• Não fomos vítimas trágicas de deuses cruéis que nem sempre premiam os melhores, mas sim de nossa própria fragilidade
- O Globo
No quinto gol dos alemães, antes que acabasse o primeiro tempo, meu neto de 8 anos caiu em pranto convulsivo. Enquanto seu pai o consolava, vi no dele o meu próprio pranto, há mais de seis décadas, quando mal havia completado dez anos de idade e acabara de ouvir pelo rádio o jogo Brasil e Uruguai. Naquele fim de tarde de 16 de julho de 1950, um trauma mobilizaria não só os 200 mil espectadores no Maracanã, como toda a população do país.
No segundo tempo do jogo contra a Alemanha, meu neto já havia se retirado da sala, fora brincar com seus amigos, disputar partidas virtuais no videogame da Fifa, com o qual, pelos gritos de euforia, devia estar fazendo muitos gols. Isso não impediu que ele voltasse à sala a tempo de ver o tento solitário e patético de Oscar, no finzinho do jogo, e tirasse a camisa amarela para comemorá-lo, como fazem os craques de tantas seleções. Não o tenho visto desde então, mas não creio que ainda esteja se lamentando.
Em 1950, a derrota para o Uruguai foi uma ária trágica de Wagner, uma daquelas de “Tristão e Isolda”, que nunca mais deixam em paz nossa alma e imobilizam nosso corpo com sua densidade de muitos significados. Já em 2014, contra a Alemanha, a derrota foi apenas um coro de ópera-bufa propositadamente desafinado. Não fomos vítimas trágicas de deuses cruéis que nem sempre premiam os melhores, mas sim de nossa própria fragilidade.
Sendo a primeira derrota profunda e cheia de significados, ela nos ajudou a construir o que nos faltara naquela Copa de 1950. Ganhamos uma consciência de que era preciso reinventar o Brasil, para que ele se tornasse mais vigoroso e menos miserável, projetando sobre ele um sonho otimista de futuro.
Conseguimos reformular nosso futebol, reorganizá-lo e fazê-lo novo, desenvolvendo suas características naturais, aliadas a um espirito “científico” que pretendia aproximá-lo da modernidade. E foi assim que, de 1950 a 1970, fomos os primeiros tricampeões mundiais, ganhando três das cinco Copas realizadas nesses vinte anos, encantando o planeta com uma arte que inventamos e tratamos de disciplinar. Nós acreditávamos que o Brasil podia e tinha que colaborar para que a civilização humana fosse melhor, o futebol seria um de nossos instrumentos.
Hoje, a derrota para os alemães é uma patética consequência de nossa insegurança, de nossas dúvidas quanto a nós mesmos, de nosso mergulho no pessimismo sobre o nosso destino. Claro que contribuem para isso a mediocridade de nossos políticos, a corrupção pública e privada, a extinção de critérios de valor, a violência entre nós, nossa desconfiança quanto a nosso futuro, uma incerteza que gera um generalizado “salve-se quem puder”.
Todos esses são fatores que fizeram com que o Brasil deixasse de ser, para os outros, uma ilha utópica num mundo condenado por conflitos insolúveis, e se tornasse exemplo de um modo original de agravá-los. Perdemos a confiança de nossa torcida, ganhamos o desinteresse da dos outros.
O Brasil perdeu porque os alemães foram melhores, desde o início da competição e durante o jogo fatídico. Não sei como será amanhã, nesse Maracanã da Fifa, mas tanto Alemanha quanto Argentina são mesmo, por motivos diferentes, as melhores equipes dessa Copa. Merecem estar na final. Para chegarmos perto deles, tínhamos que ter trocado a ordem unida infantil e o coração frágil demais por trabalho com liberdade e confiança com humildade. Além de uma obssessiva organização democrática e humana.
A culpa não é dos jogadores. Nenhum deles se autoconvocou, todos foram escolhidos pelos responsáveis pela CBF e pela seleção. Eles fizeram o que lhes foi pedido fazer, o que lhes pediam desde que começaram a se educar na base de seus clubes, uma educação que ignora o talento, a originalidade e a coragem de mudar. O “apagão” não foi só deles, mas de todos nós que estávamos conformados com nossa fraqueza. Ao contrário de 1950, desta vez perdemos porque nos subestimamos.
A tragédia brasileira é a de que, cada vez que chegamos perto da vitória, tratamos de provocar a derrota iminente, como se não pudesse ser de outro modo e fosse um alívio apressá-la. Como disse alguém (não me lembro quem), é como se o brasileiro achasse que não tem direito à felicidade. Cada vez que ela chega muito perto, trememos e choramos, entramos em pânico até que a afastamos de nós.
Paulo Perdigão, o maior exegeta da tragédia de 1950, contava que Zizinho, nosso Neymar de então, deixara o Maracanã, depois da derrota para o Uruguai, e fora a pé até sua casa, na distante Niterói ainda sem ponte. Sem conseguir pensar em outra coisa, ele tentava entender o que havia acontecido, concentrado em sua frustração e em seu sentimento de culpa. Agora, os culpados somos nós, cada um em seu universo específico, fazendo parte de um país que não reage às suas misérias. Teoricamente responsáveis pelo país em que nascemos e vivemos, não podemos andar distraídos por aí, como se não tivéssemos nada a ver com tudo isso.
Cacá Diegues é cineasta
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