Resenha de O horizonte democrático: o hiperpluralismo e a renovação do liberalismo político, de Alessandro Ferrara
A democracia está numa encruzilhada? Segundo Alessandro Ferrara, sim. O autor italiano, professor de filosofia política na Universidade de Roma Tor Vergata, apresenta em seu novo livro, O horizonte democrático: o hiperpluralismo e a renovação do liberalismo político (Editora da Unicamp e FAP – Fundação Astrojildo Pereira, 2023), uma abordagem que, embora prescinda da história para seu entendimento mais imediato a partir da filosofia política – especialmente de John Rawls, de quem Ferrara se declara um seguidor –, pode e deve usar a história como sua aliada para entender, afinal, o que fez, “paradoxalmente, na conjuntura histórica, quando se tornou um horizonte compartilhado por quase metade da humanidade e poderia se tornar o horizonte comum para quase todas as sociedades do planeta, [a democracia] foi atravessada, naqueles lugares onde existia há mais tempo, por inquietantes processos de desmocratização ou reelitização, muitas vezes vítima do populismo e do descontentamento, e em qualquer caso é obrigada a operar em condições sociais, culturais e econômicas muito mais inóspitas que em qualquer época de seu passado recente” (p. 271).
Essa conjuntura,
que, de certa forma, dá a perspectiva dessa encruzilhada, é o encontro de
trajetórias que, embora caras à filosofia política – e seus pensadores e
formuladores, como é caso do professor italiano –, podem dar sentido ou ajudar
no desenho dessa moldura. Aliás, moldura que parece ser necessária à leitura da
obra.
Nesse sentido, há
uma tridimensionalidade que se encontra em algum ponto da história da
democracia. É longa a tradição no pensamento político contemporâneo que busca
associar à democracia aquilo que dá suporte ou significado aos valores do
liberalismo. Embora apresente variações ao longo do tempo, fundamentos
como direito a voto, garantias individuais, liberdade de expressão e eleições
periódicas, ainda que insuficientes, formam uma matriz daquilo que entendemos
ser a democracia moderna. Ao menos desde o século XVII e a partir da
experiência britânica que, no século seguinte, ganhou a companhia das duas
grandes revoluções contemporâneas, a dos Estados Unidos da América e a
francesa, ambas no último quartel dos Setecentos. Foi nessa quadra da história,
de aproximadamente um século, mas cuja trajetória já conta com mais de 300
anos, que se definiram tais fundamentos que se tornariam algo como uma receita
ou, para muitos, um procedimento que dividiria povos e nações entre democratas
e não democratas. Ou, ainda mais, entre liberais e iliberais.
Nessa longa
história, ao menos três realidades se enfrentaram. Uma delas aponta para uma
não linearidade no avanço de tais elementos que, em tese, sustentam a
democracia em sua versão liberal. De modo objetivo e algo simplificado,
liberdade, propriedade e direitos individuais não alcançaram a mesma velocidade
de expansão quando vistos em sua amplitude ou, para seguir terminologia
institucionalista, em sua capacidade de ser inclusivos. Ou seja, há uma
combinação, visível ao longa dessa trajetória, entre a expansão dos valores que
montam à matriz democrático-liberal e, concomitantemente, uma hierarquização
que define quem é incluído antes e quem é incluído depois. E entre um e outro,
a expansão dependeu menos da natureza de seus elementos do que da pressão exercida
pelos “não incluídos”. A questão central aqui, e que serve para emoldurar a
tese de Ferrara, é que esse hiato entre a “expansão” e a “pressão” cria a
possibilidade de coexistência entre elementos que confirmam os valores
democrático-liberais e outros que os negam. Ou ao menos os colocam sob
suspeita.
Essa situação não
é novidade para quem observa atentamente a história. Contudo, ela também não
avançou de forma previsível e linear nem dentro dos países, nem entre
eles. No primeiro caso, foi responsável por certo mal-estar que, para
nós, brasileiros, em particular, e latino-americanos, em geral, se manifestou
em inúmeras situações em que o avanço da democracia ampliava o “espaço” para
que seus elementos centrais e liberais fossem, por dentro, minados. O cenário
brasileiro em meados da década de 1930, assim como na primeira metade da década
de 60 do mesmo século, pode ser entendido a partir dessa abordagem. Assim como
as tentações não democráticas à esquerda (castrismo) e à direita (ditaduras
militares) na América Latina do século XX. Contudo, mais relevante é reforçar
que em ambos, tanto nos anos 1930 quanto nos anos 1960, a solução foi dada pela
saída autoritária.
