domingo, 2 de abril de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Reforma do ensino médio precisa de ajuste para vingar

O Globo

Mas seria um retrocesso revogar a mudança que impõe o ensino integral e cria formações específicas

O debate sobre o novo ensino médio precisa se libertar da estreita camisa de força a que está preso. Dois grupos têm sobressaído. De um lado, os responsáveis pela lei de 2017 que determinou a ampliação da carga horária e a reformulação do currículo defendem que ela fique como está. No campo oposto, sindicatos e organizações estudantis, insufladas por partidos de extrema esquerda, defendem a revogação e fazem barulho nas redes sociais. Ambos estão errados.

A reforma determina que os alunos passem a ter um currículo dividido em dois blocos. O primeiro com matérias básicas, como português e matemática. O segundo, chamado itinerário formativo, com disciplinas de formação técnica, profissional ou programas interdisciplinares para aprofundar o conhecimento. Nos três anos, a formação básica ficou com uma carga máxima estipulada em 1.800 horas de aula.

Dois problemas surgiram quando a lei começou a ser implementada. Primeiro: com a expansão da carga horária, os itinerários formativos acabaram ficando em algumas escolas com uma grande proporção da carga horária. Preocupados com o vestibular, alunos têm protestado com razão. Segundo: ainda que bem-intencionada, a estrutura desses itinerários formativos ficou demasiadamente flexível, dando margem ao surgimento até de cursos para fazer brigadeiro.

A primeira mudança necessária é determinar que as 1.800 horas sejam o piso alocado para as disciplinas, não o teto, de modo que os alunos recebam a formação básica essencial. Nada disso pode ser feito sem mexer na lei, portanto não se trata apenas de uma dificuldade de implementação, como defende o primeiro grupo.

Mas revogar a lei, como quer o segundo, seria ainda pior. O aumento da carga horária e a reformulação curricular são conquistas tardias do Brasil. A escola em tempo integral, novidade por aqui, é padrão nos países com os melhores sistemas de educação. Revogar o que foi feito seria um retrocesso.

Há décadas o desempenho dos alunos do 3º ano é sofrível. A pontuação média nas provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) está estagnada desde 2001. Os estudantes com nível adequado não passam de 10% em matemática e de 30% em português. “Existem dificuldades na execução. A inépcia do governo Bolsonaro e o período da pandemia atrapalharam. Mas, para que a essência da reforma se torne realidade, deve haver mudanças substanciais”, diz Olavo Nogueira Filho, diretor executivo da ONG Todos Pela Educação.

O Ministério da Educação precisa determinar com mais rigidez os itinerários formativos. Noutra frente, o governo federal tem de aumentar o apoio aos estados para que prestem mais ajuda aos professores, formados para atuar numa escola distinta da necessária para o novo ensino médio. É preciso ainda promover mudanças profundas na formação inicial e reforçar programas de atualização continuada, diz o economista Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco, voltado para o ensino médio, e colunista do GLOBO.

MEC e governos estaduais têm de encarar os desafios juntos. Nenhum país adotou um novo currículo no ensino médio apenas quando os professores estavam treinados e a infraestrutura pronta. Ajustes em reformas são normais. O Brasil precisa acelerar.

Só pode haver mudança em juros do BNDES sem subsídio do Tesouro

O Globo

Política de reindustrialização precisa evitar erros do passado e respeitar novos limites fiscais

À frente do BNDES, o economista Aloizio Mercadante reivindica a missão de reindustrializar o país. Entre as ideias em discussão está a revisão da Taxa de Longo Prazo (TLP), que sucedeu à antiga Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), para transformá-la num “leque de taxas” que atenda diferentes setores. Enquanto a TJLP era subsidiada pelo Tesouro segundo critérios que favoreciam grupos empresariais próximos ao governo — os “campeões nacionais” —, a TLP é calculada com base na inflação e na variação de títulos públicos. É das taxas mais baixas do mercado, mas volátil. “Num mês é um valor, no outro mês outro valor”, diz o diretor de Desenvolvimento Produtivo, Comércio Exterior e Inovação do BNDES, José Gordon. “Para o fluxo de caixa do empresário, isso é horrível.”

