É acertada a restrição a armas e munições
O Globo
Pacote de segurança cumpre várias promessas
de campanha, mas arsenal existente ainda preocupa
O pacote de segurança anunciado ontem pelo
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva é coerente com os discursos de campanha — em que prometeu acabar com a
farra das armas perpetrada durante a gestão Jair Bolsonaro — e com a realidade
de um país que registrou no ano passado 47.508 mortes violentas, a grande
maioria por armas de fogo. A maior restrição a compra, posse e porte de armas
era o que se esperava do atual governo.
Por mais que desagrade à bancada da bala, aos clubes de tiro, ao grupo de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs) e aos incentivadores do armamentismo, é acertada a decisão de proibir a compra de pistolas 9mm, .40 e .45 ACP por cidadãos comuns — elas estarão liberadas para forças de segurança. Sempre foram restritas, até Bolsonaro instituir o nefasto “liberou geral”. Não há motivo para civis terem esse tipo de arma. A medida gerou impasse entre o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, favorável à restrição, e o ministro da Defesa, José Múcio, que defendia a liberação. Felizmente, prevaleceu o bom senso. Essas armas altamente letais têm a capacidade de atravessar o corpo de uma pessoa e atingir uma outra. Lamentavelmente, quem já as possui poderá permanecer com elas.
Há muitos aspectos positivos na nova
legislação, como restrição a armamentos de guerra, maior rigor com clubes de
tiro (não poderão funcionar 24 horas e terão de ficar a mais de 1 quilômetro de
escolas), obrigatoriedade de CACs transitarem com armas sem munição, criação de
uma estrutura para combater o crime organizado na Amazônia — região que se
tornou uma terra sem lei — e limitação da quantidade para compra de armas e
munição.
A partir de agora, o cidadão comum só
poderá adquirir duas armas e 50 munições por ano. Antes, estavam liberadas até
quatro armas e 200 munições por ano. A permissividade na compra de armamento
tem levado criminosos a usar licenças legais para adquirir armas e enviá-las a
traficantes e milicianos.
O governo faz bem também em buscar um maior
controle do arsenal. A competência para fiscalizar as armas da população civil
passará do Exército (a quem cabia exclusivamente a tarefa) para a Polícia
Federal. Para isso, foi feito um acordo entre os ministérios da Justiça e da
Defesa. É evidente que o controle realizado até agora não surtia efeito. Um
levantamento feito pela GloboNews mostrou que menos de 3% dos CACs foram
fiscalizados no ano passado.
A decisão de incluir na lista de crimes
hediondos o ataque a escolas pode ser bem-intencionada, mas, evidentemente, não
resolverá o problema. Combater essa chaga que tem trazido dor e perplexidade ao
país exige mais que endurecer a legislação. As autoridades precisam criar
políticas para impedir que os ataques aconteçam. A punição dos responsáveis é
tarefa óbvia, mas a tragédia já estará consumada.
De modo geral, o pacote de segurança acerta
ao restringir o acesso a armas e munições depois do descalabro durante o
governo Bolsonaro. Quanto mais armas em circulação, maiores as chances de tiros
voando para todos os lados. Não se pode esquecer que já existe um arsenal nas
mãos de civis — recadastramento recente revelou quase 1 milhão de armas. É
verdade que o governo anunciou um programa de recompra, mas o resultado ainda é
uma incógnita. O primeiro passo foi dado. Ainda há muito o que fazer.
‘Bônus de produtividade’ no INSS é
paliativo e adia reforma necessária
O Globo
Regras precisam mudar para premiar
servidores que trabalham e punir quem apenas faz de conta
Diante de uma fila de quase 2 milhões de
pessoas à espera de algum benefício previdenciário do INSS,
o governo decidiu pagar um “bônus de produtividade” aos funcionários do instituto,
para que trabalhem além do expediente e atendam um número maior de segurados.
