• Em livro de memórias, José Serra analisa período da ditadura e relembra o exílio
• Em ‘Cinquenta anos esta noite’, autor fala de fase crítica da história do Brasil e da América Latina
Rosiska Darcy de Oliveira – Prosa & Verso / O Globo
Uma noite agitada, habitada por sonhos e pesadelos. Assim é o relato do insone José Serra de uma história que é sua, do Brasil, da América Latina, mas sobretudo de uma geração que, nos anos 60, se apaixonou pelo Brasil e aceitou esse amor não correspondido como um destino.
Dos anos que precederam o golpe de 64, quando um jovem saído da adolescência que presidia a União Nacional de Estudantes era interlocutor do Presidente João Goulart, ao tenebroso ano de 1973, quando esse jovem foi jogado no Estádio de Santiago, no Chile, depois do golpe que assassinou Salvador Allende, uma epopeia pontuada por exílios e ditaduras encontra, na escrita direta e despretensiosa de Serra em “Cinquenta anos esta noite”, memória impecável.
A tessitura do público e do privado é o artesanato desse registro que revela, na origem do homem público, o filho apegado à família de imigrantes italianos, de quem se despede aos 22 anos rumo ao primeiro exílio na Bolívia. “Afinal, o que estava acontecendo? O que ocorreu com o filho único, o neto varão, o bom aluno, o orgulho das tias, exemplo para os primos, destinado a obter o primeiro diploma universitário da família, ganhar bem, garantir a velhice dos pais e de quem mais precisasse? (...) Quando me veriam de novo? Toda explicação sociológica, histórica, política, elementos da minha militância, perdiam sentido ante a dor dos meus maiores”.
Serra pertence à estirpe dos exilados que estreitaram seus laços com a pátria pelo avesso da ausência e da privação. O livro traduz essa condição, que é um estar no mundo precário, quando se é definido pelo passado e se tem no passado o sentido do futuro. Todo exilado sabe que é no passado que o futuro virá se prender como o elo quebrado de uma corrente brutalmente interrompida. La Paz, Santiago do Chile, Paris, Roma, Princeton traçam o mapa do intelectual errante, movido por uma obsessão rigorosamente cumprida: estudar, ensinar, preparar-se para a volta e a função de homem público.
Espalhados nesse mapa encontramos os personagens da moderna História do Brasil: Rubens Paiva, Betinho (com quem Serra morou), Fernando Henrique Cardoso, Paulo Freire, Mario Pedrosa e o seu Museu da Solidariedade, em Santiago, a quem Picasso, Calder e Miró doaram quadros, e que foi destruído pelos generais chilenos. A solidariedade entre os exilados que, em cada cidade, se traduzia em teto, comida e afeto, ganha no relato de Serra a concreção que tem a história vivida. “Exílio não é estar longe de casa. É a falta de documentos e a impossibilidade de voltar”.
Dimensão crítica atravessa o relato
Sobressai também a importância central da cultura como fermento do sonho revolucionário da geração de 64. A UNE e o CPC (Centro Popular de Cultura), presidido por Ferreira Gullar, moravam juntos. Ali, futuros grandes artistas como Cacá Diegues, Oduvaldo Vianna Filho, Eduardo Coutinho e Arnaldo Jabor anunciavam o projeto de levar a cultura ao povo.
Seduzido pelo teatro, Serra tentou uma carreira de ator antes de abandoná-la de vez pela política. Em Santiago casou-se com Monica Allende, bailarina do Balé Nacional da Universidade do Chile. Serra não concorda com o conselho que Nelson Rodrigues dava aos jovens: envelheçam. Ao contrário, seu livro é um preito à sua juventude. Tem saudades de si mesmo e do bem estar que as certezas provocam em nós. Mas não abre mão do que aprendeu.
A dimensão crítica atravessa todo o relato, pondo a nu a fragilidade das análises políticas que sustentavam o projeto revolucionário no Brasil, ora a tibieza, ora o irrealismo de seus líderes. O peso do exemplo cubano nas tentativas de luta armada e a influência da igreja dos pobres na construção da Ação Popular contam a história desses anos. O Chile de Allende e a tragédia de Pinochet no poder são relatados com a veracidade da testemunha da História.
Serra não perdoa os cúmplices, por ação ou omissão, da repressão e da tortura que, em seu livro, ganham carne e osso, nome e endereço. Minucioso nos fatos e nos detalhes, com um senso agudo da vida real, conhecedor da luta pela sobrevivência, mantém agasalhadas suas esperanças que “os limites da realidade”, que reconhece, não apagam. Durante uma viagem de avião um dos motores parou. Mudou de lugar e olhou para o outro lado. “Entre o motor que acenava com o desfecho trágico e o que funcionava, preferi olhar para este.” Seu livro se encerra com uma confissão: “Continuo na luta, não sei viver de outro jeito”.
A obra com que o autor nos presenteia é uma joia com valor de uso para as gerações que não viveram esses tempos e que pouco ou nada sabem sobre eles.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora e membro da Academia Brasileira de Letras
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