sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Os padrões do comportamento civilizado – Opinião | O Estado de S. Paulo

Sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia

Numa democracia saudável, a luta pelo poder, por mais acirrada que seja, não pode servir de pretexto para que se violentem os padrões básicos de comportamento civilizado. Em outras palavras, todos, candidatos e eleitores, devem respeitar esses limites ditados pela decência – que, ao fim e ao cabo, é requisito fundamental para o reconhecimento mútuo da legitimidade dos que disputam o poder.

Há algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que, sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por honradez, são tratados como fracos.

Quando Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem feito à democracia no País.

Como se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave de um adversário para tentar lhe tomar votos.

Ao contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria toda sorte de barbaridades.

Não faz muito tempo, a presidente Dilma Rousseff, de triste memória, reconheceu que ela e seus correligionários faziam o “diabo” em época de eleição. Tal admissão causou na ocasião uma compreensível repulsa por parte dos cidadãos de bem, já bastante agastados com as artimanhas tinhosas do lulopetismo, mas ao mesmo tempo foi útil para revelar até onde estavam dispostos a ir o sr. Lula da Silva e seus discípulos para se agarrar ao poder.

Rasgada a fantasia de campeão da ética, com a qual o lulopetismo enganou muitos incautos por décadas, ficou claro para todos que a política, conforme concebida pelo PT, não era mais uma disputa de ideias, mas guerra aberta em que o adversário devia ser aniquilado.

Nisso o PT encontrou em Jair Bolsonaro seu inimigo ideal. Desde os tempos de deputado do baixo clero, o hoje presidente se notabilizou por defender nada menos que a destruição – física, até – de seus oponentes. Bolsonaro elegeu-se presidente criando e explorando fake news em redes sociais para desmoralizar seus concorrentes, atualizando o conceito de “fazer o diabo” na campanha. 

Uma vez na Presidência, Bolsonaro não perde seu tempo governando, coisa que, de resto, seria incapaz de fazer; concentra suas energias em sua campanha antecipada pela reeleição e, para esse fim, não se constrange em explorar a pandemia de covid-19 e seus cerca de 160 mil mortos para tentar ganhar votos. Estimula aglomerações, menospreza a vacina e incentiva os cidadãos a tomar remédio sem eficácia comprovada, tudo para se livrar do fardo de liderar o País neste momento tão difícil e para atribuir a terceiros – seus adversários políticos – a responsabilidade pela crise. 

O sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou muitos outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia de campanha. Assim, uma verdadeira malta de arruaceiros políticos, a exemplo do mestre, investe na confusão e na truculência como ativo eleitoral.

Resta torcer para que a rejeição a candidatos apoiados tanto por Bolsonaro como por Lula, detectada em algumas pesquisas, se confirme, pois assim ficará claro que nem todos os eleitores se sentem confortáveis em viver numa sociedade desprovida de solidariedade e respeito ao próximo, que é a sociedade idealizada pelos liberticidas bolsonaristas e lulopetistas.

Mais confusão que estratégia – Opinião | O Estado de S. Paulo

Plano do governo mistura ganhos de eficiência com defesa de costumes

Se der tudo certo, a economia crescerá 3,5% ao ano até 2031, a pobreza diminuirá, os lixões sumirão, haverá avanço tecnológico, o aborto será combatido e os vínculos familiares serão fortalecidos – pelo menos segundo a recém-anunciada Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil. Essa estratégia está embutida num decreto presidencial, um documento cheio de intenções, vazio de explicações e contaminado pela mistura de assuntos públicos e valores privados.

Os objetivos básicos são facilmente defensáveis. É preciso desemperrar a economia, acelerar seu crescimento, reduzir as desigualdades e alcançar índices mais altos de desenvolvimento humano. Também é fácil citar algumas condições indispensáveis. Nenhum plano será exequível sem contas públicas sustentáveis e credibilidade fiscal. Além disso, expansão econômica mais rápida e duradoura dependerá de maior produtividade e, portanto, de melhor ambiente de negócios e de mais investimentos em capital físico e capital humano.

De novo, ajustes e reformas aparecem como essenciais para o fortalecimento econômico. O documento propõe aprimoramento dos sistemas previdenciário e tributário, mas sem detalhar as mudanças necessárias. A omissão é especialmente inquietante no caso dos tributos.

A reforma deve combinar mudanças nos três níveis de administração? Deve incluir a recriação da CPMF, defendida com insistência pelo ministro da Economia? Quais devem ser – esta é a questão mais importante – os objetivos dessa reforma? E como se poderá combiná-la com os padrões internacionais atualmente em construção?

Alguns pontos ficam mais estranhos quando se consideram os padrões seguidos, até hoje, pelo presidente e por seus ministros. Segundo o documento, é preciso ampliar os “esforços em educação, ciência, tecnologia e inovação”. A educação, em todos os níveis, é recurso básico para formação de capital humano. Mas nenhum ministro da Educação, desde janeiro de 2019, se dedicou de forma séria e produtiva à sua área de responsabilidade.

Nada se fez, em 22 meses, para favorecer o desenvolvimento educacional. Quem ficou mais tempo no posto, sempre com forte apoio do presidente, notabilizou-se pelos ataques a universidades e pelas tentativas desastradas de interferência. Universidades foram descritas como centros de orgia e de produção de maconha. Seu substituto imediato apresentou um currículo fabuloso e ficou cinco dias no posto.

O atual titular ganhou fama, rapidamente, por descrever jovens homossexuais como produtos de famílias desajustadas. Não exibiu, até agora, mais qualificações para o posto que qualquer antecessor desde janeiro de 2019. Resumindo: ao propor a ampliação dos “esforços em educação”, o decreto sugere algo diferente do realizado até hoje no mandato do presidente Bolsonaro?

Mas o ponto mais estranho é a existência desse documento sobre estratégia de longo prazo. Afinal, nem o Orçamento de 2021 foi claramente definido até agora. Além disso, ainda falta um plano – modesto e essencial – para sustentação da retomada no próximo ano.

Só apareceu, até agora, uma explicação para o documento: o presidente Jair Bolsonaro recebeu de seu antecessor, Michel Temer, um estudo preliminar para um plano estratégico. Alguém decidiu aproveitar pelo menos essa herança.

Dois pontos do decreto, no entanto, combinam com a atualidade. O primeiro é um claro alerta da equipe econômica. Se predominar a frouxidão fiscal, defendida por uma ala do Executivo, o resultado será uma enorme crise. Se houver alguma seriedade, o crescimento dependerá de reformas estruturais mais ou menos ambiciosas. O segundo ponto combina com a pregação de costumes do presidente e da ministra Damares Alves. A ideia de “promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro”, é mais uma promessa de combate ao direito do aborto. Esse foi o tema do chamado Consenso de Genebra, um acordo firmado na semana passada em nome do Brasil, dos Estados Unidos e de vários países ultraconservadores.

O poder das agências reguladoras – Opinião | O Estado de S. Paulo

Decisão do Supremo Tribunal Federal protege e reafirma o papel da Anvisa

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade da Lei 13.269/2016, que havia autorizado o uso da fosfoetanolamina sintética, também conhecida como “pílula do câncer”, em pacientes com neoplasia maligna. Ainda que os efeitos da lei estivessem suspensos desde maio de 2016, por força de uma liminar proferida pelo plenário da Corte constitucional, a decisão de agora protege e reafirma o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, por consequência, de todas as agências reguladoras.

O Poder Legislativo está acima das agências reguladoras. É o Congresso, por exemplo, que define as políticas que essas autarquias de regime especial deverão seguir na regulação e no acompanhamento das suas respectivas áreas de atuação. No entanto, e aqui está o ponto principal da decisão do STF, essa superioridade do Legislativo não equivale a uma permissão para que o Congresso atue no lugar das agências.

No caso, o Congresso havia autorizado o uso como medicamento da fosfoetanolamina sintética sem a devida aprovação da Anvisa. Logo após a promulgação da lei, a Associação Médica Brasileira (AMB) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), sustentando que, pela falta de testes da substância em seres humanos e pelo desconhecimento sobre a eficácia e os efeitos colaterais do medicamento, a liberação da “pílula do câncer” feria direitos e garantias constitucionais, como os direitos à saúde, à segurança e à vida, bem como desrespeitava o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.

Em seu voto, o relator da Adin 5.501, ministro Marco Aurélio, lembrou que a permissão para distribuição de substâncias químicas, segundo protocolos cientificamente validados, é competência da Anvisa. Não cabe, assim, ao Legislativo, ao Executivo ou ao próprio Judiciário autorizar no País o uso de substância química como medicamento. Essa atribuição – que inclui autorização para industrialização, comercialização e importação com fins comerciais – é unicamente da Anvisa, que, no exercício dessa função, deve seguir procedimentos cientificamente comprovados.

