Folha de S. Paulo
Disse Rumi, poeta persa: 'Já que todos
somos um, falemos de outro modo'
"Ninguém fala para si mesmo em voz
alta. Já que todos somos um, falemos de outro modo."
Essa exortação atualíssima parte de Rumi,
poeta e teólogo sufi persa do século 13, um místico cuja importância transcende
fronteiras.
São palavras adequadas aos ouvidos de Lula,
sobrecheios de desconfortos passados e presentes, capazes de perturbar
consciência e linguagem.
O poeta recomenda: "Eleve suas
palavras, não sua voz / É a chuva que faz florescer, não o trovão".
Isso vem a propósito de reprováveis tropeços verbais do presidente no espaço público. Ainda que esse espaço esteja contaminado pela efemeridade das redes e sua aversão à civilidade, espera-se de alguém eleito pelo voto de renormalização institucional um esforço de continência de atitude e de linguagem.
Mas se compreende que seja difícil. Até
mesmo um negociador natural está sujeito às flutuações humorais ocasionadas por
pressões externas como os bastidores da pequena política e a demagogia de ratos
que rugem. Daí o escorregão, a fala atabalhoada de quem tenta "curar a
mordida com o pelo do mesmo cão". Mas é tão patética a bajulação
encobridora do erro quanto pintá-lo como "vingador" ou sugerir
blindá-lo de si próprio.
O fato é que, frente às ruínas do
desgoverno passado, o presidente levanta a bandeira de reconstrução do país em
meio ao fisiologismo de um Parlamento totalmente alheio à realidade nacional, à
arrogância da tecnocracia financeira e ao atraso jurássico das guardas
palacianas. Extubar a nação, fazê-la
novamente respirar, é a conquista deste início de governo. E já é um grande
feito.
Ao revés da boca espumante da crítica
bolorenta, Lula não é a sombra positiva do inominável, ou seja, não é um
populista de esquerda. Veio do povo, estabeleceu programas de alívio econômico
da miséria, mas sua fixação ideológica é a classe média consumidora. Populismo
não lhe serve de carapuça particular, e o esquerdismo é, digamos, uma meia-máscara,
a suposição de uma identidade política oscilante entre o centro e a diversidade
democrática dos movimentos civis.
O grego antigo referia-se ao mito de Poros,
mais do que símbolo de riqueza, como força dinâmica aproveitada pela pobre
Penia para gerar Eros, amor. Lula sinalizou a abertura de caminhos populares
num país onde se aproximar do povo é conotado como associação ao crime. Como
Poros, foi recurso oportuno para o que os pobres viam como possibilidade: no
desespero, grita-se pelo possível.
O tempo mudou, ele menos, mas persiste o
desejo coletivo de florescimento, de que dois mundos em desacordo sejam vistos
como um só, "já que todos somos um".
Isso, como diz Rumi, acontece com água, não
com trovões.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô"
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