sábado, 12 de julho de 2014

Bolívar Lamounier: Voto nulo: como, quando, para quê?

- Folha de S. Paulo

Entendamo-nos, primeiro, quanto aos conceitos, uma vez que a pergunta comporta pelo menos duas interpretações bem distintas. No sentido legal e moral, a resposta só pode ser positiva; o voto nulo é tão válido como qualquer outro. O cidadão vota como quer; este é um princípio "sine qua non" da democracia. No regime democrático, por definição, inexistem instâncias com legitimidade para forçá-lo a escolher desta ou daquela forma.

A questão que ora nos ocupa é portanto de ordem prática: qual é, em comparação com outras estratégias de protesto, a eficácia do voto nulo? Em que medida e sob que circunstâncias ele produz realmente o efeito desejado? É claro que em situações falsamente democráticas ou marcadamente ditatoriais o voto de protesto pode valer mais que a escolha substantiva.

No caso brasileiro, o melhor momento para examinarmos os prós e contras do voto nulo são as eleições legislativas de 1970, colhidas em cheio pela chegada dos "anos de chumbo". Naquelas condições, não surpreende que o voto nulo (a soma dos votos em branco e nulos, melhor dizendo) atingisse um índice inusitadamente alto.

Que lição podemos tirar desses números? É preciso admitir que, naquele ano, o voto de protesto produziu um efeito perceptível; sem ela, o MDB teria feito bancadas um pouco maiores, mas ainda pequenas e submetidas de qualquer forma à espada de Dâmocles do AI-5. Há, no entanto, um argumento ponderável no sentido oposto. O "recado" do protesto foi dado, mas seu efeito político foi duvidoso, para dizer o mínimo. Em poucas semanas, ninguém mais se lembrava dele. Alguns deputados a mais em Brasília poderiam ter tido uma vida útil mais longa como oposicionistas.

Que dizer da situação atual? Qual pode ser, nas eleições deste ano, a serventia do voto nulo? Afastemos, desde logo, a suposição de que um alto percentual de votos nulos acarreta a nulidade da própria eleição. Trata-se de uma crença totalmente desprovida de fundamento; a Constituição vigente nada estipula nesse sentido.

A questão a considerar é, pois, o objetivo dos proponentes do voto nulo. Protestar contra o quê, exatamente? Uma razão amiúde invocada para o protesto é o desgaste das instituições, nos três ramos do governo. O desgaste de fato existe e se deve a uma infinidade de razões. O Congresso atual alterna momentos de omissão, de anarquia e de subserviência ao Executivo, desservindo o interesse público nos três casos. Episódios de corrupção multiplicam-se nos três Poderes, numa sucessão interminável. É um estado de coisas lastimável, mas a contribuição do voto nulo à correção dele é rigorosamente zero. Neste caso, nada há na anulação que se possa chamar de público --ou seja, de político, no melhor sentido da palavra. Nas condições do momento, ele apenas exprime um mal-estar subjetivo, difuso, de caráter individual. Qualquer que seja seu peso nos números finais da eleição, ele será apenas uma soma desses mal-estares e da apatia que deles decorre.

Um protesto contra as políticas do governo atual? Realmente, na política econômica, há equívocos de toda ordem; na educação, é até difícil dizer se há alguma política; na área externa, uma descabida simpatia por ditaduras de vários matizes; sem esquecer a incompetência e os abundantes desmandos que se têm verificado em certas empresas públicas, a começar pela Petrobras. Dá-se, no entanto, que tais políticas derivam fielmente da coalizão partidária no poder; motivos para combatê-las não faltam, mas o voto nulo não as combate. Bem ao contrário, ele contribui para a permanência delas, ao facilitar a pretendida reeleição de Dilma Rousseff.

Bolívar Lamounier, cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e autor de "Intelectuais e ideologias no século 20"

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