilhando com o seu público de todas as idades, agora de pé, o desejo de ver o inferno fora daqui! Nesse grito não havia crença nem programa, apenas desejo, necessidade e vontade titânicos de alívio do momento opressivo.
A conexão com o olê, olê, olê, olá de Lula
pediu do artista apenas o dedilhar de alguns acordes para embelezar o coro. A
catarse durou segundos porque Gil nem aí cedeu ao discurso e retomou seu
script, sem alimentar ilusões de que outra coisa poderia ser feita ali. O
Brasil não é simples assim. A sequência do repertório contrariou o que ultimamente
virou óbvio. Em vez de alusões reiterativas a pautas identitárias, do alto de
sua autoridade musical e moral o imortal mandou, com senso de alteridade, tal
qual um Mandela tropicalista, avisos políticos prudenciais também a seus irmãos
negros. Sacou Ary Barroso e Luiz Peixoto para exaltar o compasso da mulata
“luxo só”, pela letra um compasso brasileiro como nenhum. Em seguida Sarará
miolo, hino à afirmação, explicando antes que se trata de alusão a “raças
novas”, que surgiram no mundo atual em substituição às antigas. Por qual via,
senão a mistura?
No subtexto do show não tem desvio de foco
para construções ideológicas, bola de cristal ou retrovisor. A inspiração é o
Brasil, o todo diverso que é agora. Quer o inferno fora daqui, mas sem promessa
de céu (tomara que Lula ouça seu ministro!). Nem simpatizantes da ‘terceira
via” podem reclamar, ainda mais após os novos revezes, sofridos na véspera, nos
entendimentos em busca de um jeito de subir no palco eleitoral principal.
Cidadãos de boa vontade, majoritários ou não, dotados de senso de perigo,
saíram da Concha em harmonia, aliviados por um tipo de esperança que só pode
vingar em sintonia com as urnas.
O show da política real é mais nuançado. Há
algumas semanas admitia-se haver dois scripts alternativos para se opor ao de
Bolsonaro. Da esquerda vinha a aposta na polarização para resolver a eleição no
primeiro turno. Da oposição mais ao centro e à direita a ideia de que uma
candidatura agregadora desse campo no primeiro turno poderia enfraquecer
Bolsonaro ao deter seu crescimento no amplo eleitorado antipetista. Ambos os
caminhos têm racionalidade para além do autointeresse dos seus formuladores.
O potencial mobilizador do primeiro caminho
mostra-se claramente em ambientes sociais que lhe são previamente simpáticos,
como o do público da Concha Acústica. Mas tem força argumentativa positiva
também em todo ambiente convictamente avesso a viradas de mesa. Sim, resolver
tudo no primeiro turno dificulta o golpismo. Tentar deslegitimar eleições das
quais dependem também deputados, senadores e governadores será certamente mais
difícil e por isso quem o tentar correrá mais risco de isolamento. Se há um
pré-candidato cujas intenções de voto beiram o necessário para vencer no
primeiro turno é intuitivo pensar que o caminho menos arriscado é lhe
direcionar novos apoios para atingir esse necessário. Raciocínio que só pode
ser questionado se houver restrições de ordem política. E há, mas nesse ponto o
apelo ético-moral à unidade contra o fascista soma-se ao argumento pragmático
para reforçar a tese. O apelo tem força para interceptar o caminho prático da
terceira via, mas deixa irresolvidas as restrições políticas, exacerbadas, em
alguns momentos, na campanha de Lula.
O perigo, diz a lógica do segundo caminho,
é a estratégia polarizadora ganhar a parada da unidade da oposição, mas ceder
eleitores antipetistas ao adversário principal, de modo a configurar um empate
técnico em contexto de radicalização. Desse risco nasce um contra-argumento
também racional: sepultada de vez a terceira via, Lula seria um caminho sem
volta para o conjunto dos democratas. Equivale a partir sem plano B para uma
batalha sangrenta contra um adversário poderoso e montado em inclinações
concretas de um eleitorado que, em seguidas eleições, demonstra atitude
conservadora. Calça de veludo ou bunda de fora, os democratas poderiam, ao
final, lamentar não ter havido uma candidatura mais à direita capaz de conter
ao menos em parte o voto útil no extremista, sem impedir um entendimento com
Lula no segundo turno. Esse lamento levaria a censurar a cegueira gulosa da
esquerda ao ajudar a matar a terceira via por receio de que ela vá além do
script e tire o capitão da disputa, diminuindo as chances de vitória final
dessa esquerda. O inventário de culpas é uma teia. Pela lógica do primeiro
caminho surgirão lamentos opostamente simétricos de que se perdeu por um triz
uma guerra binária que poderia ser ganha e acusarão, mais uma vez, pelo
fracasso, quem foi para Paris.
