Folha de S. Paulo
Discursos lembram política de áreas de
influência típica de potências europeias no séc. 19
Analistas da política norte-americana se
esforçam para distinguir, na enxurrada de decretos executivos expelidos pelo
presidente Donald Trump,
o que é para valer e o que é apenas para obter —pela intimidação— acordos mais
vantajosos.
Seja qual for a intenção, o desastre é
monumental e fere não apenas os habitantes do país, cuja grandeza passada o
novo ocupante da Casa Branca prometeu ressuscitar —seja lá o que ele quis
dizer.
No plano externo, palavras e atos do presidente atingem igualmente pilares da chamada ordem internacional baseada em regras —ou ordem liberal. Obra lapidada do Ocidente democrático, depois da Segunda Guerra Mundial, seu objetivo era reduzir o risco de novos conflitos generalizados e estabelecer limites à pura política de poder e ao exercício da força bruta nas relações entre países. Além de buscar soluções negociadas para problemas que ignoram fronteiras —como a crise ambiental ou as pandemias. Seu instrumento foram os numerosos organismos e arranjos multilaterais que se multiplicaram em torno das Nações Unidas e de entidades como o FMI e o Banco Mundial.
Eis por que as primeiras decisões de política
externa de Trump foram a retirada dos EUA do Acordo de Paris e da Organização
Mundial da Saúde. O primeiro, a duras penas, visa construir um caminho comum
para lidar com as mudanças climáticas. O segundo, integrado ao sistema da ONU, sempre ficou
aquém dos desafios criados pelas epidemias globais e pela abissal desigualdade
de recursos entre nações, malgrado sua gritante importância.
Logo a seguir vieram as decisões de retirar a
América do Conselho de Direitos Humanos da ONU; do Tribunal Penal
Internacional; e do Conselho Interamericano de Direitos Humanos da OEA (Organização
dos Estados Americanos). Sem dúvida, a parte mais vulnerável do sistema
internacional baseado em regras, pelas dificuldades de fazer cada país cumprir
suas decisões, esses organismos expressam também suas aspirações mais elevadas
de um mundo respeitoso da dignidade das pessoas e da sua proteção contra toda
forma de violência.
O abandono dessas organizações multilaterais
soma-se aos golpes ao livre comércio, às ameaças de anexação de territórios,
como a Groenlândia, ou de ocupação, como no monstruoso projeto para Gaza. Em
conjunto, anunciam uma concepção que faz lembrar a política de áreas de
influência e de equilíbrio de poder características das grandes potências
europeias no século 19, às quais os estudiosos atribuem a instabilidade
internacional que teria desembocado na Grande Guerra de 1914.
É obvio que, hoje, o mundo é outro e a
existência mesma de entidades multilaterais é disso uma prova —e, felizmente,
um obstáculo ao agressivo nacionalismo de Trump, que, de resto, também
enfrentará resistências internas. Mas não há dúvida de que suas políticas de
caos e destruição aumentam a crise pré-existente das regras do jogo
internacional e o risco de catástrofes globais.
"O velho mundo está morrendo e o novo
mundo luta para nascer: agora é o tempo dos monstros." A frase é do
notável pensador italiano Antonio Gramsci, falecido em 1937 depois de oito anos
nos cárceres fascistas. Nunca pareceu tão atual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário