O
cardápio de inutilidades discutida pelas autoridades é interpretado como
tentativa de desviar a atenção de questões espinhosas
Quando
a gente vê autoridades brigando por vacina que não existe, pregando convocação
de Constituinte ou falando em privatização do Sistema Único de Saúde, dá
vontade de mandar suas excelências lavar uma louça.
Ou
seja, que parem de tergiversar na contemplação de inúteis paisagens e tratem do
que, no concreto, interessa a um Brasil cheio de problemas a ser enfrentados:
uma pandemia que não acabou, economia em rumo incerto, educação de péssima
qualidade, infraestrutura sofrível, desigualdade profunda, meio ambiente sob
risco, sistema político-partidário obsoleto, e por aí vai o país de futuro
duvidoso.
O
cardápio de inutilidades é interpretado como tentativa de desviar a atenção de
questões espinhosas de modo a substituir no noticiário, por exemplo, denúncias
de mau uso do poder e levar imprensa e redes a se ocupar de discussões sobre o
nada. Enquanto se fala do acessório, o principal fica na prateleira.
Essa
explicação até faz sentido, mas não passa da página dois, porque os enroscos
reais não desaparecem e os temas de fantasia tendem a morrer na praia
estorricados sob o sol da realidade.
O
debate da vacina (obrigatoriedade, compra dessa ou daquela, origem e intenções
conspiratórias) vai acabar no dia em que ela realmente existir, quando a
questão principal será se haverá imunizante para todo mundo. Estudo da
revista Nature mostra
que mais de 85% dos brasileiros pretendem receber vacinação. Note-se, é um
universo de cerca de 170 milhões de pessoas. A privatização dos postos de saúde
do SUS não passaria pelo crivo do Congresso, muito menos pela opinião do
público, que na pandemia pôde constatar a dimensão da importância desse
serviço, um dever obvia e constitucionalmente a ser assegurado pelo Estado.
E
aqui chegamos à Constituição que, no dizer do líder do governo na Câmara,
Ricardo Barros, confere direitos demais, fiscaliza em excesso e, por isso,
torna o país “ingovernável”. Ora, déficits de governança são fruto de
administrações incompetentes, e não de uma Carta Magna reconhecida como das
melhores, não obstante defeitos em boa medida decorrentes do afã de resolver
todos os problemas de um Brasil mal saído de 21 anos de ditadura. Essa
coisa de tentar amoldar Constituições às conveniências do poderoso da vez é
truque velho e não cola mais.
“Polêmicas
inúteis servem ao intuito eleitoral de não deixar cair a polarização”
Mas,
se o ardil do rodeio não tem vida longa, qual a utilidade dele para seus
autores? A seguinte: manter a peteca da polarização no ar, não deixar arrefecer
o clima de conflito de posições extremadas, a fim de tirar proveito eleitoral
do ambiente de polêmica onde vicejam emoções intensas.
Ou
não foi assim que Luiz Inácio da Silva governou? Ou não foi assim que Jair
Bolsonaro se elegeu? Pois é assim que tentará se reeleger. Puxa uma briga
daqui, outra dali, e vai levando seu experimento na busca do malvado ideal com
o qual se confrontar.
Como
o PT anda fraquinho como adversário, Jair Bolsonaro precisa alimentar torrentes
de paixões, pois na racionalidade não é provável que a maioria do eleitorado
tope repetir a dose.
O
fuzuê do momento é com João Doria, o mais nítido aspirante ao Palácio do Planalto
em 2022. Bolsonaro polemiza com ele, seja para levá-lo a cometer algum erro
incontornável, seja para usá-lo como sparring à falta de outro ao alcance. O
governador de São Paulo polemiza com o presidente, um ótimo contendor para quem
precisa se tornar nacionalmente cada vez mais conhecido e reconhecido no papel
de contraponto.
Assim,
a corda permanece esticada e o eleitorado conduzido a se posicionar no extremo
que mais lhe agrada. Ou menos desagrada. Com isso, perde força a articulação de
uma alternativa ao centro, tarefa em que Bolsonaro se empenha também em outra
ponta, na cessão de espaços a gente da política, digamos assim, tradicional que
em 2018 optou por ele com medo de perder para o PT e em 2022 pode seguir com
ele, aí já na perspectiva de preservar os ganhos obtidos.
Não
é, já houve aqui algo parecido: em 1998 Leonel Brizola concorreu a vice de
Lula. Não deu certo e ainda rendeu ao PT uma aliança malsã com Anthony
Garotinho, à época no PDT de Brizola.
*Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711
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