O Estado de S. Paulo
Já de início, a ação de Donald Trump foi
pautada por uma virulência típica dos impérios em declínio
Os primeiros movimentos do segundo governo
Trump vão mostrando um líder em transição para o autoritarismo ilimitado. A
dúvida que fica é se esse perfil é uma estratégia política, no contexto das
políticas interna e externa da América, ou uma efetiva intenção de recolocar os
Estados Unidos no papel de controlador imperial do mundo.
A segunda hipótese parece mais provável. A retórica que levou Trump ao poder teve como pilar o “Make America Great Again”. Em verdade, essa mensagem já confessa que a hegemonia americana passa por fortes questionamentos. Trump apostou (e ganhou) em mostrar o declínio para assumir o posto de timoneiro da recuperação do poder americano.
Sua ação já de início foi pautada por uma virulência típica dos impérios em declínio. Os impérios contemporâneos constroem uma hegemonia baseada em relações comerciais, financeiras, culturais, tecnológicas e étnicas. Há uma espécie de dependência de todos em relação ao centro do império, seja para vender produtos, seja para lastro financeiro e creditício, mas os outros aspectos dos costumes e da própria construção dos valores sociais estão presentes no conceito de hegemonia.
Geralmente, quando os impérios têm seu papel
hegemônico contestado, passam ao uso do poder militar ou desandam pela via da
demonização dos parceiros comerciais insubordinados. Os dois instrumentos estão
na pauta, mas as tarifas estão ainda ocupando o lugar dos mísseis, como no caso
do nosso aço.
A metralhadora giratória de Trump contra os
parceiros comerciais é uma aposta arriscada. A elevação de tarifas tem o efeito
colateral de estressar os complexos formatos de negócio das cadeias de
suprimento das grandes empresas americanas.
Hoje, China e Índia representam alternativas
de negócio ao centro dominante americano. É até mais provável que a postura de
Trump acelere os movimentos de criação e consolidação dos novos blocos de
comércio. Note-se que toda a virulência contra os Brics expressa menos força do
que temor quanto ao futuro.
Ficou evidente na reta final da campanha e
nos primeiros movimentos do novo governo que Trump estava muito bem articulado
com o que de mais novo existe na economia americana, as big techs. Depois de
perder a supremacia em diversos segmentos da indústria manufatureira, a aposta
é na tecnologia para recuperar sua posição de centralidade na economia global,
o que deve envolver bilhões de dólares do Tesouro para os grandes contratos com
o setor privado.
Parecia um reencontro com o sonho americano,
só que ele se transformou em pesadelo. Bastou a notícia de que uma empresa
chinesa conseguia produzir inteligência artificial melhor e mais barata do que
as big techs americanas para que um US$ 1 trilhão de valor de mercado dessas
empresas virasse pó.
Além das questões de mercado, a realidade
colocou uma interrogação sobre o segmento que aparecia como grande polo
dinâmico da reestruturação da economia americana na “era Trump”. Pior, esse
setor foi protegido com políticas do Estado americano, o que fazia com que as
empresas beneficiárias parecessem muito mais sólidas do que na realidade são.
Não é só na economia que o jogo de Trump é de
alto risco. Na execução de sua grande promessa eleitoral, a retirada de milhões
de imigrantes ilegais do território americano e a inviabilização do fluxo
migratório, um certo tom medieval vai dissolvendo o ar de civilização que ainda
era preservado pelo governo anterior.
Ao que parece, Trump não compreendeu que a
mão de obra estrangeira joga um papel-chave na economia americana. Os primeiros
dias de terror vão desestruturando a construção civil e os serviços. A provável
elevação de salários, decorrente da escassez de trabalhadores dispostos a
realizar tarefas de baixa qualificação, pode resultar em aumento generalizado
de custos na estrutura produtiva americana.
O lamentável é que o histórico de exploração
econômica do México e da América Central, em que o Estado americano teve grande
responsabilidade, resultou em péssimas condições de vida que são o elemento
propulsor da imigração para os Estados Unidos. Evidentemente, o crime e o
narcotráfico se associam a esses processos, gerando um barril de pólvora. O
muro e as deportações são a negação da posição de centro dominante, ao recusar
suas responsabilidades sobre a situação social dos países sob sua influência.
O desespero para recuperar as condições de
controle da geopolítica e dos fluxos comerciais é a outra face da incapacidade
em lidar com as fronteiras e a gestão dos fluxos migratórios.
Não poderia faltar ao império em decadência a
bravata militar. Anexar a Groenlândia e o Canal do Panamá, além de transformar
o Canadá no 51.º Estado, parece jogo de cena, mas não podemos esquecer que um
senhor de bigode no centro da Europa começou exatamente assim.
Infelizmente, a truculência ampla, geral e
irrestrita de quem não tem noção de seu papel no mundo deve acelerar a
fragmentação da economia internacional e ampliar os conflitos.
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