Seria tudo muito lógico e compreensível se esse adicional não fizesse parte do
problema: a existência de uma grande e ineficiente burocracia dentro do Estado
brasileiro, com estabilidade de emprego, salário garantido e sem estímulos para
progredir na carreira.
Ao todo, são 1,8 milhão de requerimentos de
benefícios (aposentadorias e pensões) e de perícias médicas (para incapacitados
ao trabalho em busca de renovação da licença paga pelo INSS) que esperam há
mais de 45 dias por uma resposta. O servidor receberá R$ 68 por tarefa feita
depois do expediente, e os médicos R$ 75 por perícia adicional. A conta desta
vez sairá para o contribuinte por R$ 129 milhões. Pode parecer uma emergência
imprevista, mas não é. A mesma medida já foi tomada nos últimos anos pelo mesmo
motivo.
Os sindicatos gostam de dizer que faltam
funcionários no INSS, mas, sem estudos independentes sobre a produtividade
desses servidores, não há como acreditar. Uma avaliação criteriosa precisaria
ir além da média de requerimentos e perícias médicas realizadas por
funcionário. Seria necessário identificar quem são os que jogam essa média para
baixo. Inatingíveis por estarem protegidos pela estabilidade no emprego, seguem
em marcha lenta. É possível até que muitos esperem pelo bônus, que tende a
fazer parte do orçamento pessoal.
Saída muito melhor seria pagar mais aos
produtivos e demitir quem há anos faz corpo mole. Nas últimas três décadas não
faltaram tentativas de elevar a produtividade do setor público. Na gestão de
Fernando Henrique Cardoso, uma das metas era dotar o Brasil de uma burocracia
pública moderna, regida por regras atualizadas. Não foi adiante.
O país voltaria a perder outra chance no
governo passado, quando foi apresentada ao Congresso uma Proposta de Emenda à
Constituição de aperfeiçoamento das regras dos servidores. As novas normas só
valeriam para os servidores contratados depois da aprovação final da emenda.
Também não seriam alterados os dispositivos que regem a magistratura, o
Legislativo, membros do Ministério Público e militares. A emenda conseguiu
passar pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mas encalhou, sem que
Jair Bolsonaro trabalhasse no Congresso por sua tramitação.
Se e quando um governo resolver trazer o
serviço público brasileiro para o século XXI, já existe ao menos um projeto.
Enquanto isso não acontece, as filas do INSS continuarão a crescer e, de tempos
em tempos, o contribuinte terá de arcar com novo bônus para desemperrar a
máquina pública.
Tentando desenrolar
Folha de S. Paulo
Programa que renegocia dívidas ainda é
incerto e não substitui redução de juros
Um programa para reduzir o endividamento é
ideia antiga, nunca realizada por conta de dificuldades de alinhamento entre
credores e complexidades técnicas.
A primeira tentativa saiu do papel, com
algumas regras pendentes e potencial ainda incerto para reduzir o número de
brasileiros inadimplentes e sem acesso a crédito —eram 71,4 milhões em junho.
Os cinco maiores bancos (Banco do Brasil,
Caixa Econômica Federal, Bradesco, Itaú e Santander) aderiram, assim como um
número considerável de outros menores.
O Desenrola
começou na segunda (17) e vai até o fim do ano. O programa tem
três partes. A primeira é voltada para estrato de baixa renda, estimado em 2,5
milhões de pessoas, com dívidas de até R$ 100.
Os bancos que aderirem ao programa terão
que retirar o nome dos devedores dos birôs de crédito, e não poderão inseri-los
novamente pela mesma dívida. O impacto para as instituições é provavelmente
pequeno e representa um gesto positivo para dar nova chance a quem deve pequena
quantia.
Também está em andamento a segunda fase,
voltada a quem tem renda entre R$ 2.640 e R$ 20 mil. Cerca de 30 milhões de
pessoas poderão ser beneficiadas, com dívidas totais de R$ 50 bilhões. O
incentivo para os bancos neste caso é um crédito presumido equivalente aos
débitos renegociados, o que melhora a posição de capital das instituições e, em
tese, abre espaço para novos financiamentos.
