O Globo
Bobby Sands, irlandês, católico, militante
do IRA, morreu aos 27 anos, em maio de 1981, em consequência de uma greve de
fome de 66 dias na prisão de Maze. No 40º dia da greve de fome, foi eleito para
a Câmara dos Comuns por um distrito da Irlanda do Norte. O Reino Unido, onde
fica o mais antigo Parlamento do mundo, não vetava mandatos parlamentares de
prisioneiros que cumpriam sentença. Quando debate as implicações da crise
gerada pelo caso Daniel Silveira, o STF precisa estudar o episódio de Sands.
Silveira ocupa a extremidade de um longo fio de crise institucional desenrolado a partir do “petrolão”. No vácuo aberto pela corrupção crônica e pela Operação Lava-Jato, o STF subiu uma escadaria de incêndio e, em meio à desmoralização da elite política, reinventou-se como Poder Moderador. A aventura de concentração de poder conduziu os juízes a romper um limite constitucional sagrado, por meio do sequestro do direito de cassar mandatos parlamentares.
Tudo começou em 2016, com Eduardo Cunha,
“afastado” do mandato por liminar monocrática de Teori Zavascki e, depois,
cassado pela Câmara. A figura do “afastamento”, uma acrobacia jurídica
olímpica, foi recepcionada pela Primeira Turma do STF quando decidiu “afastar”
Aécio Neves de seu mandato, em 2017. O episódio provocou reação do Senado, que
derrubou a sentença judicial, mas não produziu um recuo conceitual da Corte
Suprema, como revelam os casos de dois Paulos, Maluf e Feijó.
O STF condenou os dois deputados e
determinou a cassação automática de seus mandatos. No caso de Maluf, nome que
se tornou quase sinônimo de corrupção, a Mesa da Câmara aceitou o veredito,
declarando a cassação sem colocá-la em votação. No de Feijó, cujo mandato
encerrou-se antes de uma deliberação final, o então presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, recorreu ao tribunal, pedindo o reconhecimento de que só
parlamentares podem cassar mandatos. Luís Roberto Barroso, porém, extinguiu a
ação, alegando perda de objeto e circundando a questão constitucional.
Na sua escalada jurídica, o STF apoia-se no
Código Penal, que prevê a perda de direitos políticos — e, portanto, de mandato
parlamentar — de indivíduo condenado criminalmente. A interpretação choca-se
com a literalidade do Artigo 55 da Constituição, que atribui à maioria
parlamentar a prerrogativa de cassar mandatos. Mas a precedência do direito
penal sobre o constitucional serve à operação política de transmutação da Corte
Suprema em Poder Moderador.
Arthur Lira entrou com recurso na ação
engavetada por Barroso, solicitando que, finalmente, o STF analise a
constitucionalidade de seus atos de cassação de mandatos. Afinal, quem governa?
Os representantes eleitos ou os juízes não eleitos? Porque, no fundo, ao tomar
para si o privilégio de cassar mandatos, os magistrados estão dizendo que o
governo deve ser exercido por um grupo de sábios especialistas nas leis, não
pela plebe ignara incapaz de eleger representantes dignos.
As implicações do avanço do STF sobre a
prerrogativa do Congresso emergem na hora do perdão concedido por Bolsonaro a
Silveira. O ato presidencial, que incorre em desvio de finalidade e viola o
princípio da impessoalidade da administração pública, teria tudo para ser
declarado inconstitucional. Contudo os juízes viram-se politicamente isolados, carentes
de apoio entre os congressistas, que usam a oportunidade para se vingar das
afrontas da Corte Suprema. Por terem, antes, ultrapassado as fronteiras de suas
competências, os magistrados descobrem-se, agora, impotentes para exercer suas
funções legítimas de controle constitucional.
O episódio de Bobby Sands ilumina um pilar
fundamental do sistema democrático: a separação entre a esfera jurídica,
domínio dos tribunais, e a esfera política, domínio da representação popular.
Os juízes detêm o privilégio de sentenciar e mandar prender. Os eleitores
mantêm a prerrogativa exclusiva de eleger (e cassar) seus representantes,
inclusive condenados cumprindo pena de prisão. Os 11 magistrados supremos têm
algo a aprender com a história da vida breve daquele irlandês.
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