Já entre os
países, cristalizou-se no século XIX – principalmente naquilo que entendemos
ser o Ocidente – que, embora passíveis de fraturas internas devido aos variados
padrões de expansão e inclusão, os valores democráticos liberais seriam
irresistivelmente ampliados a partir da irradiação cujo vetor era do Ocidente
para o Oriente e, entre os ocidentais, das lideranças aos liderados. Dessa
forma, a ameaça a tal expansão e padronização ocorreu apenas na medida em que
tivemos uma breve fratura na liderança entre o mundo sob os valores britânicos
e aquele sob os valores norte-americanos. Ambos representantes legítimos e
originais da democracia liberal. A Alemanha seria o caso exemplar tanto da
fratura temporária como da cura pela expansão dos valores democráticos e
liberais. Da ascensão do nazismo e da divisão do país e de sua capital ao longo
do século XX, o país se tornou, após o último “inimigo” da democracia liberal
ser derrotado em 1989, a nação mais democrática do mundo. Não custa lembrar,
era o “Fim da História”.
Contudo, uma
terceira dimensão, acertadamente indicada por Ferrara, de alguma forma
atropelou tal expansão e aquilo que, aparentemente, era a vitória da democracia
liberal. A expansão econômica em escala global, patrocinada por uma equivocada,
segundo Ferrara, adaptação do pensamento de Hobbes, se ingenuamente foi
percebida em seus dias iniciais como parceira da democracia liberal, pode ter –
seguindo a mesma chave explicativa do hiato entre a expansão intrínseca dos
valores da democracia liberal e sua tendência reativa de estacionar antes que
sua capacidade de inclusão alcance seu potencial máximo – gerado um
desequilíbrio que colocou novamente a democracia em uma encruzilhada. A
expansão dos valores da democracia liberal – o hiperpluralismo ou, em versão
menos sofisticada de Moises Naim, o Fim do Poder – combinou com os resultados
desiguais da inclusão dos indivíduos no processo de ampliação do espaço
econômico da globalização. Desiguais, pois não seguiram o que parecia fácil de
prever, ou seja, que avançariam do Ocidente ao Oriente, da liderança aos
liderados. Ao contrário, fizeram com que os asiáticos ascendessem. Coreia do
Sul, China e, em certa medida, Índia seriam os vitoriosos desse processo.
Também porque,
dentro dos países, tal processo criou novas fraturas entre os incluídos e os
excluídos. Ou seja, ao misturar elementos da democracia em sua versão liberal
com elementos econômicos, como consumo, o equilíbrio entre eles se desfez
exatamente nos países que, historicamente, carregam tais valores como elementos
de sua matriz institucional. Por isso, proliferam hipóteses sobre o fim
da democracia, sua crise e a redução de seu alcance.
A obra de
Alessandro Ferrara acerta, nesse caso, em várias dimensões. Ao buscar no
equilíbrio proposto por John Rawls em suas teses sobre justiça e,
principalmente, sobre a inviabilidade de uma democracia cuja definição de bem e
justiça seja única, não só conceitualiza o que chama de hiperpluralismo como o
transforma em elemento intrínseco da democracia. Ao fazer isso, nega o elemento
exógeno da política e a protege de uma colonização por parte de elementos
oriundos de outros campos e, portanto, detentores de outras razões e
racionalidades, principalmente econômicas. E, assim, identifica que, se o
pluralismo é, de fato, um elemento da democracia liberal, esta deve buscar
tanto na proteção quanto na expansão desse elemento sua fortaleza.
A questão é como
fazer isso em um mundo cercado de tentações não democráticas e/ou não liberais.
Ferrara nos dá pistas que, se bem entendidas, se transformam num tapete
vermelho: reconhecer, assim como Jonh Rawls fazia, que os desequilíbrios que
porventura são criados internamente à democracia liberal não são atacados com
menos democracia e menos liberalismo. Ao contrário, são atacados com mais
democracia e liberalismo. Ou seja, humildemente, a democracia liberal e seus
defensores não precisam abandonar a defesa de seus valores fundamentais para
evitar o risco de ser engolidos pelas suas próprias fraturas. Ao contrário,
devem descortinar as fraturas, reconhecendo que elas podem ser “consertadas” a
partir da expansão ainda mais rápida dos valores que as fundamentam. O
hiperpluralismo deixa de ser ameaça e passa a ser a solução. Encontrar
intersecções com elementos de outras molduras, como as religiosas, assim como
tenta fazer Ferrara nos capítulos 3 e 5 (“Pluralismo reflexivo e volta
conjectural”, e “Cuius Regilio, eius publica. Sobre democracias múltiplas”,
respectivamente), é uma das soluções não só por sua utilidade, mas porque
reforçaria a pluralidade intrínseca da democracia liberal.
Ou seja, no lugar
de certo fatalismo que nos ronda em forma de decretação do fim da democracia,
apresentamos uma renovação de nossas crenças acerca da superioridade da
democracia em sua versão liberal. Foi assim que superamos o absolutismo e todas
as propostas iliberais e autoritárias que já nos ameaçaram no passado.
Alessandro Ferrara nos dá, com um bom equilíbrio entre a crítica e a humildade
e entre a filosofia e a política, um bom guia para enfrentarmos as ameaças
contemporâneas à democracia que nos espreitam na atual esquina da
história.
*Vinícius Müller, doutor em História Econômica e professor do Insper
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