A falta de uma coordenação política de alto
nível operando entre os dois campos de oposição já é, a essa altura, o que há
de mais concreto e relevante a lamentar. Ela permitiria reconhecer os elementos
de razão existentes em ambos os caminhos preconizados, evitando a teia de
acusações mútuas que alvejam o PT como partido fechado ao diálogo e perdido
entre atavismos dogmáticos ou populistas e os partidos e lideranças do centro
como agentes de uma pequena política adesista por vocação e/ou instrumento de
grandes interesses econômicos. Um oceano de preconceitos mútuos que, não sendo
mediados e contidos por uma coordenação de grande política podem, no limite,
facilitar a insólita reeleição de um inimigo explícito do estado democrático de
direito e candidato a algoz da Constituição. Ou seu sucesso numa virada de mesa
contra a consumação ou mesmo simples iminência de resultado eleitoral adverso.
Explicava-se mais facilmente a ausência
dessa coordenação democrática lá em 2018, quando esses dois campos ainda
estavam apartados pelo contexto do impeachment. Teria sido salutar para a
democracia se aquelas eleições houvessem sido o terreno de justificação e
disputa de duas teses: a do impeachment como golpe ou como solução para o país
e a democracia. O contexto em que ocorreu a interrupção do mandato de Dilma
Rousseff, em que a extrema-direita ainda não era um fato de poder, sugeria às
forças políticas defensoras das duas teses apresentarem diagnósticos
explicativos daquela crise e soluções para ela, dentro dos marcos de
compromissos com a democracia. Inclusive, o lado que havia vencido a batalha de
2015/2016 dispunha de um programa de governo em curso para calçar sua posição.
Como sabemos, apenas a versão do golpe se apresentou na campanha. Hoje o campo
do chamado centro liberal-democrático colhe frutos da sua pusilanimidade
política face a investidas então perpetradas pela Operação Lava-Jato, que o
levaram a trocar sua unidade por um salve-se-quem-puder, erro estratégico
fatal, pelo qual cedeu protagonismo à extrema-direita responsável pela
devastação que aí está.
Mais complexo é entender como a ausência de
coordenação democrática ocorre até aqui, após quase quatro anos de pressão
autoritária desestruturadora do Estado e desestabilizadora da ordem
democrática. Impossível realizar essa discussão hoje sem acirrar ânimos e
reabrir feridas que precisam ser, respectivamente, acalmados e fechadas no
interior desses dois campos políticos imprescindíveis para a reconstrução de pontes
que restabeleçam o trânsito político e garantam a continuidade das
instituições. Sem essa via comum é falso e altamente sugestivo de estelionato
eleitoral qualquer partido ou candidato(a) falar em plano de governo, saídas
para a crise e projetos para o país.
Em vez de se fazer inventário de culpas,
que se examine a realidade. Daqui a três semanas, no máximo, estará resolvido
se ainda haverá alguma terceira via que possa pronunciar esse nome ou se será
definitiva a opção que se desenha, nos partidos e no eleitorado, pela
polarização sem plano B. Se não houver agregação já, entre MDB, PSDB e
Cidadania, realizada sem fechar portas a um entendimento objetivo entre esses
partidos agregados e o PDT de Ciro Gomes, no sentido da admissão mútua de uma
possível agregação maior mais adiante, o desenho já será obra.