Assim, também a agência reguladora não detém poder despótico ou arbitrário sobre sua área de atuação, devendo respeitar os devidos protocolos. Por exemplo, a Anvisa não poderia ter aprovado a fosfoetanolamina sintética, uma vez que, tal como lembrou o ministro Marco Aurélio, não houve nem mesmo o protocolo de pedido de registro da substância perante a agência.

No Estado Democrático de Direito, o exercício do poder deve sempre respeitar as respectivas competências e os devidos procedimentos. Com razão, essa realidade é frequentemente lembrada em relação ao funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário. Cada um dos Três Poderes deve respeitar as atribuições dos outros dois, sem se imiscuir em searas alheias. Mas esse estrito respeito às competências institucionais também se aplica a todas as esferas do poder público, sob pena de exercício arbitrário do poder.

É de reconhecer, portanto, que o descuido com que as agências reguladoras foram tratadas pelo Executivo federal nos governos de Lula e Dilma – descuido que em boa medida também se observa na gestão Bolsonaro – não revela apenas uma incapacidade de enxergar os benefícios que essas autarquias podem trazer para o cidadão, em termos de economia, eficiência e transparência. O desrespeito ao âmbito e à natureza das agências reguladoras explicita também uma profunda incompreensão sobre os limites do exercício do próprio poder, aspecto fundamental de um Estado Democrático de Direito.

As agências reguladoras receberam um grande impulso nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Produziu-se não apenas um ganho de eficiência, mas houve um impressionante avanço institucional. No ano passado, o Congresso aprovou a Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei 13.848/2019), cuja tramitação contou com especial atenção do governo de Michel Temer. É preciso progredir no respeito ao papel das agências. O País só tem a ganhar.

Os limites da política errática de Bolsonaro – Opinião | O Globo

Imobilismo de olho em 2022 cobra preço no desgaste dentro do governo e na rearticulação da oposição

O governo não para de dar demonstrações de falta de rumo. O conflito entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho já deveria ter sido resolvido, sob a coordenação do Planalto. Bastaria a fidelidade declarada de Bolsonaro ao teto de gastos para apartar a briga. Mas não, não acabou, como se viu ontem nas indiretas disparadas por Guedes no Congresso contra Marinho, a quem chamou de “ministro gastador”, municiado por economistas a soldo da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), qualificada como “casa de lobby” .

Guedes também não esclareceu a posição do governo sobre a nova CPMF e negou que a intenção do decreto que assinou com Bolsonaro fosse privatizar Unidades Básicas de Saúde (UBSs). O decreto foi revogado ante a avalanche de críticas previsíveis, a maioria infundadas. Mas o Planalto deveria ter agido antes. Chama a atenção que tenha tratado na surdina de tema tão polêmico.

A confusão revela a distância de Bolsonaro para a realidade. O presidente vive num mundo paralelo. Chega a ser risível que, enquanto há um programa de privatizações a cumprir, o Planalto abra outra frente.

É indiscutível que a saúde pública só teria a ganhar com métodos de gestão do setor privado, como demonstram inúmeras experiências do próprio SUS. A questão é outra. Qual o sentido de pôr a nova frente em marcha se a privatização da Eletrobras está paralisada e a dos Correios mal começou?

Nada se faz sem articulação com o Parlamento. E o Congresso já mostrou ter condições de deliberar em sessões virtuais. Bastaria Bolsonaro ter vontade e talento para política. Privatizar o que está na fila, além de promessa de campanha, é peça crucial no ajuste fiscal. Que envolve ainda as reformas tributária e administrativa, postergadas para as calendas pós-eleitorais.

Reforça-se a percepção de um governo paralisado, esperando o tempo passar. O presidente nada faz que afete seu projeto de reeleição, em que uma estratégia coerente de reformas não vale nada perto das curtidas nas redes sociais.

Só que o imobilismo tático de olho em 2022 tem custo. O capitão reformado pode ter achado que, ao se cercar de generais, blindaria o governo. Prova de que estava errado é o artigo publicado pelo ex-porta-voz e general Rêgo Barros no “Correio Braziliense”. “O poder inebria, corrompe e corrói”, diz o texto, para depois contrastar o “memento mori” (lembra que morrerás) dito aos generais vitoriosos na Roma Antiga com os “comentários babosos” e “demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião” dos dias de hoje.

