O Globo
O momento atual parece excelente para
também no Brasil o jornalismo profissional se repensar de ponta-cabeça
Na semana passada apoiadores do diário
britânico The Guardian encontraram um comunicado incomum em suas caixas postais
eletrônicas. Assinado pela editora-chefe Katharine Viner, o anúncio informava o
resultado de uma investigação de dois anos encomendada a um plantel de
eminentes acadêmicos do país. No relatório final, intitulado “Legado e
escravização”, o grupo independente concluíra que, sim, o Manchester Guardian
(nome original do jornal até 1951) dependera de trabalho escravo em seu
nascedouro.
Para o jornal bicentenário, zeloso de sua
independência editorial e financeira, foi uma questão de coerência moral ir até
o fundo de suas raízes.
Como se sabe, o Guardian não é um matutino qualquer. Ocupa lugar bastante solitário entre as grandes mídias tradicionais de países democráticos. É regido há quase nove décadas por um truste sem fim lucrativo, criado em testamento pelo visionário C.P. Scott, seu mais longevo proprietário e editor. Cabe ao Scott Trust, formado por um conselho de oito integrantes (jornalistas, executivos e representantes externos), financiar o jornal — basicamente por meio dos dividendos gerados por seus investimentos. A ideia central do arranjo está em proteger o jornal de interferências políticas e comerciais. Apesar de sofrer prejuízos marcantes, como boa parte da mídia no mundo todo, o Guardian procura honrar esse compromisso. Isso envolve não só cobrir o presente e olhar para o futuro, como fuçar o próprio passado.
O relatório divulgado na semana passada
revelou que a fortuna do fundador do jornal, John Edward Taylor, em 1821, assim
como a de nove dos seus 11 financiadores, derivou em boa parte da indústria
algodoeira de Manchester, cuja matéria-prima vinha de plantações do outro lado
do Atlântico, nas Américas. Justamente onde trabalhavam os milhões de negros
traficados da África. Um dos financiadores do jornal não apenas comerciava o
algodão cru d’além-mar, como era dono de uma plantação de açúcar na Jamaica com
122 negros escravizados. Seria, portanto, difícil não concluir que esses
interesses tenham influído na política editorial do matutino, à época. Em
episódio de 1833, para citar um só exemplo, quando os donos desses escravizados
exigiram uma indenização polpuda para abrir mão de sua “propriedade humana”, o
editorial do Guardian posicionou-se a favor do pleito.
— O preço da carne humana do Mississipi era
regulado pelo preço do algodão em Manchester — já constatara o grande
abolicionista americano Frederick Douglass, que testou como poucos a base
constitucional da escravidão nos Estados
Unidos.
Por que então o jornal investiu em
escavação tão funda de sua história? Porque o Guardian é o Guardian. O fato de
aqueles tempos serem outros não pode servir de desculpa para um crime contra a
humanidade, explica a editora-chefe de hoje.
Foi justamente um pedido de desculpas
formal que a fundação do Guardian divulgou com o relatório, acompanhado do
anúncio de ações de justiça reparadora. Serão mais de £ 10 milhões (perto de R$
62,5 milhões) em programas na Jamaica e alhures. Dado o papel crucial da
escravidão para a persistência do racismo e das desigualdades sociais de hoje,
o Guardian se compromete a encarar esse abismo.
— Acredito que diversidade é um imperativo
tanto moral quanto prático para uma organização de mídia — escreveu Katharine
Viner. Ela se socorreu também em James Baldwin:
— Nem tudo o que encaramos pode ser mudado,
mas nada pode ser mudado até que seja encarado. No Reino Unido,
negros representam apenas 0,2% dos jornalistas em atividade, enquanto somam 3%
da população do país.
E no país que recebeu o maior fluxo
escravagista de negros da África? Nas redações deste Brasil em que 56% da
população se declara negra ou parda, a mesma representatividade despenca para
tímidos 20% entre os profissionais de jornalismo. Como conciliar tamanho
distanciamento social com um jornalismo que precisa injetar confiança e
confiabilidade em seus leitores?
Esse contrato não escrito com a sociedade,
por parte de uma imprensa madura, exige determinação para exumar o passado,
clareza para analisar o presente e imaginação para apontar o amanhã. O Guardian
está tentando. O momento atual parece excelente para também aqui o jornalismo
profissional se repensar de ponta-cabeça. Começando pelo próprio umbigo. O
Brasil é tão maior, mais rico, mais diverso, mais esperançoso e mais adulto do
que nós, jornalistas da assim chamada “grande imprensa”, conseguimos ver!
Melhor abrir o olho.
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