As mudanças deverão ser apresentadas na forma de Projeto de Lei, com o objetivo de favorecer setores exportadores como aeronaves, bens de capital e indústria automotiva. Não é um acaso que a Fiesp tenha ficado embevecida diante do anúncio. É preciso o máximo de cuidado, porém, para evitar ressuscitar os programas de crédito subsidiado e outras facilidades que os governos do PT distribuíram no passado como se não houvesse amanhã, abrindo um rombo inédito nas contas públicas. Havia, e o desfecho foi a mistura de inflação e recessão em 2015 e 2016, além do buraco fiscal aberto até hoje.

Com as contas públicas no vermelho e a promessa de zerar em 2024 o déficit primário estimado em R$ 230 bilhões para este ano, não há margem para Mercadante recriar variantes da TJLP com dinheiro do contribuinte. A farra animada pela taxa de juros negativa acabou em 2017. A própria ata da última reunião do Copom destaca a importância de que “a concessão de crédito, público e privado, se mantenha com taxas competitivas e sensíveis à taxa básica de juros [a Selic]”.

Subsídios no crédito para uns, como nos tempos da TJLP, certamente acarretarão maior aperto monetário para todos. Não há mágica. Com o fim da TJLP, o dinheiro antes destinado a subsidiá-la passou a fazer o caminho inverso: voltou ao caixa do Tesouro, reduzindo o endividamento público e permitindo a queda dos juros até 2%. Preocupa que Mercadante tenha, como presidente do BNDES, criticado a devolução pelo banco de R$ 873 bilhões nos governos Temer e Bolsonaro.

O momento não é propício para o novo BNDES desejar qualquer ajuda do Tesouro, muito menos para fazer alquimias com a TLP. O governo se prepara para enfrentar a aprovação do novo arcabouço fiscal no Congresso e precisa ser convincente no compromisso com a saúde das contas públicas. O Tesouro voltar a subsidiar os empréstimos do BNDES seria um contrassenso.

O governo evita falar em relançar a TJLP. O importante é as mudanças garantirem que, se houver subsídios, eles saiam do caixa do próprio banco. A intenção de reduzir a volatilidade é meritória, desde que atenda à necessidade de conter os gastos e a expansão da dívida pública. Sem isso, qualquer política de governo, inclusive a reindustrialização, não terá nenhum futuro.

Fio da navalha

Folha de S. Paulo

Como Bolsonaro, Lula inicia mandato sem farta popularidade, mostra Datafolha

O republicano Donald Trump foi o presidente dos Estados Unidos mais mal avaliado pela população desde o final da 2ª Guerra Mundial. Seu sucessor, o democrata Joe Biden, arrisca-se a ser ele o detentor da marca ao fim do governo.

Um quadro parecido se insinua no Brasil, a julgar pelos mais recentes números da popularidade presidencial divulgados pelo Datafolha. Foi-se o tempo em que uma ampla boa vontade acerca do governante no início do primeiro mandato prevalecia na opinião pública.

Três meses após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 38% consideram ótima ou boa a sua gestão, 30% a avaliam como regular, e 29% a qualificam de ruim ou péssima.

A foto final do primeiro trimestre revela-se apenas um pouco melhor que a de seu antecessor. Na mesma etapa, em 2019, Jair Bolsonaro, então no PSL, era aprovado por 32% dos brasileiros aptos a votar, e suas taxas de ruim/péssimo (30%) e de regular (33%) eram equivalentes às que o petista obtém hoje.