Certamente essa afirmação que faço será
tomada por retardatária, diante da profusão de análises que já decretam, ao
menos, a morte cerebral da terceira via. O tratamento do tema pela crônica
política já passou do ceticismo ao deboche e já se instalou uma temporada de
caça aos culpados. Os partidos e políticos do centro, flagrados nesse iminente
fracasso, apontam para a sabotagem realizada pelos dois polos. Quem se situa no
campo da esquerda aponta para interesses pequenos (personalistas e
fisiológicos) supostamente predominantes naqueles partidos. Uma incursão a
fatos que se desenrolam há mais de um ano mostraria que os dois fatores
estiveram e estão presentes. Mas não é o caso aqui, até porque tal inventário é
uma pauta que se assemelha a uma discussão sobre a quadratura do círculo.
Nada disso importa muito, não importa mais
agora, ou não importará logo mais. É uma platitude dizer que os polos
principais atuaram para impedir a terceira via. É da sua natureza fazê-lo, não
há razão para espanto porque não se trata de irracionalidade, mas de
estratégias cuja eficácia - para os atores que as praticam e /ou para o país -
só poderá ser melhor avaliada depois de outubro. Por outro lado, lamentar a
falta de “grandeza” dos políticos atuais é chover no molhado. Essa avaliação
tem sentido moral, mas não elimina o seguinte fato: do mesmo modo que, numa
democracia, um programa eleitoral, ou uma candidatura, só será, efetivamente,
um bom programa ou uma boa candidatura se puder obter uma aceitação relevante
por eleitores reais, também uma prescrição de atitude política só poderá ser,
efetivamente, uma boa prescrição se for praticável pelos políticos e partidos
reais. Há aí, claro, uma diferença, porque enquanto os eleitores não podem nem
devem ser mudados, elites e partidos podem sim. Mas a experiência das
democracias mostra que essas mudanças não se dão de modo abrupto. Para serem
efetivas e não desastrosas (como a emergência da “nova política” entre 2016 e
2018) elas precisam deslizar no tempo e interagir com a tradição política, no
âmbito de instituições permanentes.
No caso da novela da terceira via, o tema
da “grandeza” é recorrente, mas talvez esteja colocado de um modo que
privilegia o ângulo moral quando a deficiência decisiva de toda a elite
política (não só dos políticos da terceira via) é na capacidade estratégica,
que não quer dizer escassez de inteligência ou de “espírito público”. Melhor
dizendo, o problema liga-se à dinâmica da política atual, que exige de políticos
“normais”, agilidade mais remetida ao plano tático. Correr ao encontro de uma
opção populista é caminho menos complexo, logo, preferível. A ausência de
coordenação do conjunto do campo democrático parece ser uma das mais eloquentes
evidências dessa limitação.
Enquadrada assim, a hipótese de agregação
de um campo político centrista como terceira via não poderia ser imaginada como
derivação direta de crenças ideológicas ou apenas como imperativo de
compromissos estratégicos com a democracia, mas na medida em que correspondesse
a uma boa compreensão dos próprios interesses dos partidos que a comporiam, no
sentido desses atores verem convergências entre esses interesses e o objetivo
de fornecer ao eleitorado, em nome, aí sim, de valores democráticos, uma opção,
ao centro, de oposição a Bolsonaro.
Dos quatro partidos que se mantinham na
mesa até essa semana que finda, o Cidadania, o menor deles, resolveu esse
problema de algum modo, negando espaço ao quadro que desejava ser
pré-candidato. Isso colocou o partido em posição de mediar entendimentos entre
os demais. Porém, há um limite, porque precisou formar uma federação com o
PSDB, o que atrela a esse último a sua posição final. Caso oposto é o do União
Brasil, que equacionou a média de seus interesses (inclusive junto ao governo
federal) de modo conflitante com a agregação. Daí se afastou, enfraquecendo,
sobremodo, a articulação. O PSDB e o MDB ainda não concluíram seus processos em
relação à hipótese de agregação. Passos intermediários que esses partidos deram
são responsáveis por não se descartar ainda essa hipótese.