Está dado o recado da caserna. A política errática de Bolsonaro, confiando no Centrão e no apoio das redes para o que der e vier, não tem provocado apenas choques entre aliados. A oposição já se articula para o enfrentamento, como demonstra a reunião do ex-presidente Lula com Ciro Gomes. Bolsonaro não deve entender a popularidade em alta nas pesquisas como licença para absurdos. Para o país, a conta da paralisia já está cara demais. Nalgum momento, será cobrada dele também.

Debate sobre nova lei de lavagem põe em risco sistema anticorrupção – Opinião | O Globo

Discussão de novo projeto em comissão da Câmara abre as portas a leniência, compadrio e retrocesso

Há mérito na iniciativa da Câmara em abrir o debate sobre a modernização da Lei de Lavagem de Dinheiro. A legislação tem lacunas e é preciso eliminar a insegurança jurídica em casos de crimes financeiros. Mas a comissão encarregada do projeto da nova lei deve ter cautela ao instaurar freios e contrapesos. Alguns integrantes parecem ter identificado uma oportunidade para estabelecer formas inaceitáveis de anistia e de amenizar a punição a crimes de colarinho branco.

Dos 44 que formam a comissão, 24 são advogados, muitos deles representantes judiciais de agentes públicos — com e sem mandato — em processos da Operação Lava-Jato. Outros 13 vêm do Judiciário, e 7 do Ministério Público. Ficaram de fora organismos especializados como Coaf e Receita, cujas contribuições poderão ser coletadas.

Os problemas começam quando, no bloco majoritário, afloram ideias como reduzir de dez para seis anos a pena para o crime de lavagem, que ficaria em patamar inferior ao delito anterior, a corrupção. Ou introduzir na lei uma distinção esdrúxula entre lavagem e ocultação de dinheiro de origem ilícita. Ou, ainda, estabelecer que receber honorários advocatícios não configura lavagem, sob nenhuma hipótese. Tudo, se possível, com efeito retroativo.

É a preparação do terreno para uma legislação intencionalmente leniente, em alguns aspectos sob a justificativa cínica de afirmar a “soberania nacional” diante de sistemas reguladores globais, como o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi), a que o Brasil aderiu voluntariamente há duas décadas (hoje em dia, é bom lembrar o óbvio: quando um país adere voluntariamente a organismos internacionais, está na verdade exercendo sua soberania, não se sujeitando).

Pode-se argumentar que a comissão está em fase de debates, sem definições. Há, ainda assim, coerência entre a tendência nas discussões e o que se observa na preparação das leis sobre temas como prisão após a condenação em segunda instância ou improbidade administrativa. Nos três casos, a Câmara tem conjugado cada vez menos o verbo avançar. Em vez disso, tem preferido retroceder — em benefício da delinquência de colarinho branco.

O presidente da Casa, deputado Rodrigo Maia, deveria intervir, caso não queira ver a sua gestão elogiável terminar com o sinal verde a um retrocesso na prevenção e repressão à corrupção. As consequências serão nefastas à lei e à ordem interna, com sequelas no comércio exterior e na segurança dos investimentos. Até agora, o protagonista do recuo em favor dos corruptos tem sido o Judiciário. Parece que, a exemplo da Itália na Operação Mãos Limpas, o Legislativo não quer ficar atrás.

Fortalecer o SUS – Opinião | Folha de S. Paulo

Pandemia evidencia deficiências do sistema, que precisa de dinheiro e gestão

O Estado brasileiro consome uma parcela elevada da renda nacional, mas ainda assim presta serviços deficientes e mantém áreas vitais subfinanciadas. A pandemia de Covid-19 jogou mais luz sobre algumas dessas carências.

A experiência do auxílio emergencial evidenciou lacunas na rede de seguridade, como a proteção falha a trabalhadores informais, e suscitou o debate sobre a ampliação do programa Bolsa Família. Outro setor submetido a estresse durante a crise sanitária foi, obviamente, a saúde pública.

Como a Folha noticiou, abriram-se durante a calamidade, em caráter temporário, 14.843 leitos de UTI adultos e 249 pediátricos, que se somaram aos 22.841 disponíveis no SUS no início do ano. Corretamente, as providências não estiveram submetidas ao teto fixado para as despesas federais.

