- O Estado de S. Paulo
Há um século o filósofo Ortega y Gasset, o caçula de uma geração de intelectuais que se confrontava com o que reputavam “a Espanha caduca”, cunhou uma frase que nós, brasileiros, recolhemos de forma distorcida, por incompleta. No original, “yo soy yo y mi circunstancia: si no la salvo a ella, yo no me salvo”. A ênfase recai, portanto, no que se entende por salvar e por nossa circunstância. Por salvar entendia-se o esforço intelectual motivado pelo “afã de compreensão” num sentido preciso: a partir do resgate da reflexão sobre a especificidade da Espanha, então dividida entre aquela que se queria europeia e a que se pensava castiça.
A “Espanha caduca”, como se sabe, só foi desmantelada 60 anos depois, quando os traumas da guerra civil e de uma longa ditadura obscurantista foram elaborados. Mas o golpe fatal que levou à europeização e à democracia foi o desembarque de um dos setores mais poderosos e economicamente dinâmicos do bloco de poder dominante – o sistema financeiro – e sua adesão às forças da mudança. Graças à combinação de dois incentivos: o interesse em participar do amplo mercado da União Europeia e o sistema de condicionalidades políticas que lhe era associado, ou seja, a adoção da democracia.
Cito essa experiência para destacar a necessidade de recorrer também ao arsenal da sociologia para exercer o afã de compreensão da conjuntura crítica que vivemos. Pois o êxito da complexa e arriscada operação política que implantou a democracia espanhola – a utopia de Ortega y Gasset – resultou de uma transformação no sistema de interesses e de valores. Que, por sua vez, se expressou em mudança decisiva na composição das coalizões sociais, em disputa: a de apoio ao velho regime e a de suporte ao bloco de poder em construção. O novo “contrato social”, formalizado no Pacto de Moncloa, foi o coroamento, não o ponto de partida, de processos sociais transformadores.
Hoje, no contexto instável e movediço posterior à crise global de 2008, graças à sociologia, sabemos algo mais sobre a fluidez das coalizões sociais e sua relação com as coalizões políticas domésticas em tempos de crise internacional. Agora no contexto de uma grande democracia de massas como os EUA. A noção de “grupos pivot”, usada para compreender o papel das finanças no pós-crise nesse país, ajuda a entender também uma das características distintivas da nossa, desde que adequada ao nosso contexto. Em princípio, aplica-se ao grupo cujo peso numa coalizão política tende a ser maior do que os demais porque pode facilmente mudar de lado – e que, por isso, tende a determinar os resultados de uma disputa estratégica. Isso se deve aos recursos de poder que detém – no caso, financeiros – e, portanto, por sua posição na estrutura social. Os grupos pivot são ainda mais decisivos quando o financiamento das campanhas eleitorais adquire centralidade, como é o caso das democracias de massa.
Dentre as múltiplas implicações da Operação Lava Jato, há algumas que ajudam a situar melhor nossa conjuntura crítica. Antes disso, convém destacar que o poder do setor financeiro, entre nós, não é da mesma ordem que nos EUA: por não ser um “grupo pivot” em termos do sistema internacional e tampouco ser tão hegemônico em termos da política de coalizões doméstica. Por um lado, por ser comparativamente bem mais regulado. Por outro, pelo peso relativo (e pela capilaridade social) dos bancos públicos: os quais, acionados pelo Executivo, lhe garantem espaço de manobra para atenuar o poder de fogo do setor privado. Sobretudo, porque divide essa função com as empreiteiras.
A Operação Lava Jato detonou um processo de mudanças sem precedentes, de longo alcance: a exposição e penalização do grupo pivot mais entranhado no sistema de poder desde a ditadura, o das grandes empreiteiras. Ela ilumina bem mais do que os mecanismos da corrupção utilizados pelos governos sub judice e a vocação hegemônica do PT. Lança luz sobre as características distintivas da organização e da forma de operação do Estado brasileiro, desde a ditadura até hoje. Só que agora em nova encarnação, porque mais inclusivo, pois equipado institucionalmente para absorver a incorporação dos movimentos sociais e de outros interesses organizados. Daí as interações intangíveis desse grupo pivot com o poder público, com a estatal ícone do capitalismo de Estado brasileiro, entre outras, com o “presidencialismo de coalizão” – e cuja duradoura influência na formulação da nossa diplomacia econômica data da ditadura. (Aqui estou apenas atualizando a noção de “anéis burocráticos”, com a qual Fernando Henrique Cardoso caracterizou a especificidade do Estado brasileiro durante a ditadura.)
As Operações Lava Jato, Nessum Dorma e eventuais similares evidenciam o déficit de institucionalidade e de democracia que caracteriza o nosso Estado. Mas, por isso mesmo, também evidenciam os limites de uma caracterização desse déficit em termos de “captura do Estado pelos interesses privados”, a gosto de nossos melhores economistas – transplantada de outros contextos. Pois uma das características distintivas do nosso capitalismo de Estado consiste na existência de instituições quase seculares, que o autoriza a capturar os interesses organizados, mesmo aqueles que nascem autônomos. A durabilidade da estrutura sindical e patronal herdada dos anos 1930, o impulso de regular a sociedade e de integrar à sua esfera os movimentos sociais sob a égide do lulopetismo não seriam mais bem explicados em outros termos? Enquanto perdurar a subinstitucionalizacão do Estado, enquanto Estado democrático, seria mais adequado falar em captura recíproca, ou numa relação simbiótica entre uns e outro.
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Lourdes Sola é professora de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e consultora política
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