Ter diante de si reprovação inicial próxima do terço do eleitorado, como ocorreu com Bolsonaro e se repete com Lula, é uma anomalia num primeiro mandato. Antes da dupla, Fernando Collor foi o que granjeou mais antipatia, ainda assim com 19% de ruim ou péssimo.

Ninguém deveria ficar surpreso, no entanto, pelo resultado da pesquisa. Ele reflete, no plano imediato, o disputadíssimo certame eleitoral de 2022 e, no mais longínquo, as rivalidades crescentes que arrebatam expressivas parcelas da sociedade brasileira desde pelo menos os movimentos de rua de 2013.

Bolsonaro, como Trump, preferiu alimentar a hidra do sectarismo durante o mandato, o que nesse ambiente conflagrado oferece compensações de curto prazo ao líder narcisista. Colheu o mesmo fruto apodrecido de seu homólogo norte-americano: a derrota nas urnas e a associação a uma sublevação que depredou prédios públicos.

Com a vantagem de ter assistido de fora ao desastre bolsonarista, e o lastro de uma experiência sem par na política brasileira, o presidente Lula tem a oportunidade de trilhar um rumo diferente, que agregue em vez de dividir.

O começo deixou a desejar. Lula abraçou-se a velharias ideológicas, em especial no terreno crucial da economia, e afastou aliados e eleitores que acreditaram na promessa de uma "frente ampla".

Há tempo, claro, de corrigir a rota. Falar e governar tão somente para o segmento mais simpático e ideologizado não trará resultado diferente do que obteve Bolsonaro, acossado pela impopularidade durante todo o mandato.

Abaixo da superfície da divisão, há um país unido na expectativa de retomar a via para a prosperidade econômica com justiça social.

Remédio e veneno

Folha de S. Paulo

Opioides aliviam dor, mas devem ser controlados por causarem dependência e morte

Para o senso comum, drogas são substâncias psicoativas danosas proibidas por lei. Contudo, no glossário da Organização Mundial da Saúde (OMS), o termo refere-se a qualquer agente que altere processos bioquímicos e fisiológicos de tecidos ou órgãos, capaz inclusive de tratar ou curar doenças.

Assim, drogas hoje ilegais já foram vendidas em farmácias no passado, como a cocaína e a maconha. Atualmente, há remédios receitados por médicos que são controlados, pois podem causar dependência química e até a morte, como os calmantes (benzodiazepínicos) e os analgésicos opioides.

Estes últimos estão no centro de uma grave crise de saúde pública nos EUA. Com o alto índice de prescrição indiscriminada para tratamento de dores, muitos pacientes ficam dependentes e buscam o tráfico para ter acesso às drogas.

Outro opioide que vem preocupando autoridades americanas é o fentanil, anestésico de uso restrito hospitalar que é 50 vezes mais potente do que a heroína. No final do ano passado, o órgão oficial de controle interceptou 379 milhões de doses da sustância —dois miligramas do opioide seriam suficientes para causar morte.

O problema aterrissou no Brasil em fevereiro, quando a Polícia Civil fez a primeira apreensão de fentanil, no Espírito Santo. Foram encontradas 31 ampolas que seriam usadas para intensificar o efeito de drogas como ecstasy e cocaína.

Nos EUA, o mercado ilegal de fentanil é abastecido pela produção de cartéis mexicanos. Aqui, o material obtido na primeira apreensão veio de uma indústria farmacêutica de Minas Gerais.

O poder público deve ficar atento ao consumo de opioides, seja por meio da medicina ou do tráfico.

Entre 2012 e 2018, a venda prescrita de analgésicos a base de ópio cresceu 465%, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Pesquisa da Fiocruz de 2019 mostrou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal (sem prescrição) de opioide, o que representa 2,9% da população —o triplo do índice de pessoas que já usaram crack (0,9%).

O debate sobre a descriminalização das drogas vem crescendo em todo mundo. Trata-se de causa justa e amparada na ciência. Mas descriminalizar não implica liberdade irrestrita. Cada droga deve ser tratada pelas suas especificidades químicas, usos e consequências. No caso dos potentes opioides, é preciso regulação e controle rígido.

