Folha de S. Paulo
Sonho paraguaio de imunidade vitalícia é o
canto das sereias de aspirantes a autocrata
É intuitiva a noção de que as imunidades
são precondição para o exercício da atividade política nas democracias. Como
podemos concebê-la se há espaço para retaliação política pelos governantes? Ou
ainda sem plena liberdade de expressão? Mas é inegável que ela cria incentivos
para o arbítrio e a corrupção.
Chafetz mostrou que duas tradições informaram os dispositivos legais para as imunidades nos EUA e no Reino Unido. A primeira delas, a versão forte do princípio que a soberania parlamentar deve prevalecer em relação a qualquer agente externo, inclusive tribunais, predominou até o século 19; na segunda, a soberania é exercida contra o monarca mas também sobre parlamentares. O Judiciário é visto aqui como potencial agente do povo.
É esta tradição que prevaleceu no Reino
Unido, onde não há imunidade de qualquer natureza, cabendo ao Judiciário
julgar malfeitos dos parlamentares sem qualquer impedimento.
No polo oposto, está o caso do Paraguai,
onde há imunidade vitalícia para os presidentes. No meio do caminho, está a
França, que, desde a Revolução Francesa, proibiu a prisão de parlamentares, salvo
para crimes comuns (A nossa "Revolução Francesa" é o voto do STF, na
ação penal 937/ 2018).
Reddy
et al (2020) investigou a questão da "imunidade formal"
(garantias processuais como foro especial; proibição ou licença legislativa
para prisão etc.) e construiu um índice a partir de 18 critérios (quórum para a
licença, duração da imunidade etc.) para membros dos três Poderes, de 90
países.
O Paraguai tem o escore mais elevado (0,89,
em uma escala de 0 a 1), seguido de Uruguai (0,83), Brasil e Argentina
(empatados em 0,78); Reino Unido, Canadá e Austrália têm escore zero (mediana =
0,38; EUA= 0,28). América Latina e Europa do Leste exibem os maiores escores.
São dois os achados principais da pesquisa.
O primeiro, contra intuitivo: a correlação entre imunidade e renda per capita
ou nível de democracia é próxima de zero. O segundo: há robusta associação
positiva entre imunidade formal e corrupção.
Os autores levam em conta fatores como tradição
legal, regras eleitorais, sistema de governo etc. E calcularam índices
históricos de imunidade e de corrupção desde o século 19 para eliminar
problemas de endogeneidade na estimação do modelo (políticos corruptos têm
incentivos eles próprios para aprovar dispositivos de imunidade cada vez mais
fortes).
A imunidade formal é crucial nos processos
de transição e consolidação das democracias, mas degeneram ao longo processo em
arranjos que estimulam a corrupção e outras formas de abuso de prerrogativas.
Assim, o sonho paraguaio de imunidade
vitalícia é o canto das sereias de autocratas.
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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