Desde então, com a desaceleração do contágio, quase dois terços dos novos leitos já foram fechados. Secretários da Saúde, agora, mobilizam-se para que se incorpore à rede hospitalar ao menos parte do restante —afinal, já havia déficits a serem sanados antes do surgimento do novo coronavírus.

O argumento é decerto plausível. Se o gasto público brasileiro está entre os mais elevados do mundo quando se trata de servidores públicos, Judiciário, aposentadorias e juros da dívida, o mesmo não se pode dizer das dotações da saúde.

Estas equivalem a 3,9% do Produto Interno Bruto, percentual inferior ao verificado em vizinhos como Argentina (4,9%) e Uruguai (6,4%). Nos EUA, também considerando somente o dispêndio governamental, são 8,5% do PIB.

Um necessário reordenamento das prioridades do Estado, de fato, deve ter o SUS como um de seus beneficiários principais. Mesmo antes de reformas mais profundas, não há óbice legal ao reforço da área no Orçamento de 2021 —embora seja impossível, claro, sanar rapidamente todas as deficiências.

Tal objetivo demanda não apenas dinheiro, que será escasso por muito tempo, mas ajustes gerenciais: há que racionalizar a distribuição de hospitais de acordo com o porte dos municípios, organizar um cadastro nacional eletrônico de pacientes, estudar mudanças na remuneração dos serviços.

O emprego de organizações sociais e outras entidades é uma opção a ser considerada, por permitir gestão mais ágil, em particular na contratação e dispensa de pessoal.

Trata-se de processo a ser conduzido com diálogo e transparência, como o demonstra a recente trapalhada do governo Jair Bolsonaro com a edição e revogação de um decreto que previa estudos para parcerias com a iniciativa privada nas Unidades Básicas de Saúde.

Muita confusão e alarido político seriam e serão evitados com o esclarecimento de que o SUS, universal e gratuito, é conquista da sociedade consagrada na Constituição.

 Cruzadas antiaborto – Opinião | Folha de S. Paulo

Bolsonaro usa tom ativista em documento; TJ-SP toma decisão absurda contra ONG

Em trecho de um documento oficial intitulado Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil, que traça diretrizes para o período 2020-2031, o governo Jair Bolsonaro achou por bem encampar a retórica de movimentos conservadores contrários ao aborto.

Dentre as medidas voltadas a “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, o texto do Planalto define como meta “promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”.

É legítimo, obviamente, que um presidente ou qualquer outro político defenda suas convicções e busque levá-las, pelos meios democráticos, às políticas públicas. Isso dito, cumpre apontar que a associação entre desenvolvimento e restrição a direitos de interrupção da gravidez destoa da experiência das sociedades mais avançadas.

Como advoga esta Folha, trata-se de tema a ser encarado sob a ótica da saúde pública, de modo a preservar a vida e a segurança das mulheres. Assim tem entendido um número crescente de países.

O governo brasileiro esteve em má companhia ao assinar, neste mês, certa Declaração de Consenso de Genebra —do suposto consenso antiaborto participavam outras 30 nações, entre elas os EUA de Donald Trump, a Hungria de Viktor Orbán, Indonésia, Egito e Uganda.

A gestão Bolsonaro, ademais, atenta até contra as possibilidades previstas na lei e na jurisprudência —os casos de estupro, risco à vida da mãe e feto anencéfalo.

Portaria do Ministério da Saúde criou constrangimentos para os médicos que realizam procedimentos; revelou-se que a pasta de Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tentou intervir na interrupção da gravidez de uma menina estuprada de apenas dez anos.

O cerco, infelizmente, não se dá apenas por parte do Executivo federal —como se viu na recente decisão do Tribunal de Justiça paulista de impedir que a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, favorável à legalização do aborto, utilize a referência religiosa em seu nome.

Beira o escárnio que uma corte judicial em um país laico se arrogue o direito de dirimir questões eclesiásticas, em violação à liberdade constitucional de associação.

