O Globo
‘A
liberdade do lobo quase sempre significa a morte do cordeiro.’ Essa frase de
Isaiah Berlin volta a circular no momento em que a liberdade de expressão
torna-se um debate global. Nos EUA, foi intensificado com a compra do Twitter
por Elon Musk. No Brasil, é o pretexto de Bolsonaro para perdoar um deputado.
Acho interessante que o pensamento de
Isaiah Berlin sobre liberdade volte a ser estudado. Confesso que, há muitos
anos, tinha uma certa resistência aos textos de Berlin. Ele desmontava de uma
forma implacável o romantismo revolucionário que existia em mim. Foi muito
bombardeado pela esquerda, sobretudo a partir da Rússia, por causa de sua
amizade com artistas perseguidos pelo stalinismo, como a poeta Anna Akhmátova.
Por que, entre tantos liberais, Isaiah Berlin merece ser descoberto? Ele, de uma forma brilhante, compreendeu que as liberdades humanas não formam um todo harmonioso: podem entrar em conflito umas com as outras e, quando o fazem, devemos escolher entre elas. A inspiração de Berlin foi lutar contra o totalitarismo que falha em proteger liberdades específicas, mas também suprime a própria possibilidade de liberdade.
Creio que um dos pontos importantes para
reter é que as reivindicações de liberdade podem entrar em choque com as de
segurança e igualdade ou com valores comunitários. Quando isso acontece, uma
visão democrática não concede à liberdade um tipo de prioridade absoluta. Se o
liberalismo levasse em conta esses argumentos, não aceitaria nenhum tipo de
moral universal, não teríamos invasões de países estrangeiros “para implantar a
liberdade”.
Foram ideias formuladas no século passado.
Mas servem de baliza para o debate no século XXI. A liberdade de expressão,
chamada em inglês de free speech, foi o marco que impulsionou as plataformas
digitais e as levou, num determinado momento, à necessidade de uma revisão. O
discurso de ódio, o racismo, o assédio moral se infiltraram nas redes e criaram
uma típica situação em que a liberdade do lobo é quase sempre a morte do
cordeiro.
Numa célebre conferência de 1957, “Duas
visões de liberdade”, ele se referia aos conceitos romântico e liberal de
liberdade. São muito citadas também suas classificações de liberdade negativa e
positiva. A primeira significa poder atuar sem a interferência dos outros,
inclusive do Estado. A segunda, a liberdade positiva, significa o exercício do
autocontrole, atuar de acordo com a razão, coletiva ou individual. Berlin
rejeita a ideia de que apenas um modo de viver pode ser totalmente racional.
Existe um grande espaço no pluralismo para românticos que acreditam na
espontaneidade, religiosos que aceitam restrições.
O interessante é que ele admite certos
limites à liberdade negativa para promover outros valores e ideais. Claro que,
nesse caso, é preciso cuidado, atuar com muita consciência.
Espero não ter me confundido muito, mas
creio que a base do debate está aí. Parece-me que o racismo, a homofobia, o
assédio moral entram em choque com valores racionais. Assim como a pregação da
violência ou do totalitarismo. Todos esses casos, em alguns países, estão
previstos em lei. A afirmação de Elon Musk de que a liberdade seria preservada,
com respeito à lei, é um sinal de que o Twitter em novas mãos aceitará os
limites legais.
Infelizmente, a interpretação do governo
brasileiro sobre liberdade de expressão extrapola os limites da lei. Se considerarmos
lei o que está escrito na Constituição, até na opinião de um juiz indicado por
Bolsonaro, Daniel Silveira a transgrediu. Bolsonaro recusou essa dimensão da
liberdade positiva e afirmou apenas a negativa, a possibilidade de dizer
qualquer coisa, em qualquer circunstância, sem nenhuma consequência.
Isso, na verdade, é uma visão anárquica, o
paraíso dos lobos.
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