O apetite para a concessão de crédito pode
não ser tão influenciado pelo alívio contábil, pois o limitador hoje é o ambiente
de negócios, não a falta de capital. De todo modo,
com a queda da inadimplência, algum aumento haverá.
A última etapa tem início em setembro.
Pessoas com renda menor que dois salários mínimos (R$ 2.640) poderão negociar
dívidas de até R$ 5.000 (financeiras e não financeiras, excluindo empréstimos
residenciais, rurais e algumas modalidades com garantias).
Os juros são limitados a 1,99% ao mês; e o
capital alocado pelos bancos contará com um fundo garantidor do governo, com
valor inicial de R$ 7,5 bilhões.
O uso de dinheiro público é algo problemático,
pois pode incentivar comportamentos temerários no futuro.
O melhor seria haver uma remuneração, como
um prêmio de seguro, pelo risco incorrido pela União, como é usual no mercado.
Mas o espírito do programa não deixa de ser positivo.
Se bem sucedida, a experiência poderá abrir
espaço para maior inovação adiante. De resto, a iniciativa não substitui a
necessidade de continuado avanço regulatório para reduzir os juros,
intensificar a concorrência e garantir a concessão de crédito responsável.
Agilizar a burocracia
Folha de S. Paulo
Atraso na distribuição de remédios para o
câncer de mama aprofunda desigualdades
Segundo dados do Datasus levantados pela
ONG Todos Juntos Contra o Câncer, parcela considerável dos tumores é detectada
tardiamente no sistema público de saúde brasileiro. Em relação ao câncer de
mama, 57% dos casos
são diagnosticados nos estágios 1 e 2, ante 43% nos 3 e 4, os mais avançados.
Além do risco para a saúde das mulheres, o
atraso gera impactos financeiros, pois uma única sessão de quimioterapia contra
esse tipo de câncer no estágio 1 custa R$ 134,17 aos cofres públicos. Enquanto
na fase 4, a mais evoluída, o valor desse tipo de tratamento salta para R$
809,56.
Por óbvio, é urgente agilizar diagnósticos
para salvar mais vidas, mas também há atrasos na incorporação de novas drogas
pelo SUS. Causa espécie, por exemplo, que o Ministério da Saúde esteja protelando há
cerca de dois anos a distribuição de três remédios inovadores contra o câncer
de mama metastático —aquele nos estágios finais, quando geralmente
a doença se espalha pelo corpo.
O palbociclibe (da farmacêutica Pfizer), o
abemaciclibe (Eli Lilly), e o ribociclibe (Novartis) são medicamentos da classe
dos inibidores de ciclina, uma proteína que atua no processo de reprodução
celular.
Com o bloqueio, quebra-se o ciclo de
crescimento do tumor. O ribociclibe, por exemplo, apresentou redução de até 25%
da recorrência do câncer de mama.
Os remédios são administrados por via oral,
podem ser consumidos em casa, sem afetar a rotina das pacientes, e causam menos
efeitos colaterais do que a quimioterapia.
Há cerca de 600 dias, o Conitec, órgão que
avalia drogas e tecnologias a serem incluídas no SUS, aprovou os medicamentos.
A partir daí, o Ministério da Saúde teria 180 dias para definir a distribuição
pelas redes de saúde pública no país.
Mas, até agora, apenas mulheres que podem
pagar R$ 21 mil por mês para comprar uma caixa com 21 comprimidos ou aquelas
com plano de saúde têm acesso ao tratamento —a Agência Nacional de Saúde
Suplementar incorporou os remédios em 2021.
Inibidores de ciclina aumentam a sobrevida de pacientes —até dez meses a mais do que tratamentos convencionais. É inaceitável que esse tempo seja roubado por inépcia administrativa do Estado. O governo deve agilizar a burocracia para melhorar a qualidade de vida de pacientes e, principalmente, para diminuir desigualdades sociais que grassam na área da saúde.