Distorção da ideia de democracia

O Estado de S. Paulo.

Tornou-se comum qualificar como ‘antidemocrática’ qualquer medida da qual se discorda, mesmo se democraticamente aprovada; defender a democracia é defender a institucionalidade

Tem sido frequente o uso da noção de democracia para fins bem pouco democráticos. Trata-se de manipulação perigosa, que distorce noções fundamentais do Estado Democrático de Direito. A democracia não é uma ideia vaga, disponível para a utilização nas mais diversas finalidades, como cada um bem entender. O regime democrático tem uma configuração concreta, estabelecida na Constituição e na legislação vigente, que vai muito além dos desejos e interesses particulares de quem quer que seja. Defender a democracia é respeitar, acima das idiossincrasias pessoais e políticas, esse conjunto de normas e instituições que integram o regime democrático.

Recentemente, por exemplo, o presidente da Câmara acusou de antidemocráticas as comissões mistas para análise das medidas provisórias (MPs). Previstas na Constituição, elas asseguram o trabalho conjunto da Câmara e do Senado sobre esses atos do Executivo. São perfeitamente democráticas. Foram o modo concreto que o legislador constituinte estabeleceu para que as MPs sejam apreciadas, sem nenhuma distinção de precedência, pelas duas Casas legislativas.

No entanto, ao determinar que as emendas às MPs devem ser apresentadas na comissão mista, esse rito constitucional contraria os interesses do presidente da Câmara, que resiste à sua implementação. A história é escandalosa. Além de desobedecer à Constituição, Arthur Lira utiliza sua discordância pessoal como motivo para chamar tais comissões de antidemocráticas. Há um problema grave quando o presidente da Câmara recorre a esse tipo de confusão.

Mas Arthur Lira não está sozinho. O PT também costuma fazer uso distorcido do conceito de democracia. Quando a legenda não concorda com a solução aprovada democraticamente pelo Congresso, é comum que a desqualifique, tachando-a de antidemocrática. Esse uso manipulador do termo foi visto recentemente nas discussões sobre a independência do Banco Central, o novo marco do saneamento básico e a reforma trabalhista de 2017.

O regime democrático tem como parte essencial a existência de diversas opções legítimas. O papel dos representantes eleitos pelo voto da população é justamente decidir qual solução política escolher. Se houvesse somente um único caminho democrático entre as propostas possíveis, a rigor não haveria necessidade de Congresso. Por isso, é preciso advertir com veemência: não há nada de democrático em manifestar oposição à opção vencedora chamando-a de antidemocrática, simplesmente porque a votação contrariou seus interesses.

Esse erro foi muito visto no governo passado. Tome-se, como exemplo, o modo como o bolsonarismo lidou com a derrota no Congresso da PEC do Voto Impresso. Em vez de aceitarem o resultado do voto dos parlamentares, que rejeitaram a proposta, Jair Bolsonaro e seus seguidores tomaram caminho inverso, numa defesa cada vez mais explícita de que democracia seria exclusivamente a implementação de suas ideias. Se não fosse feito da forma como eles queriam, o sistema não seria democrático.

Mostrando que nada tem de inofensiva, tal atitude desembocou diretamente nas manifestações bolsonaristas em frente aos quartéis depois das eleições e nos atos do 8 de Janeiro. As mensagens e publicações dessa turma eram explícitas: democracia seria apenas a realização do que eles pensam e desejam.

Democracia é coisa séria. É pretensioso e perigoso usar a noção de democracia como forma de dar respaldo às ideias políticas próprias. Uma abordagem assim estaria mais próxima do autoritarismo – da imposição de determinada concepção política – do que do regime democrático. Não existe uma única solução democrática. A solução democrática será aquela escolhida pelos representantes da população, por meio das vias institucionais.

Para que se fortaleça, a democracia precisa estar alicerçada não em ideias fluidas, mas no respeito aos caminhos institucionais. Nesses tempos confusos, um pouco mais de respeito à República – efetivo respeito à lei, em todos os âmbitos – é o meio de defesa e proteção da democracia mais seguro e eficaz.

Indignação, engajamento e lucidez

O Estado de S. Paulo.

Ampliar gastos com políticas sociais e de desenvolvimento sem corrigir suas distorções e sem melhorar sua qualidade só perpetuará a miséria e a desigualdade que envergonham o País

A educação, diz a Constituição, é direito de todos e dever do Estado. Mas o abismo entre a norma e a realidade ganhou face em uma reportagem do Globo Rural na comunidade quilombola Kalunga, no Tocantins, onde 60 alunos, do infantil ao fundamental, se espremem num casebre de taipa. Por falta de salas e banheiros, é comum estudarem e defecarem ao relento. O drama desses descendentes de escravos ecoa o dos indígenas Yanomamis desnutridos, doentes, acossados por criminosos. Por vezes os holofotes da mídia flagram a tragédia desses cidadãos de “segunda classe”, violentados pela fome, pelo crime, pela falta (ou pela destruição em deslizamentos) de um teto ou esgoto. É preciso inflamar a indignação. Essas não são catástrofes “naturais”, mas causadas por mãos humanas, ou pela falta delas. E não são um destino. Povos hoje modelos de desenvolvimento, como os escandinavos ou os tigres asiáticos, eram há poucas gerações pobres e ignorantes.

Mas, se a indignação se reduz à multiplicação de expletivos, o risco é apaziguar subjetivamente o senso de injustiça sem fazer nada para objetivamente repará-la. Numa dialética perversa, esse tipo de inconformismo acentua tensões, mas consolida a conformidade. Se o Brasil se quer digno, é preciso se envergonhar. Mas, se quer que essa vergonha seja produtiva, é preciso se engajar. E, se quer que esse engajamento seja eficaz, é preciso raciocinar.

O PT, por exemplo, se elegeu agora denunciando toda essa miséria. Mas o PT esteve no poder por 14 anos. Caracteristicamente, ele alardeia que a solução é lhe dar mais poder para controlar a sociedade e o Estado e mais dinheiro para políticas públicas. Mas, caracteristicamente, não há autocrítica ou revisão dessas políticas. Se fórmulas fabricadas pelo marketing, como a volta da “picanha e cerveja” ou a “inclusão do pobre no orçamento”, têm tanto apelo, é por diagnosticarem males reais: a erosão da renda e a exclusão social. Mas que dizer dos remédios? Sua proposta para reduzir a desigualdade e promover o desenvolvimento é mais do mesmo: ampliar despesas – seja via aumento de impostos, da dívida pública ou da inflação – para distribuí-las a consumidores, via transferências de renda, e a produtores, via subsídios. Estatísticas do FMI, porém, indicam que só o gasto com “proteção social” no Brasil (14,3% do PIB) está entre os maiores do mundo, próximo ao da Espanha (15,8%) ou da Noruega (15,6%). Ou seja: o problema é menos de quantidade que de qualidade.

A Previdência, por exemplo, representa 70% dos gastos sociais, mas beneficia, sobretudo, a classe média e os servidores. As universidades federais consomem a maioria dos recursos da União para educação, mas beneficiam universitários ricos. Benefícios fiscais privilegiam corporações improdutivas. Leis tributárias e trabalhistas distorcem e desencorajam investimentos. Custos crescentes de um funcionalismo infenso a metas de desempenho comprimem investimentos públicos e gastos sociais. O capital humano, o principal motor da igualdade, se degrada a olhos vistos.

