Folha de S. Paulo
A cartilha da erosão democrática disparada
por Trump
Não há receita rígida para desmontar a
democracia. A ordem de fatores e a dose variam. Mas o roteiro contemporâneo
combina 12 tarefas. Invariavelmente. Um programa de transferência de tecnologia
da autocratização. Aqui um resumo temático.
1. O autocrata e o Povo. Induza confusão
entre vitória eleitoral e
mandato ilimitado. A identificação existencial entre povo genuíno e
líder eleito apaga a distinção entre maiorias e minorias. Estas, ou se aliam,
ou são excluídas. Não há diversidade: "povo" de um lado contra os
moralmente depravados de outro.
2. O autocrata e a Verdade. Estigmatize e inviabilize instituições de produção de informação, ciência e imaginação crítica. Ataque universidades, vigie salas de aula, intimide cientistas, professores, jornalistas. Invoque intenções maliciosas no que fazem.
3. O autocrata e Deus. Explore o poder
religioso. O líder não é só encarnação messiânica do povo, mas se relaciona com
a vontade de
Deus. De um Deus.
4. O autocrata e o Tempo. Administre a
velocidade. Saiba os benefícios da tempestade ("shock and awe") e o
momento de desacelerar. Alterne avalanche e calmaria para desnortear. Invente
um passado e dali tire seu plano de futuro.
5. O autocrata e a Lei. Da lei se imponha
como último intérprete. A linguagem jurídica oferece potente ferramenta de
autolegitimação. Formal e informalmente, inunde cortes e as desafie a controlar
seus atos ("shock and law"). Ignore ou desobedeça a ordens judiciais.
Desgaste capital político de cortes e, na hora certa, capture juízes e
juristas.
6. O autocrata e a Palavra. Bagunce a
semântica, descole as palavras de seus conceitos enraizados. Torne as ideias de
liberdade, democracia e direitos o seu contrário. Esvazie a possibilidade da
comunicação a partir de conceitos compartilhados.
7. O autocrata e a Força. Demonstre ser um
sujeito de força e explore a exibição de força. Militares, policiais
e milícias sectárias são extensão de suas mãos. Infalíveis no combate a
inimigos, não devem satisfação à lei, apenas à sua pessoa.
8. O autocrata e a Burocracia. Combata
expertise e autonomia, rejeite atos de governo baseados em razão e evidência.
Estigmatize burocratas profissionais e os substitua por lealistas e
apologistas.
9. O autocrata e a Política. Quase todas as
dimensões da vida devem se politizar. Combata instituição imparcial. Todo
indivíduo e instituição deve assumir lado, critério primário de
autoidentificação pública e privada.
10. O autocrata e o Poder Econômico. Não
deixe de trazer a
oligarquia para o governo.
11. O autocrata e o Estrangeiro. Em nome da
soberania, rejeite governança supranacional dos direitos
humanos, da segurança internacional, sanitária e climática. E se
credencie no consórcio global contra a democracia.
12. O autocrata e inimigos imaginários.
Fabrique pânico moral permanente e legitime violência contra os grupos mais
vulneráveis. Associe imigrantes, transgêneros,
negros, indígenas, militantes sociais ao crime.
Na mitologia grega, o rei Euristeu impôs 12
missões a Hércules. Tarefas como matar o leão de Nemeia e roubar o cinturão de
Hipólita. Parecia impossível aos cientistas políticos da época. Hércules foi lá
e fez.
Trump e Bolsonaro se
familiarizaram com a cartilha no primeiro mandato. Trump veio mais afiado e bem
assessorado para efetivá-la no segundo.
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