A imprudência do ministro da Justiça
O Estado de S. Paulo
Flávio Dino tem alimentado a equivocada
impressão de que o Judiciário é uma grande arena política. É preciso respeitar
a inteligência dos cidadãos, sem interpretações oportunistas da lei
O Ministério da Justiça tem papel
fundamental no funcionamento do Estado Democrático de Direito. Responsável, no
âmbito do Executivo federal, pela defesa da ordem jurídica, dos direitos
políticos e das garantias constitucionais, ele tem uma importância histórica e
institucional única, expressa na própria configuração urbanística e
arquitetônica de Brasília, que conferiu posição de destaque ao Palácio da
Justiça Raymundo Faoro, sede do Ministério.
Essa proeminência institucional do
Ministério da Justiça significa uma especial responsabilidade dentro da
administração pública federal e nas relações entre os Poderes. E, sendo assim
sempre, essa dimensão de responsabilidade tem ainda mais relevo nas
circunstâncias atuais, com a forte polarização político-ideológica e a
disseminada incompreensão sobre o papel do Judiciário. O dever do Executivo
federal de trabalhar pela distensão e pacificação nacional envolve ativa e
diretamente o Ministério da Justiça.
Tem-se visto, no entanto, a situação
oposta. Em vez de contribuir para uma compreensão mais serena e técnica dos
temas envolvendo o Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro da Justiça,
Flávio Dino, tem contribuído para acentuar tensões políticas. Sua atuação
recente tem alimentado a equivocada impressão do Judiciário como uma grande
arena político-partidária, na qual o importante seria apoiar os partidários,
não raro à revelia da lei.
Uma coisa é defender o STF dos diferentes
ataques e ameaças que ele sofreu nos últimos anos e que culminaram no 8 de
Janeiro. Outra, bem diferente, é tomar partido imediatamente a respeito de toda
medida decretada pelo Supremo, servindo-se, para tanto, de interpretações
expansivas e, às vezes, manifestamente equivocadas. Para piorar, essa atuação
partidarista, em tom de torcida, é feita nas redes sociais, sem os necessários
matizes, sem as respectivas fundamentações.
Na quinta-feira passada, advertiuse neste
espaço o profundo equívoco, disseminado por Flávio Dino, de enquadrar eventual
agressão contra um ministro do STF e sua família como possível crime contra o
Estado Democrático de Direito (ver A distorção que enfraquece a democracia,
20/7/2023). Misturar a proteção do Estado e a proteção das autoridades
significaria transformar a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei
14.197/2021) numa reedição da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983), e a
lei de 2021 veio justamente revogar a de 1983.
Mas não foi esse o único caso em que, sob
pretexto de defender o STF, o ministro da Justiça abandonou o prudente
distanciamento institucional, envolvendo-se em questões de duvidosa
constitucionalidade. Flávio Dino utilizou sua conta no Twitter para dizer que a
diligência de busca e apreensão na residência da família envolvida em confusão
em Roma com o ministro Alexandre de Moraes “se justifica pelos indícios de
crimes já perpetrados” e que “tais indícios são adensados pela multiplicidade
de versões ofertadas pelos investigados”. E completou: “Sobre a
proporcionalidade da medida, sublinho que passou da hora de naturalizar
absurdos”.
A rigor, as palavras de Flávio Dino em nada
justificam a medida, até porque o inquérito está sob sigilo. Pelo que se sabe
até agora, a busca e a apreensão foram notoriamente desproporcionais. Dessa
forma, em vez de gerar tranquilidade, a manifestação do ministro despertou mais
dúvidas.
Muitas vezes, a melhor defesa que se pode
fazer do Judiciário, especialmente por parte do Executivo federal, é manter-se
distante dos atos judiciais concretos, que podem depois ser revistos e
corrigidos pelo próprio Judiciário. Não faz nenhum sentido um alinhamento
acrítico e automático, que, em tempos de polarização política, desperta ainda
mais desconfianças sobre a Justiça.
A autoridade do STF deve ser fruto da
fundamentação das decisões, e não do apoio do governo de plantão. Precisamente
por seu papel institucional de defesa da ordem jurídica, o Ministério da Justiça
não pode fazer com que sua interpretação da lei esteja em função das cores
políticas dos envolvidos.
Cracolândia não precisa de novos erros
O Estado de S. Paulo
Tarcísio recua da ideia estapafúrdia de
tanger os dependentes para o Bom Retiro, mas preocupa que o governador não
tenha um plano para o problema, como prometeu em campanha
É chocante que o governador de São Paulo,
Tarcísio de Freitas, tenha cogitado “transferir” a Cracolândia de lugar, como
se isso fosse possível. A ideia de mover o chamado “fluxo” de dependentes
químicos da região dos Campos Elíseos para o bairro do Bom Retiro era, por si
só, um disparate. Felizmente o sr. Tarcísio voltou atrás, mas preocupa que o
governador paulista, malgrado ter sido eleito com a promessa de acabar com a
Cracolândia, não tenha um plano elaborado para cumpri-la, limitando-se a
apresentar uma ideia que não passava de conversa. Em suas próprias palavras, o
governador confessou que não sabia se a coisa iria funcionar: “Vamos ver se a
estratégia dá certo. Não sei, é tentativa e erro”.
Ora, já é enorme o acervo de erros
cometidos por sucessivas administrações da capital e do Estado em relação à
Cracolândia. O governador Tarcísio não precisa contribuir com novos. O que se
espera de quem solenemente garantiu que faria diferente dos antecessores nesse
caso é apresentar uma estratégia concreta, baseada nas lições supostamente
aprendidas com os fracassos. Tanger os dependentes para lá e para cá, como se
gado fossem, na esperança de que façam uso dos equipamentos estatais de saúde e
se livrem do vício, é uma rematada sandice.
A Cracolândia, ao contrário do que sugere o
nome, não é um lugar geográfico nem um endereço da cidade. É uma tragédia de
múltiplas e complexas dimensões, que causa impactos sobre a vida não apenas na
capital paulista, mas em todo o Estado – afinal, o crack não brota do concreto
no centro de São Paulo.
A ideia da transferência do “fluxo” não
seria digna de consideração mais séria ainda que fosse só uma ideia errada. Mas
a proposta era bem pior: era leviana. Tal era o descalabro que a mudança nem
sequer foi combinada com a Prefeitura de São Paulo. À imprensa, o prefeito
Ricardo Nunes falou em “mal-entendido” apenas para ser elegante com o
governador.
Definitivamente, a Cracolândia não vai sumir
por dispersão nem deixará de existir por repressão policial apenas – ainda que,
por óbvio, o Estado tenha o dever de combater de forma implacável o crime
organizado que opera na região, particularmente o Primeiro Comando da Capital
(PCC), que há um bom tempo enxergou na desdita física e psíquica dos
dependentes de crack mais um filão para encher os cofres do bando.
Não adianta empurrar o problema da
Cracolândia de bairro em bairro, como se traficantes e dependentes químicos
pudessem ser vencidos pelo cansaço. É inaceitável que a vida de milhares de
paulistanos vire um inferno do dia para a noite simplesmente porque nem o
governo do Estado nem a Prefeitura da capital paulista sabem o que fazer para
pôr fim a uma tragédia social.
Soluções sustentáveis para a Cracolândia
passam, necessariamente, por políticas públicas que combinem repressão policial
ao crime organizado, programas de tratamento médico-psicológico para os
dependentes químicos, acompanhamento social e, não menos importante, atenção
aos muitos dramas subjacentes ao vício, como o desemprego, a falta de moradia e
a violência doméstica, entre outros. Não será com bravatas nem tampouco com
ideias mirabolantes que a Cracolândia vai desaparecer. Passa da hora de um
plano de ação definitivo.
Ainda bem que o governador teve a humildade
de voltar atrás, reconhecendo que a medida, obviamente, não iria funcionar.
“Sou humano. Não tenho problema em corrigir o caminho”, disse Tarcísio. Em sua
defesa, registre-se que poucos são os administradores públicos que têm essa
atitude quando confrontados com os seus erros. O recuo, entretanto, não é
suficiente para aplacar o espanto deste jornal diante do fato, de resto
incontornável, de que Tarcísio, ao fim e ao cabo, mostrou não ter ideia do que
fazer com a Cracolândia, uma ferida aberta no coração da cidade mais rica e
equipada do País há cerca de 30 anos.
Incivilidade brasileira
O Estado de S. Paulo
Pesquisa reafirma o caráter violento do
Brasil e a ineficácia da agenda de segurança pública
O Fórum Nacional de Segurança Pública
(FNSP) sublinha a cada ano o caráter violento da sociedade brasileira e o quão
distante as políticas de governo adotadas até hoje estão de arrefecê-lo. Em
nada muda essa realidade o fato de o mais recente anuário dessa organização,
divulgado anteontem, ter registrado a segunda queda anual consecutiva nos
homicídios em 2022. O total continua gritante. Houve 47.508 assassinatos no
Brasil ou, para tornar o número mais compreensível, uma média de 130 mortes
violentas por dia. O cenário é compatível com o de zonas de guerra.
O Brasil é também terreno onde avançaram os
crimes de estupro, de feminicídio e de estelionato, destaca o anuário da FNSP.
Igualmente é a pátria de uma parcela crescente da população detida em um
sistema carcerário de atroz violação aos direitos humanos e sabidamente incapaz
de preparar os detentos para o retorno à sociedade. Da mesma forma, trata-se de
corredor internacional do narcotráfico consolidado por um crime organizado que
prospera e se profissionaliza.
Divulgado desde 2011, o anuário do FNSP
reproduz a cada ano o mesmo traço comum aos assassinados no Brasil: negros, de
12 a 29 anos de idade, majoritariamente do sexo masculino e mortos por armas de
fogo. Esse perfil indica que a violência não prospera apenas no vácuo das
políticas de segurança pública do País, mas também na fragilidade das agendas
de educação, de emprego, de crescimento econômico sustentável, de combate ao
racismo e de inclusão e assistência social.
É certo que políticas de combate à
violência de gênero, acertadamente adotadas nos últimos anos, trouxeram maior
confiabilidade às estatísticas de estupro. A tipificação ampliada desse crime,
a instalação de Delegacias da Mulher e a oferta de proteção do Estado às
cidadãs sob ameaça de morte tornaram possível o preenchimento de boletins de
ocorrência que, antes, ficavam em branco por medo, vergonha ou falta de
respaldo da polícia e da Justiça. Essas iniciativas, porém, não foram
suficientes para evitar que, a cada hora, em média, oito mulheres tenham sido
estupradas no País.
Algumas iniciativas estatais exacerbaram a
violência. A flexibilização de regras para a aquisição de armas por
colecionadores e caçadores, o ponto central da política de segurança pública da
gestão de Jair Bolsonaro, certamente contribuiu para o Brasil fixar-se no
patamar de 23,4 homicídios por 100 mil habitantes. A medida, segundo o FNSP,
facilitou o acesso de criminosos a armas de fogo. Foi uma das razões para o
aumento de 1,3% no total de assassinatos no Estado de São Paulo no ano passado.
O diagnóstico é perturbador. Muitos
preferirão manter seus antolhos para alimentar a ilusão de um Brasil pacífico,
alegre e cordial. Tal opção, porém, não cabe aos formuladores de políticas
públicas. Desse grupo exige-se análise profunda das estatísticas do FNSP e a
concepção de políticas capazes de conduzir o País às condições básicas de
civilidade.
Indomável violência
Correio Braziliense
Na tentativa de reverter o belicismo, o
governo federal anunciou regras rigorosas para aquisição de armas e munições
Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança
Pública 2023, divulgado nesta semana, revelam que os assassinatos com armas de
fogo aumentaram 76,5% em relação a 2022. Não à toa, pois há mais de 1,5 milhão
de armas em mãos de civis no país. A imensa maioria é de pessoas registradas
como caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). Hoje, são 783.385 , contra
111.487, em 2018.
As facilidades para aquisição de artefatos
bélicos e munições foram uma das marcas dos últimos anos. Embora o número de
mortes intencionais tenha caído (2,4%) entre 2021 e 2022, 47.508 pessoas foram
vítimas da violência extrema.Indivíduos pretos ou pardos são o alvo preferencial.
Eles somaram 76,9% dos 47.508 assassinados intencionalmente. Em seguida, os
jovens (52,9%), na faixa de 12 de 29 anos). Entre os mortos, 6.430 foram
vítimas das intervenções letais da polícia, o que representou 17 óbitos por
dia.
Na tentativa de reverter o belicismo, o
governo federal anunciou, ontem, regras mais rigorosas para aquisição de armas
e munições. O decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva retira
do Exército a fiscalização e o controle do comércio de artefatos e repassa à
Polícia Federal. Restringiu os calibres disponíveis aos civis. Ou seja, a
pistola 9mm, uma das mais desejadas pelos CACs, agora ficou restrita às forças
de segurança pública. Além disso, reduziu drasticamente o volume de munições
que podem ser compradas pelos CACs. Eliminou ainda a possibilidade de
caçadores, colecionadores e atiradores circularem com munição nas armas.
O vai e volta das leis que sustentam o
direito de as pessoas terem armas pouco reduz a violência no país. Ao longo dos
anos o Estatuto do Desarmamento foi mutilado, por interesses contrários à
defesa da vida. As forças de segurança pública, que somam um contingente, hoje,
inferior ao de CACs, não conseguem conter a barbárie provocada pelas
organizações criminosas que operam o tráfico de armas e de drogas. Os registros
obrigatórios são, em boa parte, ignorados pelos proprietários — algo que ficou
evidente na última atualização de dados exigida pelas autoridades federais. Na
outra ponta, está a Bancada da Bala, formada por deputados suscetíveis aos
interesses da indústria bélica, que busca lucrar sempre, ainda que seu produto
sirva para antecipar a morte de milhares de pessoas.
Se a violência bélica, intencional ou não,
é assustadora para a maioria dos brasileiros, mais absurdas são as agressões
sexuais praticadas contra meninas (88,7%) e meninos (11,3%), no último ano,
atingindo um total recorde 74.930 vítimas, um aumento de 8,2% em relação a
2021. A maioria — 61,4% — estava na faixa etária de menos de um a 13 anos. Uma
covardia inaceitável, que demanda do poder público e da sociedade, de modo
geral, um combate acirrado a esse tipo de crime.
Os abusos sexuais são cometidos por
conhecidos, familiares, parceiros ou ex-parceiros íntimos. Muitos ficam
impunes, apesar de oferecerem risco a qualquer criança ou adolescente. Quem não
denuncia esses crimes torna-se cúmplice por deixar meninas e meninos expostos à
revitimização ou dar chance de o agressor produzir mais vítimas. A mesma
responsabilidade é exigida de quem testemunha maus tratos (22.527 casos, sendo
que 60% tinham entre menos um ano e nove anos) ou abandono dos infantojuvenis e
dos incapazes. É preciso denunciar sempre.
Por sua vez, impõem-se ao poder público medidas, cada vez mais rigorosas, para conter o belicismo, todas expressões de violência e garantir eficaz proteção às crianças e aos adolescentes. O segmento infantojuvenil não tem segurança dentro de casa, nas ruas e nas escolas. Eis um dos grandes desafios para o atual e os futuros governantes, bem como para a classe política e o Judiciário. A mudança no país não depende só do governante, mas de todos os poderes e, principalmente, dos cidadãos.
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