BC vê alta da inflação como temporária e mantém juro – Opinião | Valor Econômico

Com grandes incertezas sobre a recuperação da economia, não faria sentido mudar o tom da política monetária

O Banco Central manteve a taxa básica de juros em 2% - o que era amplamente esperado -, mas evitou dar qualquer sinal que mudará a instância da política monetária em direção a um aumento da Selic. Apesar de o BC ter errado significativamente em sua projeção de curto prazo (setembro, outubro e novembro), há bem pouco tempo o nível de preços parecia definitivamente submerso abaixo do piso da meta e há amplo espaço até que ele se aproxime da meta (4%). O BC avalia que a alta da inflação é temporária e arrefecerá. A pressão para que o BC se mova continua vindo do risco do fim da âncora fiscal, o que o forçará a tomar outro rumo.

Há vários fatores, todos eles provisórios, que estão empurrando os preços para cima. As commodities estavam em alta, pelo menos até o mergulho dos mercados na quarta-feira, diante de nova onda de covid-19 na Europa e nos EUA, suficientemente forte para abalar as perspectivas de recuperação global. A elevação das cotações foi potencializada pela valorização do dólar, de 43% no ano até quarta, que colocou o real como a “pior” moeda de países relevantes. A tradicional gangorra, de que commodities em alta são acompanhadas por dólar em baixa está emperrada pelas dúvidas crescentes sobre o futuro da política fiscal.

A grande demanda externa, com desvalorização do real, que reduziria poder de compra doméstico, conviveu com o aumento da demanda interna, decorrente do auxílio emergencial, que, especialmente no Norte e Nordeste elevou a renda disponível dos segmentos que proporcionalmente mais gastam alimentos e certos bens industriais - móveis, roupas, eletrodomésticos, os que, junto com bens agrícolas, mais puxam o IPCA para cima.

Com o aumento da demanda, porém, intercedeu um fator extraordinário, decorrente da pandemia. Ela retirou parte da oferta do mercado pela impossibilidade de produção causada pelo distanciamento social. Outra parcela relevante da oferta foi abalroada pelo desaparecimento de milhares de pequenas empresas, que têm papel intermediário relevante na cadeia industrial.

O pêndulo da inflação pode se deslocar mais à frente. As limitações que o retorno da covid-19 colocará à produção nos países desenvolvidos deprimirão algumas commodities - o que já ocorre com o petróleo - e terão novamente efeito deflacionário, como na primeira onda. Os fatores que desarrumaram a oferta aqui, porém, são passageiros, se não houver recrudescimento da pandemia - mas, nesse caso, consumo e produção recuarão juntos, diminuindo a pressão inflacionária.

Igualmente importante, o valor do auxílio emergencial já foi cortado à metade, o que retira fôlego do consumo e empurra as incertezas para depois de quando se encerrar, em dezembro. O Copom aponta que “a incerteza sobre o ritmo de crescimento da economia permanece acima da usual”.

Ainda há fundadas dúvidas sobre o fôlego da recuperação da economia brasileira de 2021 em diante. Pelas previsões do FMI e do Focus, ela só é forte em comparação à queda de 2020, mas nada vigorosa em si nem em comparação com a da maioria dos países. Não faria o menor sentido já sinalizar a possibilidade, ainda que remota, de aumento de juros.

Há enorme folga inflacionária em relação à meta, o que não dá direito ao BC de ser afoito. O Relatório de Inflação previa IPCA de 0,4% em setembro (foi 0,64%), 0,3% em outubro (o IPCA-15 marcou 0,94%) e 0,27% em novembro. Mesmo que os “top five” do Focus acertem o que virá - 0,82% em outubro, 0,42% em novembro e 0,51% em dezembro - a inflação dificilmente passará de 3,1%. Isso porque o IPCA foi muito alto no bimestre final de 2019 - 0,51% em novembro e 1,15% em dezembro. Será preciso um fôlego de alta maior e mais generalizado - e, ademais, sem contar com pressão dos serviços, ainda deprimidos - para que a inflação possa forçar o BC a rever os planos.

O balanço de riscos se desequilibrou para um lado, mas não foi o da inflação. “O risco fiscal elevado segue criando uma assimetria altista, ou seja, com trajetórias para a inflação acima do projetado no horizonte relevante para a política monetária”, aponta o Copom.

Se não se sabe qual o ritmo da economia a partir de 2021, e se os riscos externos tendem a ser desfavoráveis ao crescimento (mas não tanto à inflação), não havia motivos para o BC mudar sua prescrição futura. A possibilidade de um corte de juros não foi descartada, corretamente. Resta a enorme encrenca fiscal, mas esse é um assunto espinhoso fora da alçada do Banco Central.

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