Folha de S. Paulo
Mesmo com inflação e desemprego, a distopia
tem demonstrado concretude perturbadora
No Dia do Trabalhador, um país forjado
sobre os pilares da escravização e que desde a década de 1990 reconhece
oficialmente perante a comunidade internacional a existência de trabalho
forçado em seu território deveria ir às ruas para exigir respeito e geração de
trabalho decente para a população.
Mesmo diante da maior prévia da inflação mensal em 27 anos, da queda no salário médio e de uma multidão de desempregados estabilizada na casa dos 12 milhões, no Brasil a realidade parece ter decidido competir com a ficção dada a quantidade e a proporção de despautérios. E a distopia tem demonstrado uma concretude perturbadora.
Feridas antigas tornaram-se purulentas e
mais visíveis. Um exemplo acachapante é o aumento de denúncias de gente mantida
em condição "análoga à escravidão". Cerca de 2.000 pessoas foram resgatadas só pela Secretaria de Inspeção do Trabalho
(SIT) do Ministério do Trabalho e Previdência em 2021 —o maior número desde
2013.
A falta de informação (e de formação) do
povo ajuda a perpetuar essa situação, mas não é a única causa. O cenário
envolve sobretudo falta de ética, desumanidade e enorme desvio moral —para
dizer o mínimo.
Em áreas urbanas, o "trabalho
escravo" doméstico é o mais identificado, o que afeta principalmente
mulheres negras. Perturbador assistir ao desabafo da senhora preta de 62 anos —54
deles vividos como escravizada doméstica em Salvador— que chora ao encostar a
mão na jornalista que a entrevistou. "Fico com receio de pegar na sua mão
branca. (...) Eu boto a minha em cima da sua e acho feio isso."
Poderia ser um trailer de terror psicológico, mas é mostra do dano causado em quem vive numa sociedade estruturada para garantir a perpetuação de privilégios estabelecidos com base em padrões absurdos e injustificáveis, como a cor da pele. No filme "Medida Provisória", dirigido por Lázaro Ramos, a certa altura, um dos personagens indaga: "Como é que a gente deixou chegar a esse ponto?".
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