sábado, 22 de julho de 2023

Pablo Ortellado - Direita nos EUA planeja aparelhar o Estado

O Globo

Trump quer pôr fim à autonomia das agências regulatórias

Uma fundação conservadora americana, a Heritage, lançou um ambicioso e perigoso projeto com propostas para o candidato republicano que vencer as eleições presidenciais de 2024. A iniciativa é fruto do trabalho conjunto de centenas de acadêmicos, especialistas e ONGs conservadoras e foi chamada de Projeto de Transição Presidencial 2025, ou simplesmente Projeto 2025. Os dois principais pré-candidatos do partido, o ex-presidente Donald Trump e o governador da Flórida, Ron DeSantis, sinalizaram que o abraçarão.

Sob o pretexto de “resgatar a autoridade presidencial”, que teria sido corroída pelo “Estado administrativo”, o Projeto 2025 planeja aparelhar o Estado americano, retirando a autonomia de agências regulatórias e demitindo funcionários com simpatias pela esquerda, substituindo-os por servidores com valores conservadores arraigados, leais ao novo presidente. O projeto lembra o que foi feito por autocratas como Hugo Chávez, na Venezuela, e Viktor Orbán, na Hungria.

A proposta declarada é “desconstruir o Estado administrativo”. “Estado administrativo” é um conceito usado nos meios conservadores para se referir às prerrogativas administrativas de órgãos não eletivos, como agências ambientais, os Correios ou a Receita. A capacidade desses órgãos de elaborar regramentos não seria um mero detalhamento das leis, como prega o Direito Administrativo. Na prática, esses órgãos estariam legislando, a despeito das leis, e eventualmente contra elas. Essa situação faria com que pessoas não eleitas governassem de fato, no limite contrariando o que determina o Legislativo, o Executivo e a Constituição. Seria preciso, portanto, ressubmeter esses órgãos à autoridade presidencial.

Essa teoria do “Estado administrativo” é aparentada de uma outra, mais popular e conspiratória, a do “Estado profundo” — a ideia de que uma burocracia entranhada no Estado usaria do seu conhecimento e domínio da máquina para governar a despeito do que queira o governante do momento, numa espécie de complô das elites administrativas. O “Estado profundo” é tópico frequente da retórica de Donald Trump.

O Projeto 2025 adotou como slogan “personnel is policy” (o pessoal [os recursos humanos] é política pública), um trocadilho com o slogan feminista “the personal is political” (o pessoal [as relações pessoais] é político). Com isso, quer dizer que a constituição de um corpo de funcionários politicamente alinhados é fundamental para implementar as políticas do programa presidencial, impedindo que a burocracia se autonomize e escape da orientação de governo.

Mas os conservadores não querem apenas ocupar os cargos por indicação — querem também abrir espaço, demitindo servidores que tenham simpatia pela esquerda. Trump promete retomar uma medida que adotou bem no fim do seu mandato, tirando a estabilidade de funcionários de carreira cujas funções envolvam o desenho de políticas públicas — medida revogada pelo atual presidente Joe Biden. Num comício em Michigan, prometeu expulsar do governo os globalistas, os comunistas e os marxistas. Em outro comício, propôs limpar os aparatos de inteligência e segurança dos indivíduos corruptos que perseguem conservadores, cristãos e os inimigos da esquerda.

Segundo o Projeto 2025, as indicações para cargos do novo presidente devem apontar apenas indivíduos com convicções conservadoras. As indicações viriam de um banco de dados de 20 mil conservadores que a Fundação Heritage quer montar e que descreve como uma espécie de “LinkedIn conservador”, em referência à popular plataforma de currículos on-line.

Trump também quer pôr fim à autonomia das agências regulatórias, como as que determinam regras para a comunicação e o comércio. Ele diz que esses órgãos se tornaram um quarto poder da República e que, uma vez eleito, determinará que cada nova medida regulatória proposta pelas agências precise antes ser aprovada pelo Executivo.

A remoção da autonomia de órgãos e agências e o aparelhamento do Estado propostos por Donald Trump e pelo Projeto 2025 não são apenas uma ameaça à integridade da democracia dos Estados Unidos, mas também do Brasil. Como o conservadorismo brasileiro tem mostrado pouca capacidade de elaboração programática independente, não será surpreendente ver variações dessas propostas nas eleições brasileiras de 2026.

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