O Globo
Depois de dois anos de pandemia, trabalho
remoto e escritórios vazios, não parece coincidência duas séries excelentes
retratarem o lado surreal do mundo corporativo.
“Severance”, criada por Dan Erickson e
produzida por Ben Stiller, é uma obra-prima distópica tão estranha quanto
imperdível. Uma empresa fictícia, Lumon, cria uma tecnologia que permite ao
funcionário separar a vida particular do trabalho, literalmente. Um chip
implantado na cabeça dos funcionários divide a consciência em duas, eles não
lembram nada da vida pessoal enquanto no escritório e, quando fora, não
recordam o que aconteceu no trabalho.
Os personagens principais são quatro funcionários trabalhando em cubículos apertados no centro de uma enorme sala vazia. Passam o dia digitando números sem sentido, falando abobrinhas sobre a vida do escritório, ganhando incentivos inúteis ao superar metas invisíveis, supervisionados por um chefe de sorriso branco e frio como uma lâmpada fluorescente numa mistura de terror com a mais fina ironia.
“WeCrashed”, com Jared Leto e Anne
Hathaway, conta a história real de Adam Neumann e da criação da WeWork, a
bilionária startup que aluga salas e escritórios para outras startups, surfando
na onda da economia compartilhada. Os sócios e seus funcionários passam o dia
venerando a divindade suprema do mundo digital: o unicórnio e os bilhões que
ele simboliza. Depois de um início avassalador, Neumann termina soterrado pela
própria megalomania ao ser expulso pelos investidores da empresa que fundou.
Ele e sua mulher, Rebekah, uma espécie de guru da banalidade, transformam
clichês de autoajuda em missão corporativa: “Nosso objetivo é elevar a
consciência mundial”; “faça o que ama, e ganhe o jogo da vida”.
Ambas as séries são retratos caricatos de
um tipo de cultura corporativa onde as empresas se confundem com cultos. Os
acionistas como sacerdotes, os funcionários como fiéis.
As citações dos fundadores da Lumon em
“Severance” soam como escrituras de uma seita oculta, enquanto em “WeCrashed”
os funcionários da WeWork se fantasiam dançando música eletrônica por alguns
minutos durante o dia, para logo depois voltarem ao trabalho. Irreverência e
alegria são o DNA da companhia, desde que seja no horário marcado.
A WeWork é apenas uma das empresas de
tecnologia que adotaram o conceito de trabalho total. Em nome da produtividade,
criaram espaços onde os limites da vida pessoal e do trabalho se confundem:
restaurantes, lavanderia, creche, academia, salas de vídeo games, cafés, bares,
quartos para dormir depois de uma jornada longa, tudo em troca da dedicação
total à empresa e de que os funcionários abracem os objetivos dos acionistas
como se fossem os deles.
Um dos efeitos da pandemia foi expor quanto
de “cocô de touro”, expressão americana para papo furado, existe no mundo
corporativo. Missões e visões genéricas com propósitos e valores tão parecidos
que poderiam ser usados por qualquer empresa de qualquer segmento soam vazias
num mundo pós-Covid, onde os compromissos reais com a qualidade de vida dos
consumidores e funcionários é o que realmente importa.
Quem teve o privilégio de poder trabalhar
remotamente percebeu ser possível ter uma vida produtiva fora de um escritório
tão moderno quanto estéril, com iluminação hospitalar, centenas de mesas
idênticas, muito vidro e nenhuma janela. Qual o sentido das horas perdidas no
trânsito, em ônibus e metrôs apertados, do guarda-roupa sisudo de trabalho, do
almoço rápido de qualidade discutível e das reuniões intermináveis? A presença
física de todos os funcionários nos escritórios das 9 às 5 se tornou
irrelevante como medida de eficiência e produtividade. Está na hora de o como,
o quando e o onde trabalhar deixarem de ser definidos apenas pelo andar de
cima.
Quem sabe o vírus seja responsável por uma
mudança na consciência coletiva sobre o significado, o valor e a qualidade do
trabalho. Longe das baboseiras corporativas que “Severance” e “WeCrashed”
escracham tão bem, as empresas terão de aprender a respeitar individualidades,
flexibilizando horários, regras e códigos. Será como abrir todas as janelas
renovando o ar viciado dos escritórios, o que depois de uma pandemia faz todo o
sentido.
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