O economista Armínio Fraga demonstrou que só reformas para eliminar privilégios e regressividades no serviço público, Previdência e subsídios economizariam 3% do PIB cada – 9% no total. Numa tacada, poderia se reduzir a dívida e os juros, ampliando as condições de crescimento e geração de emprego e renda, e robustecer investimentos de alto retorno social (como infraestrutura e educação) e transferências de renda para os vulneráveis. Isso, sim, incluiria o pobre no orçamento.

Mas o governo não mostra interesse em atacar estas disfunções, só em abastecê-las com mais “licenças para gastar”. Aqui uma indignação engajada e lúcida se faz necessária. Debates fiscais (sobre o tamanho do Estado) ou administrativos (sobre sua eficiência) parecem abstratos, e, em tese, as ambições do governo de reproduzir as mesmas políticas ampliando suas despesas servem aos “pobres”. Na prática e concretamente, a manutenção deste status quo é a maior responsável por perpetuar a miséria de crianças quilombolas, indígenas e faveladas.

Um pequeno passo civilizatório

O Estado de S. Paulo.

Fim da prisão especial é bom, mas não basta: é preciso que todos os presos tenham tratamento humano

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que é inconstitucional a previsão de prisão especial para quem tem diploma de ensino superior. A correta decisão do STF não deve causar estranheza, haja vista que a igualdade de todos perante a lei, princípio basilar da República, está no caput do artigo 5.º da Constituição de 1988. Surpreendente é a demora para que o caso de uma flagrante inconstitucionalidade chegasse à Corte e, uma vez lá, levasse oito anos para ser julgado.

Evidente que o artigo 295, inciso VII, do Código de Processo Penal, de 1941, não fora recepcionado, como se diz, pela Constituição de 1988. O privilégio era entulho de um país que ficou no passado, cujo culto ao bacharelismo era apenas uma das manifestações de seu atraso. Essa distinção, como outras com o objetivo de atribuir certa superioridade a cidadãos ou grupos em detrimento de outros, há muito tempo já não tinha lugar no Brasil do século 21, que se pretende mais justo, desenvolvido e civilizado.

O ministro Alexandre de Moraes, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 334, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República em 2015, foi taxativo ao afirmar que “não há justificativa razoável, com fundamento na Constituição, para a distinção do tratamento (dado aos presos) com base no grau de instrução acadêmica”.

Na República, de fato, privilégios de qualquer natureza são inconcebíveis. A prisão especial para diplomados em curso superior se afigurava como uma distinção social incompatível com o regime republicano. Era uma daquelas expressões de um Brasil que segrega seus nacionais por critérios arbitrários, como se uns fossem mais cidadãos do que outros. Portanto, ainda que com grande atraso, fez bem o STF em acabar com essa regalia – ao menos do ponto de vista formal.

Sem ingenuidade, o fato de o STF acabar com a prisão especial para quem tem diploma superior não muda a realidade. Todos sabem, particularmente os ministros da Corte, que prisões Brasil afora são verdadeiros depósitos de gente submetida a toda sorte de abusos. O próprio STF reconheceu, em 2015, que a situação prisional no País é “um estado de coisas inconstitucional”. Nesse desumano sistema carcerário, é recorrente a violação massiva de direitos fundamentais dos presos, principalmente pela omissão do poder público.

A sociedade – parte da qual confunde justiça com vingança e considera que o sofrimento em cadeias pútridas e superlotadas seja parte da pena – pouco pressiona por mudanças desse quadro terrível. No entanto, presídios superlotados e presos submetidos a condições subumanas são usinas de ódio e violência que acabam se voltando contra essa mesma sociedade que insiste em olhar de lado.

Eis a questão de fundo. Não pode haver qualquer tipo de distinção de tratamento a todos que, eventualmente, passam pelo infortúnio de ter de ser recolhidos à prisão. O Estado tem o dever de garantir condições igualmente dignas para todos. Não se trata de benevolência. É, antes, o cumprimento das leis e da Constituição.

 

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