quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Os 12 trabalhos do autocrata - Conrado Hübner Mendes

Folha de S. Paulo

A cartilha da erosão democrática disparada por Trump

Não há receita rígida para desmontar a democracia. A ordem de fatores e a dose variam. Mas o roteiro contemporâneo combina 12 tarefas. Invariavelmente. Um programa de transferência de tecnologia da autocratização. Aqui um resumo temático.

1. O autocrata e o Povo. Induza confusão entre vitória eleitoral e mandato ilimitado. A identificação existencial entre povo genuíno e líder eleito apaga a distinção entre maiorias e minorias. Estas, ou se aliam, ou são excluídas. Não há diversidade: "povo" de um lado contra os moralmente depravados de outro.

2. O autocrata e a Verdade. Estigmatize e inviabilize instituições de produção de informação, ciência e imaginação crítica. Ataque universidades, vigie salas de aula, intimide cientistas, professores, jornalistas. Invoque intenções maliciosas no que fazem.

3. O autocrata e Deus. Explore o poder religioso. O líder não é só encarnação messiânica do povo, mas se relaciona com a vontade de Deus. De um Deus.

4. O autocrata e o Tempo. Administre a velocidade. Saiba os benefícios da tempestade ("shock and awe") e o momento de desacelerar. Alterne avalanche e calmaria para desnortear. Invente um passado e dali tire seu plano de futuro.

5. O autocrata e a Lei. Da lei se imponha como último intérprete. A linguagem jurídica oferece potente ferramenta de autolegitimação. Formal e informalmente, inunde cortes e as desafie a controlar seus atos ("shock and law"). Ignore ou desobedeça a ordens judiciais. Desgaste capital político de cortes e, na hora certa, capture juízes e juristas.

6. O autocrata e a Palavra. Bagunce a semântica, descole as palavras de seus conceitos enraizados. Torne as ideias de liberdade, democracia e direitos o seu contrário. Esvazie a possibilidade da comunicação a partir de conceitos compartilhados.

7. O autocrata e a Força. Demonstre ser um sujeito de força e explore a exibição de força. Militares, policiais e milícias sectárias são extensão de suas mãos. Infalíveis no combate a inimigos, não devem satisfação à lei, apenas à sua pessoa.

8. O autocrata e a Burocracia. Combata expertise e autonomia, rejeite atos de governo baseados em razão e evidência. Estigmatize burocratas profissionais e os substitua por lealistas e apologistas.

9. O autocrata e a Política. Quase todas as dimensões da vida devem se politizar. Combata instituição imparcial. Todo indivíduo e instituição deve assumir lado, critério primário de autoidentificação pública e privada.

10. O autocrata e o Poder Econômico. Não deixe de trazer a oligarquia para o governo.

11. O autocrata e o Estrangeiro. Em nome da soberania, rejeite governança supranacional dos direitos humanos, da segurança internacional, sanitária e climática. E se credencie no consórcio global contra a democracia.

12. O autocrata e inimigos imaginários. Fabrique pânico moral permanente e legitime violência contra os grupos mais vulneráveis. Associe imigrantes, transgêneros, negros, indígenas, militantes sociais ao crime.

Na mitologia grega, o rei Euristeu impôs 12 missões a Hércules. Tarefas como matar o leão de Nemeia e roubar o cinturão de Hipólita. Parecia impossível aos cientistas políticos da época. Hércules foi lá e fez.

Trump e Bolsonaro se familiarizaram com a cartilha no primeiro mandato. Trump veio mais afiado e bem assessorado para efetivá-la no segundo.

 

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