No caso dos tucanos, a unificação formal (a
real é outra conversa) em torno do nome do ex-governador João Dória, vencedor
das prévias internas, parece ter equacionado, provisoriamente, um problema de
sobrevivência do partido e, ao mesmo tempo, deixou a suposta aliança com um
problema a menos, que era a disputa entre Dória e Eduardo Leite, no bojo da
qual chegou a se cogitar judicialização. Mas é preciso ver o que Dória fará com
essa oportunidade que o partido lhe deu. Se vai usá-la para fazer o gesto
decisivo de viabilizar a aliança com os outros dois partidos ou se para
prosseguir em seu voo solteiro testando os limites do seu partido, entre a
resignação e a rebelião.
Já o MDB, criou um relativo colchão de
proteção à pré-candidata senadora Simone Tebet como a contradizer as apostas
que se faz na sua inviabilização pelos interesses regionais que, supostamente,
decidem a sorte do partido. Essa solução tem também, como no caso dos tucanos,
a lógica de evitar o estilhaçamento do partido, com a diferença de que o nome
de Tebet tem fluxo livre nos outros dois partidos a ponto de hoje ser
reconhecido (embora não declarado para esperar o gesto de Dória) como a única
hipótese de unificação. A ver, no entanto, se o núcleo da direção nacional do
MDB será capaz de fazer valer essa confluência entre o interesse partidário e a
necessidade política de agregação do campo centrista, ou se prevalecerão
tendências centrífugas que, se impedirem a visibilidade nacional do partido,
provavelmente o farão diluir-se na poeira deixada pela marcha acelerada do
centrão.
Tudo já foi dito nesses meses sobre a
terceira via. Resta aguardar e voltar os olhos para a disputa principal,
sugerida pelos fatos. Depois de um momento de hesitação, Lula parece ter
voltado a fazer política mais ampla e saiu à caça de aliados. Mas Bolsonaro
segue, como se sabe, encurtando a distância que os separa nas pesquisas. De
modo evidente saiu do isolamento político e usa isso para se articular, como
sempre, para enfraquecer as instituições com vistas ao confronto final que
planeja ter com elas.
Se confirmado o descarte de qualquer plano
B, não só o capital eleitoral do PT e da esquerda estará em jogo com a
candidatura de Lula. Estará sendo jogado, também, o futuro da democracia e das
regras do próprio jogo. No vácuo de coordenação política, já é quase certo que
prevalecerá, como opção excludente, a tática do embate direto entre caminhos
também excludentes. Esvaindo-se a hipótese de uma candidatura única, ou mesmo
de duas, que constituíssem um campo moderador e qualificador do
debate com cada um dos lados principais,
esta promete ser uma eleição disputada voto a voto, tête-à-tête, com alto grau
de radicalização, em clima de segundo turno, talvez sob violência civil.
Essa realidade é que justifica o título
pouco sedutor da coluna. Tomarmos um banho de urna em outubro será um remédio
providencial para as dores e medos do país. Só isso constitui boa esperança.
Mas ainda teremos que lutar por esse banho. No palco do embate será preciso
acender continuamente o fogo eterno que emana de valores da civilização, para
exorcizar a violência e a delinquência que se arremeterá contra as eleições. A
união cívica é o mote, como ficou evidente na plateia de Gil.
Sem ilusões, porém. Um dos subprodutos da
polarização sem plano B é que ela permanecerá radical após as eleições. Ainda
que o golpismo seja vencido também no pós-pleito e os vencedores tomem posse,
organizar e fazer funcionar um governo não será nada parecido com um passeio.
Muita gente, durante esses quatro anos, acostumou-se ao desgoverno e descobriu
que pode tirar proveito dele. Gente que não quer mais aceitar limites aos seus
desejos egoístas e passou a chamar esse páthos de liberdade.
Eis aí a imagem do purgatório como o nosso
melhor cenário possível. Ele pode se tornar comparativamente até animador, se
pensarmos no que ocorrerá com o Brasil se, com a reeleição do atual presidente,
ultrapassarmos o umbral do inferno. Por isso, a mornidão das expectativas de
futuro não justifica subestimar a importância vital do banho de urna. Gilberto
Gil está duplamente certo ao incentivá-lo e ao concentrar as expectativas na
exorcização do inferno. Valerá o ingresso, como valeu o da Concha. O futuro
será pauta do longo prazo se, no médio, o país não estiver espiritualmente morto.
* Cientista político e professor da UFBa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário