segunda-feira, 2 de maio de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto*: Banho de urna para o Brasil ficar no purgatório

Sei que o título desta coluna, embora fale de urna, não é sedutor, pelo déficit de esperança que aparentemente carrega. De fato, observado o que ocorre e o que pode ocorrer na política brasileira, vejo que o melhor futuro do presente é ser um presente contínuo. Explico: a terra mais firme à vista é uma ilha ameaçada por lavas de vulcão ainda durante um tempo indeterminado. Mas ilha ao menos um pouco mais distante da porta do inferno, onde nos encontramos agora. A expectativa otimista e, ao mesmo tempo, razoável é que haja eleições normais, que o resultado do pleito presidencial se oponha ao de 2018 e que ele prevaleça contra ações golpistas, que já se encontram em fase avançada de testes. A seguir tentarei argumentar que esse pouco não é só mais do mesmo. Portanto, deve nos incitar a agir. Dentro dos estreitos limites em que o Brasil respira, é um horizonte esperançoso, sem ser delirante.

Começo contando como assisti Gilberto Gil, nosso mais recente imortal, apresentar-se, na última sexta-feira, 29, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves. Show a ser guardado na memória. Primor de tempestividade política sem pronunciamento que a formalizasse. Escolheu a dedo, para o começo, um repertório que a maioria da plateia ouviu e cantou sentada, o que já foi – tratando-se de Gil, cantando na Bahia – um sinal de que a noite não seria trivial. Quem tem mais de 60 anos, mais perto ou além dos 70, ouviu e viu o artista como se sua voz ainda tivesse a potência exortadora dos seus vinte e poucos anos. Tempo de sombras, então desafiados, agora evocados por Gil, cantando como quem dá um recado. Esse começo durou sete ou oito músicas, o introito acabou e ele subiu ao palco para valer. A comunicação direta com o momento coletivo mostrou aquele senhor artista cheirando a talco compartilhando com o seu público de todas as idades, agora de pé, o desejo de ver o inferno fora daqui! Nesse grito não havia crença nem programa, apenas desejo, necessidade e vontade titânicos de alívio do momento opressivo.

A conexão com o olê, olê, olê, olá de Lula pediu do artista apenas o dedilhar de alguns acordes para embelezar o coro. A catarse durou segundos porque Gil nem aí cedeu ao discurso e retomou seu script, sem alimentar ilusões de que outra coisa poderia ser feita ali. O Brasil não é simples assim. A sequência do repertório contrariou o que ultimamente virou óbvio. Em vez de alusões reiterativas a pautas identitárias, do alto de sua autoridade musical e moral o imortal mandou, com senso de alteridade, tal qual um Mandela tropicalista, avisos políticos prudenciais também a seus irmãos negros. Sacou Ary Barroso e Luiz Peixoto para exaltar o compasso da mulata “luxo só”, pela letra um compasso brasileiro como nenhum. Em seguida Sarará miolo, hino à afirmação, explicando antes que se trata de alusão a “raças novas”, que surgiram no mundo atual em substituição às antigas. Por qual via, senão a mistura?

No subtexto do show não tem desvio de foco para construções ideológicas, bola de cristal ou retrovisor. A inspiração é o Brasil, o todo diverso que é agora. Quer o inferno fora daqui, mas sem promessa de céu (tomara que Lula ouça seu ministro!). Nem simpatizantes da ‘terceira via” podem reclamar, ainda mais após os novos revezes, sofridos na véspera, nos entendimentos em busca de um jeito de subir no palco eleitoral principal. Cidadãos de boa vontade, majoritários ou não, dotados de senso de perigo, saíram da Concha em harmonia, aliviados por um tipo de esperança que só pode vingar em sintonia com as urnas.

O show da política real é mais nuançado. Há algumas semanas admitia-se haver dois scripts alternativos para se opor ao de Bolsonaro. Da esquerda vinha a aposta na polarização para resolver a eleição no primeiro turno. Da oposição mais ao centro e à direita a ideia de que uma candidatura agregadora desse campo no primeiro turno poderia enfraquecer Bolsonaro ao deter seu crescimento no amplo eleitorado antipetista. Ambos os caminhos têm racionalidade para além do autointeresse dos seus formuladores.

O potencial mobilizador do primeiro caminho mostra-se claramente em ambientes sociais que lhe são previamente simpáticos, como o do público da Concha Acústica. Mas tem força argumentativa positiva também em todo ambiente convictamente avesso a viradas de mesa. Sim, resolver tudo no primeiro turno dificulta o golpismo. Tentar deslegitimar eleições das quais dependem também deputados, senadores e governadores será certamente mais difícil e por isso quem o tentar correrá mais risco de isolamento. Se há um pré-candidato cujas intenções de voto beiram o necessário para vencer no primeiro turno é intuitivo pensar que o caminho menos arriscado é lhe direcionar novos apoios para atingir esse necessário. Raciocínio que só pode ser questionado se houver restrições de ordem política. E há, mas nesse ponto o apelo ético-moral à unidade contra o fascista soma-se ao argumento pragmático para reforçar a tese. O apelo tem força para interceptar o caminho prático da terceira via, mas deixa irresolvidas as restrições políticas, exacerbadas, em alguns momentos, na campanha de Lula.

O perigo, diz a lógica do segundo caminho, é a estratégia polarizadora ganhar a parada da unidade da oposição, mas ceder eleitores antipetistas ao adversário principal, de modo a configurar um empate técnico em contexto de radicalização. Desse risco nasce um contra-argumento também racional: sepultada de vez a terceira via, Lula seria um caminho sem volta para o conjunto dos democratas. Equivale a partir sem plano B para uma batalha sangrenta contra um adversário poderoso e montado em inclinações concretas de um eleitorado que, em seguidas eleições, demonstra atitude conservadora. Calça de veludo ou bunda de fora, os democratas poderiam, ao final, lamentar não ter havido uma candidatura mais à direita capaz de conter ao menos em parte o voto útil no extremista, sem impedir um entendimento com Lula no segundo turno. Esse lamento levaria a censurar a cegueira gulosa da esquerda ao ajudar a matar a terceira via por receio de que ela vá além do script e tire o capitão da disputa, diminuindo as chances de vitória final dessa esquerda. O inventário de culpas é uma teia. Pela lógica do primeiro caminho surgirão lamentos opostamente simétricos de que se perdeu por um triz uma guerra binária que poderia ser ganha e acusarão, mais uma vez, pelo fracasso, quem foi para Paris.

A falta de uma coordenação política de alto nível operando entre os dois campos de oposição já é, a essa altura, o que há de mais concreto e relevante a lamentar. Ela permitiria reconhecer os elementos de razão existentes em ambos os caminhos preconizados, evitando a teia de acusações mútuas que alvejam o PT como partido fechado ao diálogo e perdido entre atavismos dogmáticos ou populistas e os partidos e lideranças do centro como agentes de uma pequena política adesista por vocação e/ou instrumento de grandes interesses econômicos. Um oceano de preconceitos mútuos que, não sendo mediados e contidos por uma coordenação de grande política podem, no limite, facilitar a insólita reeleição de um inimigo explícito do estado democrático de direito e candidato a algoz da Constituição. Ou seu sucesso numa virada de mesa contra a consumação ou mesmo simples iminência de resultado eleitoral adverso.

Explicava-se mais facilmente a ausência dessa coordenação democrática lá em 2018, quando esses dois campos ainda estavam apartados pelo contexto do impeachment. Teria sido salutar para a democracia se aquelas eleições houvessem sido o terreno de justificação e disputa de duas teses: a do impeachment como golpe ou como solução para o país e a democracia. O contexto em que ocorreu a interrupção do mandato de Dilma Rousseff, em que a extrema-direita ainda não era um fato de poder, sugeria às forças políticas defensoras das duas teses apresentarem diagnósticos explicativos daquela crise e soluções para ela, dentro dos marcos de compromissos com a democracia. Inclusive, o lado que havia vencido a batalha de 2015/2016 dispunha de um programa de governo em curso para calçar sua posição. Como sabemos, apenas a versão do golpe se apresentou na campanha. Hoje o campo do chamado centro liberal-democrático colhe frutos da sua pusilanimidade política face a investidas então perpetradas pela Operação Lava-Jato, que o levaram a trocar sua unidade por um salve-se-quem-puder, erro estratégico fatal, pelo qual cedeu protagonismo à extrema-direita responsável pela devastação que aí está.

Mais complexo é entender como a ausência de coordenação democrática ocorre até aqui, após quase quatro anos de pressão autoritária desestruturadora do Estado e desestabilizadora da ordem democrática. Impossível realizar essa discussão hoje sem acirrar ânimos e reabrir feridas que precisam ser, respectivamente, acalmados e fechadas no interior desses dois campos políticos imprescindíveis para a reconstrução de pontes que restabeleçam o trânsito político e garantam a continuidade das instituições. Sem essa via comum é falso e altamente sugestivo de estelionato eleitoral qualquer partido ou candidato(a) falar em plano de governo, saídas para a crise e projetos para o país.

Em vez de se fazer inventário de culpas, que se examine a realidade. Daqui a três semanas, no máximo, estará resolvido se ainda haverá alguma terceira via que possa pronunciar esse nome ou se será definitiva a opção que se desenha, nos partidos e no eleitorado, pela polarização sem plano B. Se não houver agregação já, entre MDB, PSDB e Cidadania, realizada sem fechar portas a um entendimento objetivo entre esses partidos agregados e o PDT de Ciro Gomes, no sentido da admissão mútua de uma possível agregação maior mais adiante, o desenho já será obra.

Certamente essa afirmação que faço será tomada por retardatária, diante da profusão de análises que já decretam, ao menos, a morte cerebral da terceira via. O tratamento do tema pela crônica política já passou do ceticismo ao deboche e já se instalou uma temporada de caça aos culpados. Os partidos e políticos do centro, flagrados nesse iminente fracasso, apontam para a sabotagem realizada pelos dois polos. Quem se situa no campo da esquerda aponta para interesses pequenos (personalistas e fisiológicos) supostamente predominantes naqueles partidos. Uma incursão a fatos que se desenrolam há mais de um ano mostraria que os dois fatores estiveram e estão presentes. Mas não é o caso aqui, até porque tal inventário é uma pauta que se assemelha a uma discussão sobre a quadratura do círculo.

Nada disso importa muito, não importa mais agora, ou não importará logo mais. É uma platitude dizer que os polos principais atuaram para impedir a terceira via. É da sua natureza fazê-lo, não há razão para espanto porque não se trata de irracionalidade, mas de estratégias cuja eficácia - para os atores que as praticam e /ou para o país - só poderá ser melhor avaliada depois de outubro. Por outro lado, lamentar a falta de “grandeza” dos políticos atuais é chover no molhado. Essa avaliação tem sentido moral, mas não elimina o seguinte fato: do mesmo modo que, numa democracia, um programa eleitoral, ou uma candidatura, só será, efetivamente, um bom programa ou uma boa candidatura se puder obter uma aceitação relevante por eleitores reais, também uma prescrição de atitude política só poderá ser, efetivamente, uma boa prescrição se for praticável pelos políticos e partidos reais. Há aí, claro, uma diferença, porque enquanto os eleitores não podem nem devem ser mudados, elites e partidos podem sim. Mas a experiência das democracias mostra que essas mudanças não se dão de modo abrupto. Para serem efetivas e não desastrosas (como a emergência da “nova política” entre 2016 e 2018) elas precisam deslizar no tempo e interagir com a tradição política, no âmbito de instituições permanentes.

No caso da novela da terceira via, o tema da “grandeza” é recorrente, mas talvez esteja colocado de um modo que privilegia o ângulo moral quando a deficiência decisiva de toda a elite política (não só dos políticos da terceira via) é na capacidade estratégica, que não quer dizer escassez de inteligência ou de “espírito público”. Melhor dizendo, o problema liga-se à dinâmica da política atual, que exige de políticos “normais”, agilidade mais remetida ao plano tático. Correr ao encontro de uma opção populista é caminho menos complexo, logo, preferível. A ausência de coordenação do conjunto do campo democrático parece ser uma das mais eloquentes evidências dessa limitação.

Enquadrada assim, a hipótese de agregação de um campo político centrista como terceira via não poderia ser imaginada como derivação direta de crenças ideológicas ou apenas como imperativo de compromissos estratégicos com a democracia, mas na medida em que correspondesse a uma boa compreensão dos próprios interesses dos partidos que a comporiam, no sentido desses atores verem convergências entre esses interesses e o objetivo de fornecer ao eleitorado, em nome, aí sim, de valores democráticos, uma opção, ao centro, de oposição a Bolsonaro.

Dos quatro partidos que se mantinham na mesa até essa semana que finda, o Cidadania, o menor deles, resolveu esse problema de algum modo, negando espaço ao quadro que desejava ser pré-candidato. Isso colocou o partido em posição de mediar entendimentos entre os demais. Porém, há um limite, porque precisou formar uma federação com o PSDB, o que atrela a esse último a sua posição final. Caso oposto é o do União Brasil, que equacionou a média de seus interesses (inclusive junto ao governo federal) de modo conflitante com a agregação. Daí se afastou, enfraquecendo, sobremodo, a articulação. O PSDB e o MDB ainda não concluíram seus processos em relação à hipótese de agregação. Passos intermediários que esses partidos deram são responsáveis por não se descartar ainda essa hipótese.

No caso dos tucanos, a unificação formal (a real é outra conversa) em torno do nome do ex-governador João Dória, vencedor das prévias internas, parece ter equacionado, provisoriamente, um problema de sobrevivência do partido e, ao mesmo tempo, deixou a suposta aliança com um problema a menos, que era a disputa entre Dória e Eduardo Leite, no bojo da qual chegou a se cogitar judicialização. Mas é preciso ver o que Dória fará com essa oportunidade que o partido lhe deu. Se vai usá-la para fazer o gesto decisivo de viabilizar a aliança com os outros dois partidos ou se para prosseguir em seu voo solteiro testando os limites do seu partido, entre a resignação e a rebelião.

Já o MDB, criou um relativo colchão de proteção à pré-candidata senadora Simone Tebet como a contradizer as apostas que se faz na sua inviabilização pelos interesses regionais que, supostamente, decidem a sorte do partido. Essa solução tem também, como no caso dos tucanos, a lógica de evitar o estilhaçamento do partido, com a diferença de que o nome de Tebet tem fluxo livre nos outros dois partidos a ponto de hoje ser reconhecido (embora não declarado para esperar o gesto de Dória) como a única hipótese de unificação. A ver, no entanto, se o núcleo da direção nacional do MDB será capaz de fazer valer essa confluência entre o interesse partidário e a necessidade política de agregação do campo centrista, ou se prevalecerão tendências centrífugas que, se impedirem a visibilidade nacional do partido, provavelmente o farão diluir-se na poeira deixada pela marcha acelerada do centrão.

Tudo já foi dito nesses meses sobre a terceira via. Resta aguardar e voltar os olhos para a disputa principal, sugerida pelos fatos. Depois de um momento de hesitação, Lula parece ter voltado a fazer política mais ampla e saiu à caça de aliados. Mas Bolsonaro segue, como se sabe, encurtando a distância que os separa nas pesquisas. De modo evidente saiu do isolamento político e usa isso para se articular, como sempre, para enfraquecer as instituições com vistas ao confronto final que planeja ter com elas.

Se confirmado o descarte de qualquer plano B, não só o capital eleitoral do PT e da esquerda estará em jogo com a candidatura de Lula. Estará sendo jogado, também, o futuro da democracia e das regras do próprio jogo. No vácuo de coordenação política, já é quase certo que prevalecerá, como opção excludente, a tática do embate direto entre caminhos também excludentes. Esvaindo-se a hipótese de uma candidatura única, ou mesmo de duas, que constituíssem um campo moderador e qualificador do

debate com cada um dos lados principais, esta promete ser uma eleição disputada voto a voto, tête-à-tête, com alto grau de radicalização, em clima de segundo turno, talvez sob violência civil.

Essa realidade é que justifica o título pouco sedutor da coluna. Tomarmos um banho de urna em outubro será um remédio providencial para as dores e medos do país. Só isso constitui boa esperança. Mas ainda teremos que lutar por esse banho. No palco do embate será preciso acender continuamente o fogo eterno que emana de valores da civilização, para exorcizar a violência e a delinquência que se arremeterá contra as eleições. A união cívica é o mote, como ficou evidente na plateia de Gil.

Sem ilusões, porém. Um dos subprodutos da polarização sem plano B é que ela permanecerá radical após as eleições. Ainda que o golpismo seja vencido também no pós-pleito e os vencedores tomem posse, organizar e fazer funcionar um governo não será nada parecido com um passeio. Muita gente, durante esses quatro anos, acostumou-se ao desgoverno e descobriu que pode tirar proveito dele. Gente que não quer mais aceitar limites aos seus desejos egoístas e passou a chamar esse páthos de liberdade.

Eis aí a imagem do purgatório como o nosso melhor cenário possível. Ele pode se tornar comparativamente até animador, se pensarmos no que ocorrerá com o Brasil se, com a reeleição do atual presidente, ultrapassarmos o umbral do inferno. Por isso, a mornidão das expectativas de futuro não justifica subestimar a importância vital do banho de urna. Gilberto Gil está duplamente certo ao incentivá-lo e ao concentrar as expectativas na exorcização do inferno. Valerá o ingresso, como valeu o da Concha. O futuro será pauta do longo prazo se, no médio, o país não estiver espiritualmente morto.

* Cientista político e professor da UFBa.

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